Vol. 1
LIVRO
V
CAPÍTULO XV
Recompensa temporal que Deus
concedeu aos bons costumes dos Romanos.
A
estes, portanto, não tinha Deus que conceder a vida eterna com os seus santos
anjos na sua Cidade Celeste. A verdadeira piedade é que conduz a essa
sociedade, a qual só se manifesta quando se tributa ao único Deus verdadeiro o
serviço religioso a que os gregos chamam λατρεία. Se este Deus não lhes
concedesse nem sequer a glória terrena do mais glorioso dos impérios, — não
lhes concederia a recompensa das suas boas qualidades, isto é, das virtudes com
que se esforçaram por chegar a tamanha glória.
Foi
na verdade de tais homens, que parece terem feito algo de bem para serem
glorificados pelos homens, que o Senhor também disse:
De
facto, sacrificaram os seus interesses pelo bem comum, isto é, pelo estado e
pelo erário público:
— resistiram à avareza e vigiaram pelo bem da
pátria com livre determinação;
— foram isentos de crimes e de vícios punidos
por lei;
— por estes meios como por um caminho
verdadeiro, procuraram alcançar honras, poder e glória;
— conseguiram ser honrados por quase todos os
povos;
— impuseram as leis do seu império a muitos
povos;
— em quase todos os povos são hoje
glorificados nas letras e na história. Não têm que se queixar da justiça de
Deus verdadeiro e supremo — receberam a sua recompensa [ii].
CAPÍTULO XVI
Recompensa dos santos
cidadãos da Cidade eterna aos quais são úteis os exemplos das virtudes dos
Romanos.
Mas,
mesmo cá, é muito diferente a recompensa dos santos que sofrem opróbrios pela
verdade de Deus, odiosa para os apaixonados por este mundo. Esta cidade é
eterna
— ninguém nela nasce porque ninguém nela
morre;
— nela é verdadeira e plena a felicidade, que
não é uma deusa mas um dom de Deus;
— dela recebemos o penhor da fé para todo o
tempo durante o qual, peregrinando, suspiramos pela sua beleza;
— nela o Sol já não se levanta para os bons e
para os maus,
— o Sol da justiça apenas protege os bons;
— nela não haverá mais esforços para
enriquecer o erário público à custa das fortunas privadas, porque o tesouro comum
será a verdade.
Não
foi, por conseguinte, somente para que uma tal recompensa fosse concedida a
tais homens que o Império Romano se desenvolveu e conquistou a glória humana; —
foi também para que os cidadãos desta Cidade eterna, enquanto por cá peregrinam,
olhem com atenção e com tino para aqueles exemplos e vejam quão grande amor se
deve à pátria celeste por causa da vida eterna — quando a cidade terrena é tão
amada pelos seus cidadãos por causa da glória dos homens.
CAPÍTULO XVII
Que frutos colheram os
Romanos das guerras e que aproveitaram estas aos vencidos.
No
que respeita a esta vida mortal, que desliza e acaba em poucos dias, que
interessa sob que autoridade vive o homem feito para morrer, se os que mandam
não o obrigam a actos ímpios e iníquos? Os Romanos não causaram prejuízos aos
povos aos quais, depois de subjugados, impuseram as suas leis, apenas porque
isso aconteceu mercê das ingentes carnificinas das guerras? Se tal tivesse
acontecido de mútuo acordo, os resultados teriam sido melhores; mas seria nula
a vitória dos triunfadores. De facto, os Romanos viviam, eles também, sob as
suas próprias leis que impunham aos outros. Se tudo isto tivesse acontecido
sem a intervenção de Marte ou de Belona, de maneira que não haveria também
lugar para a Vitória, nem haveria vencedores porque não tinha havido luta — não
seria a mesma a condição dos Romanos e dos outros povos? Sobretudo se se
fizesse em seguida o que tão gratuita e humanamente se fez mais tarde: associar
à cidade todos os que pertencessem ao Império Romano e declará-los cidadãos
romanos; assim seria de todos o que antes era de poucos — só que aquela plebe
que não possuía campos seus tinha de viver a expensas do Estado. Estas despesas
de alimentação seriam prestadas mais gostosamente se previamente tivessem
chegado a acordo e se servissem de bons administradores públicos do que se,
depois de vencidos, lhas tivessem de extorquir.
Fora
de tão ilusório orgulho da glória humana — por que «já receberam a sua recompensa» os que, devido ao seu imenso amor
por ela, empreenderam sangrentas guerras — não vejo na verdade que possa
interessar à segurança e aos bons costumes isso (que pensamos serem os méritos
dos homens): que uns sejam vencedores e outros vencidos. Não cobram eles os
impostos das suas terras? Será que lhes é permitido aprender (discere) o que aos outros não é
permitido? Não haverá nas outras terras muitos senadores que os Romanos nem
sequer de vista conhecem? Deita fora a jactância: que são todos os homens senão
homens? Mas, ainda mesmo que a perversidade do século admitisse que fossem mais
honrados os melhores — nem mesmo assim se deveria ter em grande conta a honra
humana: porque o fumo não tem peso.
Todavia,
mesmo nestas coisas, aproveitemos dos benefícios do Senhor nosso Deus. Consideremos
tudo o que desprezaram, tudo o que suportaram, quantas paixões abafaram pela
glória humana estes homens que a mereceram como recompensa de tais virtudes, e
que isto nos ajude também a reprimir a nossa soberba. E, pois que aquela
cidade, em que nos foi permitido reinar, dista tanto da de cá quanto o Céu
dista da Terra, a vida eterna dista da alegria temporal, a sólida glória dista
dos vãos louvores, a sociedade dos anjos dista da sociedade dos mortais, a luz
d’Aquele que fez o Sol e a Lua dista da luz do Sol e da Lua, — não julguem os
cidadãos de tão grande pátria que alguma coisa de grande fizeram quando, para a
conquistarem, algo fizeram de bom ou suportaram alguns males, quando os Romanos
pela pátria terrestre que já possuíam fizeram tamanhas coisas e tamanhas coisas
suportaram; principalmente porque a remissão dos pecados que congrega os
cidadãos para a eterna pátria, tem alguma coisa a que, como uma sombra, se
assemelha o asilo de Rómulo em que a impunidade concedida a todos os crimes
reuniu a multidão com que ele fundaria esta cidade.
CAPÍTULO XVIII
Quão alheios se devem manter
os cristãos da jactância se algo tiverem feito por amor à pátria eterna, quando
os Romanos tamanhas proezas realizaram por amor da glória e da Cidade terrena.
Que
é que de extraordinário há em desprezar por aquela celeste e eterna Pátria
todas as seduções deste século, quando, por esta pátria terrestre e temporal,
um Bruto pôde até matar os filhos — o que a Pátria celeste a ninguém obriga a
fazer? E, com certeza, mais difícil matar os filhos do que praticar as acções
que tal pátria nos impõe: dàr aos pobres os bens que tencionávamos juntar para
os nossos filhos, ou perder esses mesmos bens se se apresentar uma provação que
nos obrigue a tal em nome da fé e da justiça. Não são de facto as riquezas da
Terra que nos tornarão felizes a nós ou a nossos filhos: — temos de as perder
em vida, uma vez mortos serão elas levadas por quem desconhecemos ou talvez
possuídas por quem não queremos. Deus é que faz a nossa felicidade e é a
verdadeira riqueza das almas.
Mas,
a respeito de Bruto, mesmo o poeta que o louva por ter morto os filhos, dá
testemunho da sua infelicidade, pois diz:
O
pai, por amor da bela liberdade, enviará para o suplício os filhos que
preparavam uma nova guerra. Desgraçado — pensem o que pensarem destes factos os
pósteros [iii].
Mas
no verso seguinte consola o infeliz:
Triunfa
o amor da pátria e uma paixão imensa de glória [iv].
São
estas duas — a liberdade e a paixão pela glória humana — que levaram os Romanos
a tão admiráveis feitos. Se, pois, pela liberdade de quem está destinado a
morrer e pela paixão dos louvores por que os mortais anseiam, um pai pôde matar
os filhos, que há de extraordinário se, pela verdadeira liberdade (aquela que
nos liberta do domino da iniquidade, da morte e do Diabo), — não pelo desejo de
louvores humanos, mas pelo amor de libertar os homens, não de um rei Tarquínio,
mas do demónio e do príncipe dos demónios — quisermos, não matar os nossos
filhos, mas que os pobres de Cristo sejam contados entre os seus filhos?
Um
outro notável romano houve, chamado Torquato, que também matou um filho. Este
não lutou contra a pátria, mas pela pátria. Fê-lo, porém, contra as suas
ordens, ou seja, contra o que ele como pai e general, lhe ordenara. Provocado
pelo inimigo lutou com ardor e, embora saísse vencedor, o pai matou-o para que
o desprezo da sua autoridade não constituísse um exemplo mais perigoso do que
vantajosa tinha sido a glória de ter derrotado um inimigo. Para que se
vangloriam aqueles que, conforme as leis da pátria imortal, desprezam todos os
bens terrestres muito menos amados do que os filhos?
— Fúrio Camilo, que tinha libertado a sua
ingrata pátria do jugo dos Veientes, seus mais encarniçados inimigos, e tinha
sido condenado por rivais, voltou de novo a libertá-la da ameaça dos Gauleses
por não ter outra melhor onde pudesse viver com mais glória: porque se orgulha,
como se tivesse feito alguma coisa extraordinária, o que na Igreja, vítima de
inimigos carnais, sofre injustamente uma grave desonra e não se passa para os
inimigos dela nem funda contra ela uma nova seita, mas antes, tanto quanto
pode, a defende da violenta perversidade dos herejes, pois que não há outra em
que se possa não ser glorificado pelos homens, mas adquirir a vida eterna?
— Se Múrcio, para celebrar a paz com o rei
Porsena que apoquentava os Romanos com uma pesadíssima guerra, e para se
castigar por não ter morto este rei e, por erro, ter abatido outro em seu
lugar, estendeu à sua vista a mão direita sobre o braseiro de um altar,
dizendo-lhe que muitos outros como o que ele estava a ver tinham jurado a sua
morte, e se Porsena, temendo a coragem e a conjura de tais homens, sem hesitar
fez a paz e se absteve daquela guerra — quem fará dos seus méritos um título do
reino dos céus se, para obter um reino, ele entrega às chamas, não
espontaneamente mas constrangido por um perseguidor, não digo uma só mão mas o
corpo todo?
— Se Cúrcio, vestido das suas armas, com o
seu fogoso cavalo se precipitou na goela de um abismo para obedecer aos
oráculos dos seus deuses que tinham ordenado que para lá mandassem o que os
Romanos tinham de melhor, e estes não podendo compreender que algo houvesse de
melhor que os guerreiros e as armas, julgaram-se obrigados a mandar para a morte,
por ordem dos deuses, um soldado todo armado — porque é que se julga que
cometeram uma façanha pela Pátria celeste aqueles que, sob os golpes de um
inimigo da sua fé, não se atiram espontaneamente à morte mas para ela são
enviados pelo inimigo, sendo certo que receberam do seu Senhor, Rei da sua
Pátria, um oráculo mais certo:
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.