Vol. 1
LIVRO
VII
CAPÍTULO X
Justifica-se a distinção de
Jano e Júpiter?
Se
Jano é o mundo e Júpiter também é o mundo, e se o mundo é só um, porque é que
há dois deuses— Jano e Júpiter? Porque é que têm templos distintos, altares
distintos, ritos diversos e diferentes imagens? Será porque, sendo o poder dos
primórdios uma coisa totalmente diferente do poder das causas, um recebe o nome
de Jano e outro o de Júpiter? Mas então, se um homem tem dois poderes ou duas
profissões em assuntos diferentes, poderá dizer-se que é ao mesmo tempo dois
juízes ou dois artífices? Será então necessário pensar que um só deus, pelo
facto de ser ao mesmo tempo senhor das origens e das causas, deverá ser
desdobrado? Se se considera legítimo este desdobramento, pois que se diga:
«Júpiter é em si mesmo tantos deuses quantos os nomes que lhe são dados em
consequência dos seus múltiplos poderes, porque os objectos que lhe valeram
estes nomes são múltiplos e distintos»! Vou citar alguns.
CAPÍTULO XI
Apelidos de Júpiter que se
referem não a muitos, mas a um e mesmo deus.
Chamaram-lhe
Victor, Invictus, Opitulus, Impulsor,
Stator, Centumpeda, Supinalis, Tigillus, Almus, Ruminus e outros mais
títulos, cuja enumeração seria longal. Aplicaram estes apelidos a um só deus,
atendendo aos diversos poderes, sem o levarem a multiplicar-se em tantos deuses
quantas as actividades: isto é, triunfa de tudo, por ninguém é vencido, presta
auxílio (ops) aos necessitados, tem o
poder de derrubar, de tomar firme, de manter, de destruir, como viga (tigillus) mantém e sustenta o mundo,
alimenta todos os seres — é ruma, isto é, a mama que nutre todos os seres
animados. Como vimos, algumas destas funções são importantes, outras
insignificantes — e, todavia, julgou-se que um só deus cumpriria umas e outras.
Na minha opinião, as causas e as origens das coisas, que os levaram de um único
mundo a fazerem dois deuses— Júpiter e Jano —, estão mais aparentadas do que as
operações de sustentar o mundo e de dar mama aos seres animados. E, embora
estas duas operações estejam tão afastadas uma da outra pela virtude e
dignidade, ninguém pensou que delas se deviam fazer dois deuses: um só Júpiter
se chamou Tigillus para a primeira e Ruminus para a segunda.
Abstenho-me
de dizer que, para dar mama aos seres animados, Juno estaria mais apta do que
Jove, tanto mais que havia a deusa Rúmina que podia ajudá-la na prestação
destes serviços. É certo que poderão responder-me, julgo eu, que a própria Juno
mais não é que o próprio Jove, conforme os versos de Valério Sorano:
Júpiter
omnipotente, progenitor e progenitora dos reis e das coisas e dos deuses,
progenitor e progenitora dos deuses, deus único e, ele só, todos estes.
Mas
para que lhe chamaram Ruminus se, com
um pouco de atenção, se descobre que ele mais não é que a deusa Rúmina?
Realmente, se parecia indigno da majestade dos deuses que para uma só espiga,
um fosse encarregado dos nós da haste, outro dos folículos que envolvem os
grãos, quanto mais indigno não será que uma só operação ínfima, ou seja a do
aleitamento dos animais, exija o cuidado de duas divindades, uma das quais
seria Júpiter, o próprio rei de todos os deuses, e o faria, não com sua esposa
mas não sei com que obscura Rúmina — a não ser que ele seja esta mesma Rúmina;
ou talvez Ruminus quando são machos os que mamam e Rúmina quando são as fêmeas.
Diria que recusaram a Jove um nome feminino se ele não fosse alcunhado, nesses
versos, de «pai e mãe» ou se eu não lesse entre todos os seus outros apelidos o
de Pecúnia, uma dessas deusas minúsculas mencionadas no livro quarto. Mas, se
homens e mulheres têm dinheiro (pecunia),
porque é que a Júpiter se não chamou Pecúnia e Pecúnio como Rúmina e Rúmino?
Eles lá sabem!
CAPÍTULO XII
Júpiter também se chama
Pecúnia.
O
engenho que revelam na explicação deste nome! Chama-se Pecúnia, dizem, porque
tudo lhe pertence. Que bela razão de um nome divino! Bem ao contrário, o que
tudo possui fica aviltado e degradado ao receber este nome de Pecúnia! Porque,
em comparação de tudo o que encerram o Céu e Terra, que é o dinheiro {pecúnia) no conjunto de todos os bens
que os homens possuem por seu intermédio? Foi com certeza a avareza que deu
este nome a Jove, para que todo aquele que ama o dinheiro pense que não ama um
deus qualquer, mas o próprio rei de todos os deuses.
Seria
muito diferente se lhe chamassem Divitiae
(riquezas), porque uma coisa é a
riqueza e outra coisa é o dinheiro. Chamamos ricos aos homens sábios, justos,
virtuosos, que não têm dinheiro ou têm pouco. Eles são ricos de virtudes,
graças às quais, mesmo para as necessidades materiais, basta o que há. Mas são
pobres os avarentos, sempre ávidos e necessitados. Podem possuir grandes somas
de dinheiro, mas, na sua opulência, não podem deixar de estar necessitados. Ao
próprio Deus verdadeiro chamam com razão rico, não de dinheiro mas de
omnipotência. É verdade que também se chamam ricos aos endinheirados: mas no
fundo são indigentes se são dominados pela cupidez. Também se chamam pobres
aqueles a quem falta dinheiro — mas no fundo eles são ricos se forem sábios!
Que
poderá, pois, valer para o sábio esta teologia em que o rei dos deuses recebeu
o nome de uma coisa
Se
esta doutrina pudesse trazer qualquer salutar ensino para a vida eterna, quão
mais simplesmente se teria chamado a Deus Senhor do Mundo, não Dinheiro (Pecunia) mas Sabedoria (Sapientia) pois que esta limpa as
imundícias da avareza, isto é, do amor ao dinheiro.
CAPÍTULO XIII
Da explicação do que é
Saturno e Génio, resulta que os dois e Júpiter são um só.
Para
quê mais considerações acerca de Júpiter, ao qual se devem, talvez, reduzir todos
os deuses? Sendo ele todos os outros, não tem sentido conceber uma multidão de
deuses, quer os concebamos como partes ou atributos de Júpiter, quer a força da
alma (que julgam difundida por todas as coisas) tenha recebido os nomes de
muitos deuses procedentes das partes desta massa, nas quais aparece este mundo
visível, ou as tenha recebido das múltiplas opera ções da natureza.
De
facto, quem é Saturno? Um dos principais deuses, diz Varrão, que domina sobre
todas as sementeiras. Não nos diz a explicação dos versos de Valério Sorano que
Júpiter é o mundo e que de si emite e em si recebe todas as sementes? Nesse
caso, tem o domínio de todas as sementeiras.
E
que é o Génio? É o deus, diz-nos ele, que preside e dá vigor a tudo o que se
gera. Mas este vigor — a quem se julga que pertencerá senão ao mundo ao qual se
referem estas palavras:
Júpiter,
progenitor e progenitora?
E
quando, noutra passagem, ele nos diz que Génio é a alma racional de cada um, e
que, portanto, cada um tem a sua alma, e que Deus é a alma racional do mundo,
conduz-nos ao mesmo ponto, isto é, a pensarmos que a própria alma do mundo é,
como o Génio, universal. E é a este que se chama Júpiter. Porque, se todo o
Génio é deus e se a alma de cada um é Génio, segue-se que a alma de todo e
qualquer homem é deus. Se a sua absurdidade os obriga a rejeitar esta
consequência, só falta chamar Génio e, evidentemente, deus ao Génio a que
chamam espírito do Mundo, e, portanto, a Júpiter.
CAPÍTULO XIV
Funções de Mercúrio e de
Marte.
Quanto
a Mercúrio e Marte, não encontraram maneira de os relacionar com qualquer parte
do mundo e as obras de Deus ínsitas nos elementos. Por isso os puseram pelo
menos à frente das empresas dos homens como ministros da linguagem e da guerra.
Mas, se Mercúrio estende o seu poder à linguagem dos próprios deuses, ele até o
rei dos deuses comanda — se é verdade que Júpiter tem de falar como àquele
apraz ou dele recebe a faculdade de falar, o que é manifestamente absurdo. Se
se julga que é apenas sobre a linguagem humana que Mercúrio tem autoridade, não
é de crer que Júpiter se tenha querido rebaixar ao papel de dar de mamar não só
às crianças, mas mesmo aos animais (donde o seu nome de Rúmino), e tenha
renunciado ao cuidado com a nossa fala, que nos torna superiores aos animais.
Disto resulta que Júpiter e Mercúrio são o mesmo.
Dir-se-á
que é a própria linguagem que se chama Mercúrio, como o indicam as
interpretações dadas deste deus. Efectivamente, a palavra Mercúrio (Mercurius) significa medius currens (o que corre no meio),
porque a linguagem corre como um mediador entre os homens. Ele preside também
ao comércio porque entre vendedores e compradores a linguagem serve de
intermediário. As asas. que apresenta na cabeça e nos pés significam que a
linguagem voa através dos ares como uma ave. Chamam-lhe nuntius mensageiro) porque é por meio da linguagem que se anunciam
todos os pensamentos. Portanto, se Mercúrio, conforme a interpretação que dão
ao termo, é a própria linguagem, então, como eles mesmos confessam, não é deus.
Mas, como criam para si deuses que nem demónios são, ao rogarem aos espíritos
imundos são possuídos por estes espíritos que não são deuses mas demónios.
Da
mesma forma, não tendo podido encontrar também para Marte um elemento ou uma
parte do mundo onde ele cumprisse qualquer tarefa natural, fizeram dele o deus
da guerra, que é uma tarefa humana e das menos apetecíveis. Se, portanto, a
Felicidade assegurasse uma paz perpétua, Marte nada teria para fazer. Mas, se
Marte é a própria guerra, como Mercúrio é a linguagem, oxalá que, assim como é
manifesto que este não é deus, assim também deixe de existir a guerra a que tão
falsamente chamam deus!
CAPÍTULO XV
+
Astros que os pagãos
designaram com o nome de deuses.
Talvez
esses deuses sejam aqueles astros a que foi dado o nome deles. Realmente, há um
astro chamado Mercúrio e outro chamado Marte. Mas também há um chamado Júpiter,
e todavia Júpiter é o Mundo. Há ainda um chamado Saturno, ao qual atribuem uma
função de não pequena importância: o poder sobre todas as sementes. Há
finalmente um, o mais brilhante de todos, a que chamam Vénus, que pretendem
identificar com a Lua. Existe um astro brilhante acerca do qual, como acerca do
pomo de ouro, discutem Juno e Vénus: uns dizem que a estrela da manhã (Lúcifer)
pertence a Vénus, outros que a Juno. Mas, como é costume, é Vénus quem ganha.
São muito mais os que atribuem esta estrela a Vénus e muito poucos os de
diferente opinião. Mas quem é que não rirá ao ouvir proclamar Júpiter rei de
todas as coisas e ao mesmo tempo reparar que o seu astro é tão superado em
esplendor pelo de Vénus? Júpiter deveria superar os outros em esplendor, tal
como os supera em poder. É assim, replicam, porque o astro que parece mais
obscuro está mais alto e muito mais distante da Terra. Se, pois, a uma
dignidade maior corresponde uma posição mais elevada, porque é que Saturno está
no Céu acima de Júpiter? A mentira da fábula, que fez de Júpiter rei, não pôde
chegar aos astros? E a posição que Saturno não pôde conservar no seu reino nem
no Capitó lio, permitiu-se-lhe que a mantivesse no Céu? Então, porque é que
Jano não recebeu um astro? Será porque nele, visto ser o Mundo, todos se
encontram? Mas também Júpiter é o Mundo, e todavia tem um. Será que Jano lá se
arranjou como pôde e, por um astro que não tem no Céu, recebeu tantas caras na
Terra? De resto, se se basearam apenas nos astros para fazerem de Mercúrio e de
Marte partes do mundo e para os considerarem como deuses (porque, realmente,
nem a Linguagem nem a Guerra são partes do mundo, mas actos humanos) — então
porque é que o Carneiro, o Touro, o Caranguejo, o Escorpião e outros que tais
(que eles contam entre os sinais celestes e que são compostos, não de uma única
estrela mas cada um de várias, colocados muito acima dos referidos astros de
deuses, no cume do Céu em que o movimento mais constante assegura às estrelas
um curso invariável), então porque é, repito, que estes não receberam nem
altar, nem sacrifícios, nem templos, e porque é que não os colocam, não digo
entre os deuses escolhidos, mas, pelo menos, entre os da plebe?
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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