Vol. 1
LIVRO
VII
CAPÍTULO V
Doutrina mais secreta dos
pagãos e interpretações físicas.
Mas,
antes de mais, ouçamos as suas interpretações físicas, por meio das quais
tentam disfarçar as torpezas do seu miserável erro, colorindo-o de profundidade
doutrinária. Primeiro, vejamos como Varrão apresenta tais interpretações:
segundo ele, os antigos imaginaram as estátuas, as insígnias e o vestuário dos
deuses, para que, ao fixarem o seu olhar nesses ídolos, os iniciados nos
mistérios da doutrina pudessem captar pelo espírito a alma do mundo e as suas
partes, isto é, os deuses verdadeiros. Os que talharam as estátuas com
aparência humana, ao que parece acreditaram que a alma dos mortais, presente no
corpo humano, se assemelha profundamente à alma imortal; como se se tomassem
vasos para designar os deuses, e no templo de Libero se pusesse uma garrafa a
representar o vinho — significando o continente o conteúdo. O mesmo se diga
duma estátua com forma humana: essa estátua significa a alma humana, porque,
habitualmente, ela contém, como um vaso, a natureza humana, natureza que eles
pretendem que seja Deus ou os deuses.
São
estes os mistérios de doutrina que este Varrão de tão elevada ciência sondou e
que lhe permitiram formular estas explicações. Mas, ó dos homens o mais arguto,
não terás tu, nestes mistérios de doutrina, perdido aquela sageza que te levou
a dizer tão justamente que os primeiros que elevaram ídolos para os povos,
baniram o temor, mas aumentaram o erro entre os seus concidadãos, ao passo que
os antigos romanos prestavam, sem imagens, um culto mais puro aos seus deuses?
Foi a autoridade destes antepassados que te inspirou a audácia de falar deste
modo contra os seus descendentes. Porque, se os antepassados tivessem, também
eles, prestado culto aos ídolos, talvez tu tivesses abafado no silêncio e no
receio, a tua opinião, embora verdadeira, acerca da instituição das estátuas;
e, nestas vãs e perniciosas ficções, terias glorificado esses mistérios de
doutrina numa linguagem mais rica e mais elevada. Todavia, a tua alma tão sábia
e tão lúcida (quanto te lamentamos!) não foi capaz de atingir, através desses
mistérios de doutrina, o seu Deus, isto é, Aquele por quem essa tua alma foi
feita — não aquele com o qual ela foi feita — este Deus do qual ela não é uma
parte, mas criatura; este Deus que é, não a alma de todas as coisas, mas o
criador de todas as almas, que basta com a sua luz para tomar a alma feliz se
ela não for rebelde à Sua graça.
O
que se segue nos esclarecerá acerca da natureza e do valor desses mistérios de
doutrina. Entretanto, este tão douto Varrão reconhece que os verdadeiros deuses
são a alma do mundo e das suas partes; daqui se vê que toda a sua teologia,
isto é, a própria teologia natural, à qual ele tanto concede, deveria
estender-se precisamente até à natureza da alma racional. De facto, acerca da
teologia natural, ele antecipa-se com algumas reflexões preliminares no livro
que escreveu em último lugar acerca dos deuses escolhidos. Aí veremos se ele
conseguiu, por interpretações fisiológicas, conduzir a teologia civil à
teologia natural. Se o tiver conseguido, toda a teologia será natural. Nesse
caso, para quê tanto cuidado em separá-la da teologia civil? Mas, se não houver
justo motivo para tal distinção, se nem mesmo essa teologia natural, que a
Varrão tanto agrada, é verdadeira (e realmente ela conduz à alma, mas não
conduz a Deus, que fez a própria alma) — quão mais abjecta e falsa será então
essa teologia civil, que se ocupa sobretudo da natureza dos corpos! Assim o
demonstram as próprias interpretações, algumas das quais tenho necessariamente
de comentar e que Varrão com tanto cuidado indicou e expôs.
CAPÍTULO VI
Na opinião de Varrão, Deus é
a alma do Mundo, embora nas suas partes possua numerosas almas de natureza
divina.
Nas
suas reflexões preliminares acerca da teologia natural, o citado Varrão emite a
sua opinião de que Deus é a alma do) e de que este mesmo mundo é Deus. Mas,
assim como um homem sábio, composto de corpo e alma, só se chama sábio devido à
alma, assim também o Mundo se chama deus devido à sua alma, uma vez que ele é
formado de corpo e alma. Aqui parece que Varrão de certo modo reconhece um só
Deus; mas, para ele introduzir ainda vários outros, acrescenta que o Mundo se
divide em duas partes — o Céu e a Terra —, e que o Céu se desdobra em éter e ar
e a Terra em água e terra firme. Destes elementos, o éter é o mais elevado; em
segundo lugar vem o ar; em terceiro lugar, a água; e, abaixo de todos, a terra.
Todas estas quatro partes estão cheias de almas: o éter e o ar, de almas de
imortais; a água e a terra, de almas de mortais. No alto, desde o círculo mais
elevado do Céu até ao da Lua, residem as almas etéreas, astros, estrelas, em
que a nossa inteligência e mesmo os nossos olhos nos fazem reconhecer deuses
celestes. Entre a esfera da Lua e os mais altos cimos da zona das nuvens e dos
ventos, moram as almas aéreas, visíveis à inteligência, mas não aos olhos, e
chamados heróis, lares, génios. Tal é, pois, resumidamente exposta neste
preâmbulo, a teologia natural que tanto agradou, não apenas a Varrão, mas
também a numerosos filósofos. Esta teologia natural discuti-la-ei mais
detidamente, assim me ajude o verdadeiro Deus, quando terminar o que me falta
dizer acerca da teologia civil no que respeita aos deuses escolhidos.
CAPÍTULO VII
Será racional fazer de Jano
e de Término duas divindades distintas?
Pergunto,
portanto, quem será Jano, pelo qual Varrão começou. Responder-me-ão: é o Mundo.
Não há dúvida de que é uma resposta breve e clara. Mas, nesse caso, porque é
que se diz que o começo das coisas diz respeito a Jano e os seus confins a um
outro deus chamado Término? É que, por causa dos começos e dos confins, dois
meses foram consagrados a estes dois deuses em seguida aos dez outros de Março
a Dezembro, ou seja, Janeiro a Jano e Fevereiro a Término. É por isso que,
diz-se, as Terminais se celebram nesse mês de Fevereiro, tempo da purificação
sagrada, a que se chama Februm, donde
o mês tirou o nome. Então, os começos das coisas diriam respeito a Jano, que é
o Mundo, e os seus confins, termos ou acabamentos (fines) escapar-lhe-iam para serem confiados a um outro deus? Não
reconhecem que tudo o que começa no Mundo, também no Mundo encontrará seu
termo? Que frivolidade! Reduz-se a metade o poder de Jano nas suas funções, e à
sua estátua dão uma cara dupla! Não seria muito mais razoável a explicação das
duas faces se se dissesse que Jano se identifica com Término ao dar-se-lhe uma
face para os começos e outra para os acabamentos? Efectivamente, o que age deve
tomar um e outro em consideração: no decurso da acção, quem não lhe vê o começo
não lhe prevê o termo. É preciso também que a atenção previdente se ligue à
memória do passado: quem esquece o que começou não saberá como irá acabar. Se
os pagãos pensassem que a vida feliz começa neste mundo e acaba fora dele e se,
por este motivo, reduzissem aos começos o poder de Jano, seria certíssimo que
lhe preferissem Término, que não afastariam dos deuses escolhidos. Aliás, mesmo
cá, onde estes deuses partilham entre si os começos e os acabamentos das coisas
temporais, dever-se-ia conceder mais honras a Término. É de facto maior a
alegria quando se dá o trabalho por acabado, ao passo que todo o trabalho
começado continua cheio de inquietações até chegar ao termo. Desde que se
começa, o que acima de tudo apetece, se pretende, se espera e se deseja é o
fim. E não nos alegramos na obra encetada, senão quando ela termina.
CAPÍTULO VIII
Porque é que os adoradores
de Jano, que o representam com duas caras, pretendem também apresentá-lo com
quatro faces.
Mas
passemos à interpretação da imagem bifronte. Dizem que Jano tem duas faces —
uma voltada para a frente, outra para trás — porque a cavidade da nossa boca,
quando a abrimos, parece semelhante ao mundo. É por isso que os gregos chamam (céu) ao palato e alguns poetas latinos
lhe chamam céu palatino; esta cavidade, quando abrimos a boca, tem uma abertura
exterior para os dentes, e uma interior para a garganta. Eis onde foi parar o
mundo por causa de um nome grego ou poético do nosso palato! Que tem isto a ver
com a alma e a vida eterna? Será preciso adorar este deus apenas por causa da
saliva, à qual, sob o céu da boca, se abrem as duas portas para permitirem,
umas vezes engoli-la, outras vezes cuspi-la? Que é que há de mais absurdo do
que não encontrar neste mundo duas portas opostas (por onde ele admitiria
alguma coisa dentro de si ou alguma coisa expeliria para fora de si) e
pretender fazer da nossa boca e da nossa garganta — com as quais o mundo
nenhuma semelhança tem — uma representação deste mundo sob o nome de Jano,
apenas por causa de palato com que Jano se não parece?
Quando
lhe atribuem quatro faces e lhe chamam Jano duplo, interpretam isto como
significando as quatro partes do mundo: como se o mundo pudesse olhar para algo
que está fora de si, como Jano olha por intermédio das suas caras. Acresce que,
se Jano é o mundo e o mundo compreende quatro partes, a imagem de Jano com duas
caras não é verdadeira; ou, se é verdadeira, porque também é costume
designar-se o mundo inteiro sob o nome de «o Oriente e o Ocidente», será que,
ao falar-se das outras partes — do Norte e do Sul —, se pode qualificar o mundo
de geminado tal como se diz geminado Jano de quatro faces? Nada há que permita
ver, em quatro portas abertas, uma, para a entrada e as outras, para a saída,
qualquer semelhança com o mundo, como dizem que encontram semelhança entre a
boca do homem e o bifronte Jano — a não ser, talvez, que Neptuno venha em sua
ajuda, apresentando-lhes um peixe que, além das aberturas da boca e da
garganta, tem ainda as das guelras à direita e à esquerda. Todavia, apesar de
tantas portas, nenhuma alma pode escapar a esta vacuidade, a não ser a que ouve
a Verdade que diz:
CAPÍTULO IX
Poder de Júpiter. Comparação
deste com Jano.
Digam-nos
então que é que pensam de Jove, também chamado Júpiter. «É o deus, dizem eles,
que tem sob o seu poder as causas de tudo o que acontece no mundo». Quão grande
é este poder no-lo atesta Vergílio no célebre verso:
Porque
é que então se lhe antepõe Jano? Deixemos que o citado Varrão, tão douto e tão
arguto, nos responda: «É que, diz ele, em poder de Jano estão os inícios, e no
de Júpiter os acabamentos. É precisamente por isso que se tem Júpiter como rei
de todos. Os inícios são superados pelos acabamentos, porque, embora os inícios
venham antes no tempo, são superados em dignidade pela sua realização».
Palavras sem dúvida justíssimas se se tratasse de distinguir nos factos o seu
início e o seu termo: começar um acto é partir; acabá-lo é chegar ao termo.
Entregar-se alguém ao estudo é um começo; compreender uma doutrina é um
acabamento. E da mesma forma em tudo: primeiro estão os princípios, mas a
cúpula são os finais. Mas isto é questão já resolvida entre Jano e Término.
Mas
o que se atribui a Júpiter são as causas eficientes e não as já realizadas: é
de todo impossível que, mesmo na ordem do tempo, elas sejam precedidas pelo que
está feito ou se começou a fazer. Realmente, quem faz é sempre anterior àquilo
que é feito. Por isso, se os começos dos factos pertencem a Jano, eles não
podem ser antepostos às causas eficientes atribuídas a Júpiter. É que nada se
faz nem começa a fazer-se sem ser precedido pela causa que o faz.
Se
este é o deus em cujo poder estão as causas de todas as naturezas produzidas e
de todas as coisas naturais, se é a este deus que os povos dão o nome de
Júpiter mas honram com tamanhas ofensas e tão depravadas acusações, não há
dúvida que esses povos se tomam réus de um sacrilégio mais horrível do que se
não reconhecessem absolutamente nenhum deus.
Melhor
seria que eles dessem o nome de Júpiter a outro, esse digno de odiosas e
vergonhosas honras, substituindo este por um vão simulacro de que poderiam
blasfemar (como a pedra oferecida a Saturno, diz-se, para que a devorasse como
se fosse um filho), do que representarem Júpiter simultaneamente tonante e
adúltero, que governa o mundo inteiro e chafurda em tanta impudicícia, que tem
nas suas mãos as causas supremas de todas as naturezas e de todos os seres da
natureza e não tem em boa ordem os seus próprios assuntos.
Agora
é a minha vez de perguntar que lugar concedem a Júpiter entre os deuses, se
Jano é o mundo. Varrão definiu os verdadeiros deuses como almas do mundo e
partes deste. E assim, o que não existe não é, dizem, verdadeiro deus. Dirão
eles que Júpiter é a alma do mundo, de tal maneira que Jano será o seu corpo
ou, noutros termos, o mundo visível? Se é isto que dizem, não podem afirmar que
Jano é um deus, porque não é o corpo do mundo que é deus, segundo eles próprios
afirmam, mas a alma do mundo e suas partes. Daí declarar Varrão, com toda a
clareza, que lhe parece que a alma do mundo é um deus e que o próprio mundo é
deus; mas, assim como o homem sábio, composto de corpo e alma, se diz sábio por
causa da sua alma, assim também o mundo se chama deus por causa da sua alma,
embora formado de corpo e alma. De modo que o corpo do mundo só, não é deus —
mas apenas a alma ou o corpo e a alma juntos. Se, portanto, Jano é o mundo e
Jano é deus — para Júpiter poder ser deus, atrever-se-ão a afirmar que ele é
uma parte de Jano? Não será antes a Júpiter que costumam atribuir o ser do
universo, e daí o dito:
Tudo
está cheio de Júpiter.
Portanto,
se querem que Júpiter seja deus e sobretudo rei dos deuses, têm que o conceber
como mundo, e assim poderá, como eles pretendem, reinar sobre os outros deuses
como partes suas. É ainda neste sentido que Varrão, num outro livro que
escreveu acerca do culto dos deuses, cita estes versos de Valério Sorano.
Júpiter
omnipotente, progenitor e progenitora dos reis, das coisas e dos deuses,
progenitor e progenitora dos deuses, deus único e, ele só, todos eles.
Explicam-se
assim no livro estes versos: chamam-lhe varão porque insemina e mulher porque é
inseminada; diz que Júpiter é o mundo que de si emite e em si recebe todas as
sementes. É por isso, acrescenta Varrão, que Sorano escreve: Júpiter progenitor
e progenitora. É também por isso que ele é, ao mesmo tempo, um e tudo, porque o
mundo é uno e em si tudo contém.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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