Leitura espiritual
A Cidade de Deus
Vol. 1
LIVRO
II
CAPÍTULO IX
O que pensavam os antigos
romanos dos desmandos poéticos que os Gregos, seguindo o parecer dos deuses,
quiseram que fossem livres.
O
que acerca disto pensavam os antigos romanos, atesta-o Cícero nos livros que
escreveu sobre A República. Neles diz Cipião no decurso de uma discussão:
Nunca
as comédias poderiam representar com êxito as suas torpezas se os hábitos de
vida o não permitissem. [1]
Os
gregos, mais antigos que os romanos, guardaram na sua opinião imoral uma certa
lógica. Entre eles foi mesmo permitido por lei que se dissesse, numa comédia,
referindo nomes, o que se quisesse acerca de quem se quisesse. Por isso, como
diz o «Africano» nos mesmos livros:
Quem
é que ela não tem atingido? ou antes — quem é que ela não vexou? a quem poupou?
Que tenha maltratado homens conhecidos por ímprobos, revoltosos contra o
estado, como Cleone, Cleofonte ou Hipérbolo — seja! [2].
Continua:
— Embora
cidadãos deste jaez devam ser postos a descoberto pelo censor de preferência a
sê-lo pelo poeta — suportemo-lo. Mas a um Péricles que governou a sua própria
cidade durante anos, com a maior autoridade, na paz e na guerra, vê-lo
ultrajado em versos representados em cena não desagrada menos do que se o nosso
Plauto ou Névio quisessem maldizer a Públio e a Gneu Cipião, ou Ceálio a Marco
Catão [3].
E,
um pouco depois, acrescenta:
—
Pelo contrário, as nossas Doze Tábuas, tão parcimoniosas em sancionar a pena
capital, eram-lhe porém favoráveis quando alguém cantasse ou compusesse um
poema atentando contra a reputação de alguém. Perfeitamente! Aos juízos dos
magistrados e às suas legítimas decisões é que se deve expor a nossa vida, mas
não devemos expô-la à imaginação dos poetas — e não devemos deixar que se
profira nem um só ultraje a não ser com a condição de podermos responder e
defendermo-nos em Tribunal [4].
Julguei
que devia citar este texto do livro quarto de A República de Cícero, suprimindo
ou alterando alguns pormenores para uma melhor compreensão. Vem muito a
propósito do que pretendo explicar, se puder. Diz em seguida mais umas coisas e
conclui esta passagem mostrando como aos antigos Romanos desagradava enaltecer
ou ultrajar em cena um homem ainda em vida. Mas, como disse, os Gregos
preferiram permiti-lo, porque lhes pareceu mais conveniente embora mais
impudente; viam que os deuses aceitavam e lhes agradavam as infâmias não só dos
homens mas também as dos próprios deuses, compostas para o teatro, fossem elas
ficções dos poetas ou autênticas perversidades representadas no palco. E oxalá
elas provocassem apenas o riso nos seus adoradores e não também a imitação.
Teria sido orgulho demais respeitar a reputação das autoridades do Estado e dos
cidadãos quando nem os deuses quiseram que a sua fama fosse poupada.
CAPÍTULO X
Com que arte de causar dano
pretendem os demónios que sejam narrados os seus falsos ou verdadeiros crimes.
Alegam
em defesa dos deuses que o que deles se diz não é verdadeiro mas falso.
Precisamente isso ainda mais execrável é, se tomares em consideração uma
piedade autêntica. Mas, se reflectires na malícia dos demónios, que é que
haverá de mais ardiloso e de mais hábil para enganar? Se se fala mal de um
honesto, bom e útil príncipe da pátria — não é isso tanto mais indigno quanto
mais afastado da verdade e mais alheio à sua vida? Que tormentos bastarão
então, quando essa abominável, essa tamanha injúria se pratica contra um deus?
Mas
os espíritos malignos, que eles têm por deuses, permitem que os homens lhes
atribuam crimes que não cometeram, contanto que as suas mentes se deixem
envolver nessas crenças como que em redes e os arrastem assim consigo para o
suplício que lhes está destinado. Ou então quem os cometeu foram homens que
gostam de ser havidos por deuses, que se comprazem nos erros humanos, pelos
quais com mil artes de causar dano e de enganar, se propõem mesmo serem
adorados. Ou ainda tais crimes por nenhum homem foram cometidos mas esses
espíritos tão falazes aceitam de boa vontade que eles se inventem acerca dos
deuses para que assim pareça que desceu do próprio céu à terra uma autoridade
bastante idónea para perpetuar esses crimes e torpezas.
Como,
porém, os Gregos se sentiam escravos de tais deuses, pensaram que, sendo estes
vítimas de tantos e tão grandes ultrages no teatro, de forma nenhuma deviam ser
os homens poupados pelos poetas: procediam assim porque pretendiam
assemelhar-se aos seus deuses e porque receavam provocar a cólera destes se
eles próprios, simples homens, gozassem de melhor reputação e, por isso, lhes
passassem à frente.
CAPÍTULO XI
Entre os Gregos, os actores
eram admitidos à administração pública, porque seria injusto que fossem
desprezados pelos homens os que aplacavam os deuses.
Nesta
ordem de ideias consideraram os actores destas farsas dignos da não pequena
honra de cidadania. Assim também no dito livro A República, se recorda que não
só o ateniense Esquines, varão eloquentíssimo, que representou tragédias quando
adolescente, se apossou da governação, mas também Arostodemo, igualmente actor
trágico, foi várias vezes enviado pelos Atenienses a Filipe como embaixador
principalmente para os assuntos de paz e de guerra. Não lhes parecia razoável
que os actores da arte e dos jogos cénicos em que os deuses se compraziam,
fossem atirados para o número dos desacreditados.
Era
na verdade torpe, mas de certo totalmente de acordo com os seus deuses, o que
faziam os Gregos que não ousavam subtrair à língua dos poetas e dos histriões a
vida dos cidadãos que estava a ser lacerada. Viam que era depreciada a vida dos
deuses com consentimento e prazer dos próprios deuses. Por isso, longe de na
cidade sentirem desprezo para com os actores de tais torpezas nos teatros,
vendo quão agradáveis eram para com os deuses seus senhores, consideraram-nos
credores das mais altas honrarias.
De
facto, que razões se poderiam encontrar para os Gregos honrarem os sacerdotes —
porque, por seu intermédio, ofereciam vítimas agradáveis aos deuses— , mas
considerarem infames os actores por cujo intermédio se oferecia este prazer ou
honra reclamada pelos deuses que, em caso de omissão, teriam sofrido as
consequências da sua cólera? Principalmente atendendo a que Labeão [5],
que é tido pelo melhor perito neste género de matérias, distingue as divindades
boas das divindades más pela diversidade do culto: e assim as más aplacam-se
com matanças e súplicas tristes — e as boas com homenagens alegres e festivas
tais como, segundo ele próprio diz, jogos, banquetes e lectistemia [6].
De
tudo isto faremos, mais à frente, se Deus nos ajudar, um exame mais pormenorizado.
Por agora, no que respeita ao presente assunto, quer se tributem todas as
honras a todos os deuses, como se todos fossem bons (não me parece que haja
deuses maus: e, todavia, todos estes, por serem espíritos imundos, são maus),
quer se lhes atribuam certas honras a cada um conforme a sua categoria, como é
o parecer de Labeão, estão absolutamente certos os Gregos ao honrarem tanto os
sacerdotes, ministros dos sacrifícios, como os actores que exibem os
espectáculos. Não aconteça que sejam convencidos de injustiça: em relação a
todos os deuses, se os jogos a todos são agradáveis; ou então, o que é mais
grave, em relação aos deuses que julgam bons, se os jogos só a estes agradam.
CAPÍTULO XII
Os Romanos, tirando aos
poetas a liberdade em relação aos humanos e concedendo-a em relação aos deuses,
pensaram melhor de si do que dos deuses.
Ora
os Romanos, como se gloria Cipião na dita disputa de A República, não
permitiram que a sua vida e reputação estivessem sujeitas às injúrias dos
poetas e até prescreveram que devia ser condenado à morte o que ousasse compor
um poema desse género. Isto que decidiram é realmente bastante honroso em
relação a si próprios, mas, em relação aos seus deuses, é orgulhoso e ímpio.
Sabendo que estes se deixavam denegrir pelos ultrajes e maldições dos poetas
não apenas com paciência, mas até com prazer — consideram-se eles menos merecedores
dessas injúrias que os seus deuses. E até se defenderam deles ao abrigo da lei,
ao passo que os deuses até isso misturaram nas suas solenidades e ritos
sagrados. Afinal, Cipião, será que tu louvas a licença negada aos poetas
romanos de infligirem uma ofensa a qualquer dos Romanos, quando estás a ver que
eles não poupam nenhum dos vossos deuses? Será que te parece mais digna de
estima a vossa Cúria do que o Capitólio, mais até Roma sozinha do que todo o
Céu — pois que os poetas estão proibidos, mesmo por lei, de exercitarem a sua
envenenada língua contra os teus compatriotas, mas podem tranquilamente lançar
contra os teus deuses tanta zombaria sem que um único senador, um único censor,
um único governante, um único pontífice o proíbam? Evidentemente que seria
indigno que Plauto ou Névio dissessem mal de Públio e de Gneu Cipião, ou Cecílio
de M. Catão; mas foi digno que o vosso Terêncio excitasse a perversidade dos
adolescentes com os vícios de Júpiter Máximo e Óptimo?
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[1]
Nunquam
comoediae nisi consuetudo vitae pateretur, probare sua theatris plagitia
potuissent. Cic., De republica, VI, 11-12.
[2]
Quem
ilia non adtigit? Vel potius quem non vexavit? cui pepercit? Esto, populares
homines inprobas, in re publica sedetiosos, Cleonem, Cleophontem Hyperbolum
laesit. Id. Ib.
[3]
Patiamur
etsi ejus modi cives a censore melius est quam a poeta notari. Sed Peridem, cum
jam suae civitati maxima autoritate plurimos annos domi et belli praefuisset,
uiolari versibus; et eos agi in scaena, non plus decuit quam si Plautus noster
voluisset, aut Nevius Publio et Gneo Scipioni aut Caecilius Marco Catoni
maledicere. Id. Ib.
[4]
Nostrae
contra duodecim tabulae cum perpaucas res capite sanxissent, in his hanc quoque
sanciendam putaverunt, si quis occentavisset, sive carmen condidisset, quod
infamiam faceret flagitiumne alteri. Preclare! Judiciis enim magistratuum,
disceptationibus legitimes propositam vitam, non poetarum ingeniis habere
debemus; nec probrum audire, nisi ea lege, ut respondere liceat, et judicio
dependere. Id. Ib.
[5]
Acerca
deste misterioso Labeão (houve um M. Antistius Labeo jurisconsulto,
contemporâneo de Augusto; um Cornelius Labeo, citado por Macróbio, Sénio e
Lido, autor de De oráculo Apollinis Clarii e de De diis animalibus que parece
ser o autor citado por Santo Agostinho). V. S. Muelleneisen, De G. Labeonis
fragmentis, studiis, assectatoribus, Marburgo, 1889; Gabarron, Amobe, son
oeuvre, Paris, 1921; George E. Mc Cracken, Amobius o f Sicca, The case against
The pagans, Westminster, 1949, t. I, p 39 e segs e 259 e segs; Boehm, De
Comelii Labeonis aetate, Königsberg, 1913; Niggetiet, De Comelio Labeone,
Münster, 1908; Festugière, La Doctrine des « Viri Novi» sur l origitte et sur
la vie des âmes d’aprés Amobe, em Memorial lagrange, Paris, 1940, pp 97-131.
[6]
Lectistemium
(pl.-a) era um banquete ritual em honra dos deuses. Colocavam-se as estátuas
dos deuses em leitos (lectum, pl.-a) em frente da mesa com iguarias como se
eles fossem os comensais.
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