Vol. 1
LIVRO
III
CAPÍTULO
V
Não
está provado que os deuses tenham punido o adultério de Páris pois não se
vingaram do da mãe de Rómulo.
Mas ponhamos de parte se Vénus teria gerado
Eneias da sua união com Anquises, ou se, da união com a filha de Númitor, Marte
teria gerado Rómulo. Uma questão semelhante se levanta nas nossas Escrituras.
Nelas se pergunta se os anjos prevaricadores se uniram às filhas dos homens,
nascendo daí os gigantes, isto é, os homens de grande estatura e grande força
que então povoaram a Terra. Por agora, limitamo-nos a esclarecer este duplo
problema: se é verdade o que entre eles se lê acerca da mãe de Eneias e do pai
de Rómulo — como é que podem desagradar aos deuses os adultérios dos homens, se
eles os praticam entre si de mútuo acordo? Se, porém, é falso — não podem então
irritar-se com os verdadeiros adultérios dos homens, eles que se comprazem com
os falsos deles. A isto acresce que, se não se acredita no adultério de Marte
para se não crer também no de Vénus, não há qualquer razão para sustentar que a
mãe de Rómulo exerceu o coito com um ser divino. Ela era vestal. Por isso os
deuses deveriam vingar nos Romanos este infame sacrilégio mais severamente do
que vingaram o adultério de Páris nos Troianos. Na verdade, os próprios antigos
Romanos enterravam vivas as vestais surpreendidas em flagrante crime de
fornicação, ao passo que, condenando-as embora, não puniam com a morte as
mulheres adúlteras. Chegavam a defender mais severamente os santuários, que
consideravam divinos, do que os leitos conjugais humanos.
CAPÍTULO
VI
Os
deuses não se vingaram do fratricídio de Rómulo.
Acrescento ainda que, se os crimes dos homens
desagradaram a esses numes de tal maneira que, ofendidos pelo acto de Páris, abandonaram
Tróia ao ferro e ao fogo, mais os deveria mover contra os Romanos o fratricídio
[i] de
Rómulo do que contra os Troianos o ultraje de um marido. Era mais de provocar a
cólera o fratricídio numa cidade que nascia do que o adultério numa cidade que reinava.
Nem interessa à questão de que tratamos, se Rómulo teria feito ou mandado fazer
o que muitos negam por impudência, muitos põem em dúvida por vergonha e muitos
dissimulam por desgosto. É notório o que consta: que o irmão de Rómulo não foi
assassinado por inimigos nem por estrangeiros. Se Rómulo o perpetrou ou ordenou
— o que é certo é que ele era chefe dos Romanos mais do que Páris o era dos
Troianos. Porque é que então o raptor da esposa de outrem provocou a ira dos
deuses contra os Troianos e este matador de seu irmão atraiu a protecção dos
mesmos deuses para os Romanos? Mas, se aquele crime é alheio a acto ou a ordem
de Rómulo, então, porque sem dúvida ele deve ser punido, foi toda a cidade que
o cometeu, uma vez que não lhe ligou importância; e a cidade matou, não apenas
um irmão, mas, o que é pior, um pai. Efectivamente tanto um como o outro foram
seu fundador, embora um tenha sido impedido de reinar por ter sido suprimido
criminosamente. Não se vê, parece-me, o que Tróia fez de mal para merecer que
os deuses a abandonassem e permitissem a sua destruição — e o que é que Roma
fez de bom para os deuses habitarem nela e permitirem o seu progresso. A não
ser que tenha sido porque, tendo fugido vencidos de Tróia, buscaram entre os
Romanos refúgio para os enganarem de maneira idêntica. Pior ainda:
mantiveram-se lá (em Tróia) para enganarem, como era seu hábito, os que iam
agora habitar as mesmas terras — e cá (em Roma), exercendo ainda melhor os
mesmos artifícios da sua arteirice, recolheram as maiores honrarias.
CAPÍTULO
VII
Destruição
de Tróia, consumada por Fímbria, general de Mário.
De facto, quando já tinham deflagrado as
guerras civis, que é que de detestável tinha cometido Tróia para ser destruída,
com mais ferocidade e crueldade do que outrora pelos Gregos, por Fímbria, o
pior dos partidários de Mário? Porque, então, muitos puderam fugir dela e
muitos outros feitos prisioneiros, embora na servidão, pelo menos viveram. Mas
Fímbria logo de início publicou um edito para a ninguém se poupar, e queimou
toda a cidade e todos os homens que nela estavam. Isto mereceu ílion, não dos
Gregos a quem tinha irritado com a sua iniquidade, mas dos Romanos nascidos da
sua desgraça. Mas os deuses, que eram comuns, nada fizeram ou nada puderam,
esta é que é a verdade, para afastarem a desgraça. Será que então
se retiraram todos, abandonando altares e santuários,
estes deuses [ii]
que mantinham erguida aquela fortaleza
restaurada depois do incêndio e da destruição dos antigos gregos? Mas se eles
se retiraram, eu pergunto qual a razão — e na verdade acho tanto melhor a dos
habitantes quanto pior a dos deuses. Efectivamente, aqueles fecharam as portas
da cidade a Fímbria para a guardarem intacta para Sula. Por isso Fímbria,
furioso, queimou-os ou antes aniquilou-os completamente. Até então Sula era o
chefe do melhor partido político. Até então pretendia recuperar pelas armas a
República. Ainda não tinham surgido os maus resultados destes bons começos. Que
podiam, pois, fazer de melhor os cidadãos daquela cidade? Que coisa mais
honesta, mais fiel, mais digna da sua estirpe romana do que conservar a cidade
para a melhor causa dos Romanos e fechar as portas ao parricida da República
Romana? Mas, olhai, defensores dos deuses, em que tamanha desgraça se lhes
converteu essa decisão! Os deuses abandonaram os adúlteros e entregaram ílion
às chamas dos Gregos para que das suas cinzas nascesse uma Roma mais casta.
Mas, porque é que depois abandonaram essa mesma cidade, aparentada com os
Romanos, que não se revoltou contra Roma, sua nobre filha, mas antes guardou a
mais constante e religiosa fidelidade ao seu partido mais justo? E porque é que
deixaram que ela fosse destruída não pelos fortes varões Gregos mas sim pelo
mais imundo dos Romanos? Se desagradava aos deuses a causa dos partidários de
Sula, a favor do qual aqueles desgraçados conservaram a cidade, fechando-lhe as
portas — porque então prometeram e predisseram eles a Sula tamanhos sucessos?
Não se reconhecem aqui os aduladores dos felizes, mais do que os defensores
dos infelizes? Mesmo então ílion não foi destruída devido ao abandono dos
deuses. Com efeito, os demónios sempre vigilantes para enganarem, fizeram o que
puderam. Todas as suas estátuas foram derrubadas e queimadas com a cidade. Apenas,
como escreve Lívio, se mantem íntegra, em tamanha ruína do seu templo, a de
Minerva, não para que se diga em seu louvor:
Ó deuses pátrios sob cuja protecção está sempre Tróia [iii],
mas para que se não diga em sua defesa:
Retiram-se todos, abandonando altares e santuários, estes
deuses [iv].
Na realidade, o que lhes foi
permitido fazer, não era destinado a provar o seu poder, mas a mostrar a sua
presença. [v]
CAPÍTULO
VIII
Deveria
Roma confiar nos deuses de ílion?
Com que prudência, depois do exemplo de
Tróia, acabou Roma por confiar a sua guarda aos deuses de Tróia! Alguém dirá
que eles já se tinham habituado a habitar em Roma quando ílion caiu sob os
ataques de Fímbria. Porque é que então se manteve de pé a estátua de Minerva?
Se estavam em Roma quando Fímbria destruiu ílion, então talvez estivessem em
ílion quando Roma foi tomada e incendiada pelos Gauleses! Mas como têm um
ouvido agudíssimo e são ligeiríssimos nos seus movimentos, depressa voltaram,
ao grasnar dos gansos, para salvarem pelo menos a colina Capitolina que se
tinha aguentado. De resto, para virem defender o resto da cidade, foram
avisados tarde demais!
CAPÍTULO
IX
Deverá
considerar-se como um dom dos deuses a paz que se verificou durante o reinado
de Numa?
Crêem eles ainda que Numa Pompílio, sucessor
de Rómulo, foi ajudado pelos deuses a manter a paz durante todo o decurso do
seu reinado e a manter fechadas as portas de Jano, que costumavam estar abertas
em tempo de guerra, precisamente porque instituiu entre os Romanos muitos ritos
sagrados.
Dever-se-ia agradecer àquele homem por
tamanho sossego se ele tivesse sabido consagrá-lo a tarefas salutares e se,
renunciando a uma perniciosíssima curiosidade, procurasse o verdadeiro Deus com
verdadeira piedade. Não foram, porém, os deuses que concederam aquele sossego,
mas provavelmente tê-lo-iam enganado menos se o não tivessem encontrado ocioso!
É que quanto menos ocupado o encontraram tanto mais o ocuparam eles. Conta-nos
Varrão o que é que ele maquinava e com que habilidades poderiam associar-se ele
e a sua cidade a tais deuses. Mas se ele terá agradado ao Senhor, é assunto que
será tratado mais pormenorizadamente na sua altura. Por agora trata-se, dos
benefícios dos deuses. E é um grande beneficio a paz,' mas é um beneficio do
verdadeiro Deus, como o sol, como a chuva e as outras vantagens da vida, que,
em muitos casos, beneficiam também os ingratos e os perversos. Mas, se foram os
deuses que concederam a Roma e a Pompílio esse tão grande beneficio, porque é
que nunca mais o concederam ao império romano durante os períodos mais dignos
de louvor? Será que os ritos sagrados, quando foram instituídos, eram mais
úteis do que, quando já instituídos, se celebravam? Realmente, eles ainda não
existiam então: começaram a existir desde que se acrescentaram ao culto. Mas
depois já existiam e eram observados em vista da sua eficácia. Como é então que
aqueles quarenta e três anos, ou trinta e nove, como querem outros, passaram em
tão longa paz quando reinava Numa, e depois, apesar da celebração dos ritos,
apesar do convite aos deuses para lhes presidirem, apesar da sua protecção e da
sua defesa, durante o longo período que se estende da fundação de Roma até
Augusto, se assinala como uma grande maravilha, apenas um ano durante o qual,
após a Primeira Guerra Púnica, os Romanos puderam fechar as portas da guerra?
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] Segundo
a lenda Rómulo, fundador de Roma, matou seu irmão Remo, também da mesma cidade
co-fundador.
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