Vol. 1
LIVRO
II
No
qual se discutem os males que, antes de Cristo, quando vigorava o culto dos
falsos deuses, os Romanos sofreram; — e se demonstra:
—
primeiro — que se acumularam, com a colaboração dos falsos deuses, os maus
costumes e os vícios da alma, únicos, ou pelo menos, os mais graves males
dignos de consideração;
—
segundo — que os Romanos não foram destes males libertados por esses falsos
deuses.
CAPÍTULO I
Método a ser aplicado por
necessidade de discussão.
Se
a inteligência humana não ousasse, com o seu doentio comportamento, opor o seu
orgulho à evidência da verdade mas fosse capaz de submeter a sua debilidade à
sã doutrina, como que a uma medicina, até se recuperar com a ajuda de Deus
alcançada por uma fé piedosa, — não haveria necessidade de longos discursos
para tirar do erro qualquer vã opinião: bastaria que quem está na verdade a
expusesse com palavras suficientemente claras.
Mas
agora estamos perante a maior e a mais sombria doença dos espíritos insensatos.
Empenham-se em defender suas irracionais motivações como se fossem a própria
razão e a própria verdade e isto mesmo depois de discutirem todos os argumentos
que um homem pode fornecer a outro homem, não se sabe se por demasiada cegueira
que nem as coisas mais claras distingue, ou se pela mais obstinada contumácia
que os impede de ver o que se lhes antolha. O certo é que, na maioria dos
casos, se torna imprescindível alargar a exposição dos assuntos, por si já
claros, não como se tivessem de ser expostos a quem tem olhos para ver, mas
antes para que os possam tocar com as mãos os que andam às apalpadelas, meio
cegos.
Porém,
se julgamos que devemos ripostar sempre àqueles que nos respondem, quando é que
acabaríamos de discutir? Até quando estaríamos a falar? Os que ou não podem
compreender o que se diz ou estão, na discussão, tão endurecidos na contradição
que, mesmo que cheguem a compreender, não prestam atenção, e continuam a
responder, conforme está escrito «proferem
iniquidades e não se cansam de falar em
vão!» [1];
se nos propuséssemos refutar as suas contradições tantas vezes quantas eles,
com cabeças obstinadas, se propõem não pensar no que dizem, atentos apenas em
contradizerem de qualquer modo os nossos argumentos,— dar-te-ás conta de quão
interminável, penoso e infrutífero isto seria.
Por
isso nem a ti, filho meu Marcelino, nem aos outros, a favor dos quais este meu
trabalho, espontaneamente, por amor a Cristo, vai dirigido, vos quereria como
juízes dos meus escritos, se viésseis a ser daqueles que procuram sempre uma
resposta quando ouvem alguma objecção ao que estão lendo. Não aconteça que se
tornem semelhantes àquelas mulherzinhas de que fala o Apóstolo:
Sempre
a aprenderem mas incapazes de conhecerem a verdade [2].
CAPÍTULO II
Do que foi exposto no livro
primeiro.
No
livro anterior tinha-me proposto tratar, com a ajuda de Deus, da sua Cidade e
pus mãos a toda a obra. O que primeiro me ocorreu foi que devia responder aos
que atribuem à religião cristã todas estas guerras que estão esfacelando o
mundo e principalmente a recente devastação da Urbe Romana pelos bárbaros, isto
porque foi proibido por essa religião servir aos demónios com nefandos
sacrifícios. Pois deviam antes prestar honras a Cristo, já que foi por causa do
seu nome e contra os estabelecidos costumes de guerra que os bárbaros lhes
ofereceram para sua liberdade os mais espaçosos lugares para lá procurarem
asilo. E para muitos o facto de se declararem servidores de Cristo, sincera ou
hipocritamente, impelidos pelo medo, foi de tal modo respeitado que até julgaram
proibido o que por direito de guerra lhes era permitido. Daí a questão: porque
é que os favores divinos se estendem também aos ímpios e ingratos — e porque é
que tiveram que sofrer os mesmos horrores causados pelo inimigo tanto os
piedosos como os ímpios? Procurarei aclarar esta questão implícita em muitas
outras (já sabemos que tanto os dons de Deus como as desgraças humanas estão
sucedendo todos os dias quer aos que se comportam bem quer aos que se comportam
mal, misturados como estão uns com os outros sem distinção — o que a muitos
perturba).
Para
fazê-lo segundo o plano da obra empreendida, por vezes me detive principalmente
para consolar as santas e piedosamente castas mulheres nas quais pelo inimigo
foi praticado algo que lhes acarretou a dor da vergonha embora não lhes
arrebatasse a firmeza da castidade. Não vão arrepender-se de viver, elas que
não têm de que se arrepender.
De
seguida, falei um pouco contra aqueles que atormentam os cristãos afectados
pelos ditos factos adversos e que principalmente atormentam com a mais
impudente petulância o pudor das mulheres, humilhadas sim, mas castas e santas,
quando na realidade são eles os mais perversos e irreverentes, totalmente
degenerados daqueles romanos cujos feitos, tantos e tão gloriosos, são
exaltados e cantados nas narrativas literárias, continuando eles os mais
violentos inimigos de tal glória. A Roma que fora fundada e engrandecida pelos
trabalhos dos antepassados, tomaram-na eles mais disforme quando estava de pé
do que quando caiu em ruínas: na verdade, quando caiu em ruínas, foram as suas
pedras e suas vigas que ruíram, ao passo que na vida destes já não ruíram a
fortaleza e os ornatos dos seus muros, mas a fortaleza e os ornatos dos seus
costumes. Um fogo de paixões, mais funesto do que o que consumiu os tectos
daquela Urbe, devorou os seus corações.
Foi
nestes termos que acabei o primeiro livro. Em seguida, propus-me falar dos
males por que passou, desde a sua origem, aquela cidade, tanto ela própria como
as províncias sob o seu domínio, males esses que, todos eles, atribuiriam à
religião cristã se já então a doutrina evangélica se pudesse fazer ouvir em
acusação sem peias contra os seus falsos e falazes deuses.
CAPÍTULO III
Necessidade de recorrer à
história para demonstrar que males aconteceram aos Romanos quando, antes da
propagação da religião cristã, prestavam culto aos deuses.
Lembra-te
porém de que, quando recordo estas coisas, o faço contra os indoutos cuja
ignorância deu origem a este divulgado provérbio: «não chove — a culpa é dos
cristãos». Sem dúvida que os que foram educados nas disciplinas liberais e
gostam de história conhecem estes factos. Todavia, para tom arem extremamente
hostis para connosco as turbas ignaras, fingem ignorá-lo e procuram convencer o
vulgo de que quem tem a culpa das calamidades que o género humano tem de padecer
em certos lugares e tempos é o nome de Cristo que por toda a parte se está a
difundir com irresistível fama e gloriosíssima popularidade, contra os deuses.
Connosco voltem a recordar-se das calamidades que tantas e tão variadas vezes
assolaram Roma, antes de Cristo aparecer em carne, antes de ser conhecido entre
os povos o seu nome cuja glória em vão invejam; e, se puderem, defendam dessas
calamidades os seus deuses, se é que lhes prestam culto os seus devotos para
não sofrerem desses males. Pretendem imputar-nos essas calamidades se agora as
têm que suportar. Porque é que os seus deuses permitiram que as calamidades de
que vou falar acontecessem aos seus devotos antes que o nome de Cristo, já
público, os enfrentasse e proibisse os seus sacrifícios?
CAPÍTULO IV
Os devotos dos deuses nenhum
preceito de vida honrada receberam deles e até nos seus actos de culto
praticavam torpezas.
Em primeiro lugar — porque é que os deuses
deles não quiseram interessar-se pelos seus próprios costumes para que se não
tomassem tão maus? Porque, realmente, o Deus verdadeiro com toda a razão pôs de
lado os que o não veneravam. Mas porque é que esses deuses não ajudaram com
algumas leis, para bem viverem, os seus adoradores, homens tão ingratos que se
queixam por se ter proibido o seu culto? Com certeza que convinha que, assim
como estes se interessavam pelo seu culto, assim aqueles se interessassem pelos
seus actos.
Mas
responderão que ninguém é mau senão por vontade própria. Quem é que o vai
negar? Todavia, pertencia aos deuses conselheiros não ocultarem aos povos seus
adoradores os preceitos de uma boa vida, mas antes mostrá-los em clara
explanação. Pertencia-lhes até pelos seus vates citar e repreender os que
pecam; ameaçar publicamente com castigos os que procediam mal; oferecer prémios
aos que vivem rectamente. Quem alguma vez o proclamou em alta voz e bom som nos
templos dos seus deuses?
Também
nós, quando éramos adolescentes, vínhamos outrora a esses espectáculos
ridículos e sacrílegos; víamos os arrebatamentos, ouvíamos os flautistas;
deleitávamo-nos com as obscenas representações que se exibiam em honra dos
deuses e das deusas* da Virgem Celeste e de Berecíntia, mãe de todos. No dia
solene da sua purificação, junto da sua liteira, eram cantaroladas perante o
público, pelos mais vis comediantes, coisas tais que de os ouvir se
envergonharia, já não digo a mãe dos deuses, mas a mãe de qualquer dos
senadores ou homens de bem, e até a mãe desses palhaços. É que a vergonha
humana que qualquer deve aos seus pais, nem a própria depravação pode apagar.
Todavia tal espectáculo, torpe de palavras e de actos obscenos, que os actores
teriam vergonha de ensaiar em sua casa diante de suas mães, representavam-no
eles em público diante da mãe dos deuses e na presença de enorme multidão de
ambos os sexos que o estava a ver e a ouvir. Se era levada pela curiosidade que
a multidão assistia ao espectáculo, pelo menos, envergonhada e ofendida no seu
pudor, devia afastar-se dele.
Se
aquilo é sagrado — que será um sacrilégio? Se aquilo é purificação — que será a
inquinação? E a isto chamavam Fercula
[3]
(pratos — iguarias) como se se celebrasse um banquete em que os demónios
imundos se fartassem com iguarias suas. Quem não se aperceberá de que categoria
eram os espíritos que se deleitavam com tais obscenidades? Só quem ignore por
completo a existência de espíritos imundos que com o nome de Deus nos enganam,
ou quem leve uma vida tal que prefira ao verdadeiro Deus tê-los a eles por
propícios, ou os receie quando irados.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[3]
Ferculum
(pl. fercula), é um derivado do verbo fero (transportar), pelo que o seu
significado próprio é «o que serve para transportar». Daí o significado ora de
«liteira, em que são transportadas pessoas, ora de «prato», bandeja, em que
são transportadas comidas, iguarias; e, finalmente, como no caso presente,
tomando-se o conteúdo pelo continente, o de «iguarias». V. M. Bréal et An.
Bailly in Leçons de Mots — Dict. Etym. Lat., Paris, p. 90 Cfr. Horácio in Sat.
II, 6, 104. V. ainda Ernout-Meillet, Dict. Etym, de la langue latine, p. 346.
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