06/01/2017

Leitura espiritual


Leitura espiritual



A Cidade de Deus 

Vol. 1

LIVRO II

CAPÍTULO XIX

Corrupção do Estado Romano antes de Cristo ter feito desapa­recer o culto dos deuses.

Eis como o Estado Romano (não sou eu o primeiro a dizê-lo mas, muito antes da vinda de Cristo, o disseram os seus autores e deles o aprendemos nós, pagando-lhes para estudar)

pouco a pouco se foi transformando da mais bela e da mais virtuosa (república) na pior e mais corrompida [i].
Eis como, antes da vinda de Cristo,

os costumes dos antepassados se foram precipitando, não pouco a pouco, como outrora, mas como uma torrente. A juventude es­tava de tal forma corrompida pelo fausto e pela cobiça [ii]...

Leiam-nos os preceitos dados ao Povo Romano pelos seus deuses contra o fausto e a avareza! Oxalá tivessem apenas omitido os preceitos respeitantes à castidade e moderação e não lhes tivessem exigido mesmo acções vergonhosas e de ignomínia, exercendo assim nelas uma autoridade perniciosa pela sua autoridade falsamente divina! Leiam os nossos preceitos — e tantos são — contra a avareza e o fausto, quer nos profetas, quer no Santo Evangelho, nos Actos dos Apóstolos ou nas Epístolas! Lá verão como dos povos, de toda a parte para isso reunidos, com que competência, com que autoridade divina esses preceitos ressoam, não com o barulho das contendas filosóficas mas com o estrondo dos oráculos de Deus troando das nuvens! E, to­davia, continuam a não imputar aos seus deuses que o Estado se tornou antes da vinda de Cristo no pior e mais depravado devido ao fausto, à avareza, aos costumes cruéis e torpes. Mas de tudo por que estão nestes tempos passando devido à sua soberba e aos seus prazeres acusam a religião cristã. Se os reis da Terra e todos os povos, os governantes e todos os juízes da Terra, os jovens e as donzelas, os velhos com os novos, toda a idade adulta de ambos os sexos, os cobradores de impostos e os soldados de que fala o Baptista João, ouvissem e praticassem estes preceitos sobre os justos e bons costumes — a repú­blica teria ornado as terras já cá com a felicidade da vida presente e teria subido até ao cume da vida eterna para conseguir um reinado de completa felicidade!

Mas porque este ouve, aquele despreza e a maioria é mais amiga das blandícias dos vícios do que da útil aspereza das virtudes, ordena-se aos servidores de Cristo, sejam eles reis ou governantes, juízes ou militares, soldados das províncias, ricos ou pobres, livres ou servos de ambos os sexos, que tolerem o Estado se for necessário, mesmo sendo o pior e mais depravado e que adquiram para si, pelo preço de uma tal tolerância, uma morada esplendorosa na santíssima e augustíssima cúria dos anjos, na república celeste onde a vontade de Deus é lei.

CAPÍTULO XX

A felicidade de que queriam gozar e o género de vida que queriam levar os que acusam os tempos da religião cristã.

A verdade é que tais adoradores e amigos desses deuses, dos quais se comprazem em ser imitadores até no crime e na depravação, não têm a menor preocupação em que a república seja má e tão corrompida. «Contanto que ela se aguente, dizem eles, contanto que floresça atulhada da abundância e gloriosa em vitórias ou — o que ainda é melhor— se mantenha numa paz firme, que nos importa o resto? O que acima de tudo interessa é:
— que cada um aumente cada vez mais as suas riquezas;
— que estas cubram as prodi­galidades diárias com que o pode­roso conserva submisso o débil;
— que os pobres, procurando encher a barriga, estejam dispostos a agradar aos ricos;
— que sob a sua protecção disfrutem duma pacífica ociosidade; — que os ricos abusem dos pobres, aumentando assim a sua clientela para serviço do próprio fausto;
— que os povos dêem os seus aplausos não aos defensores dos seus interesses, mas aos generosos com os seus vícios;
— que não se dêem ordens difíceis nem se proíba o que é impuro; — que os reis se preocupem, não com o bem, mas com a submissão dos seus súbditos;
— que as províncias sirvam aos seus governadores, não como a moderadores dos costumes mas como a donos dos seus bens e provedores dos seus prazeres;
— que os honrem, não com sinceridade mas iníqua e servilmente os temam; — que as leis se apliquem, mais para que ninguém cause dano à vinha alheia do que para defender a vida própria;
— que ninguém seja levado perante os juízes a não ser quando cause danos aos bens, à casa, à saúde, ou à vida de outrem contra a sua vontade;
— quanto ao resto, que cada um faça o que lhe apetecer dos seus bens, com os seus bens ou com quem se lhe ponha à disposição;
— que haja prostitutas públicas em abundância, quer para todos os que as quiserem gozar, quer, principalmente, para os que não podem ter uma particular;
— que se construam enormes e sumptuosos edifícios; — que sejam frequentes e opíparos os festins;
— que, onde lhes aprouver, cada um possa, de dia ou de noite, jogar, beber, vomitar, dissolver-se;
— que por toda a parte ressoe o barulho das danças; — que os teatros fervam com gritos de impudica alegria e todo o género de paixões, as mais cruéis e as mais infames;
— que seja considerado como inimigo público aquele a quem esta felicidade desagrada;
— e se algum pensar em alterá-la ou suprimi-la, que a multidão, senhora da sua liberdade, o afaste dos nossos ouvidos, o expulse de casa, o tire de entre os vivos;
— que se tenham por verdadeiros os deuses que se preocuparam em proporcionar aos povos esta felicidade e em conservar aquela de que já disfrutavam;
— que sejam vene­rados como quiserem, que exijam os jogos que lhes apetecerem, tal qual como os desejarem obter dos seus adorado­res: façam apenas com que tal felicidade não seja posta em perigo nem pelo inimigo, nem pela peste, nem por qualquer calamidade».

Quem de são juízo não comparará esta república, não digo com o Império Romano, mas com o palácio de Sardanapalo? Outrora este rei entregou-se de tal forma aos prazeres que mandou inscrever isto na sua sepultura:

Agora que estou morto só considero como bens os que, com paixão, sorvi quando era vivo [iii]

Se eles o tivessem como rei, em tais casos tão indulgente, sem a ninguém pôr o menor entrave, ter-lhe-iam consagrado um templo e um flâmine com melhor vontade do que os velhos romanos a Rómulo. 

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] paulatim mutata, ex pulcherrima atque óptima, péssima ac flagiosissima facta est. Salústio, Catilina, V, 9.
[ii] majorum mores, non paulatim, ut antea, sed torrentis modo praccipitati; adeo juventus luxu atque avaritia corrupta est. Salústio, Hist, frag. I, 16.
[iii] Segundo a tradução de Cícero, o epitáfio estaria assim redigido: Haec habeo quae edi, quaeque exaturata libido hausit; et illajacent multa et praeclara relicta (Eu possuo o que comi e o que recebi da voracidade das minhas paixões; porém desperdiçaram-se muitos outros e excelentes bens). Cícero — Tusculanae,V, 35,101.

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