LIVRO
II
CAPÍTULO XIX
Corrupção do Estado Romano
antes de Cristo ter feito desaparecer o culto dos deuses.
Eis
como o Estado Romano (não sou eu o primeiro a dizê-lo mas, muito antes da vinda
de Cristo, o disseram os seus autores e deles o aprendemos nós, pagando-lhes
para estudar)
pouco
a pouco se foi transformando da mais bela e da mais virtuosa (república) na
pior e mais corrompida [i].
Eis
como, antes da vinda de Cristo,
os
costumes dos antepassados se foram precipitando, não pouco a pouco, como
outrora, mas como uma torrente. A juventude estava de tal forma corrompida
pelo fausto e pela cobiça [ii]...
Leiam-nos
os preceitos dados ao Povo Romano pelos seus deuses contra o fausto e a
avareza! Oxalá tivessem apenas omitido os preceitos respeitantes à castidade e
moderação e não lhes tivessem exigido mesmo acções vergonhosas e de ignomínia,
exercendo assim nelas uma autoridade perniciosa pela sua autoridade falsamente
divina! Leiam os nossos preceitos — e tantos são — contra a avareza e o fausto,
quer nos profetas, quer no Santo Evangelho, nos Actos dos Apóstolos ou nas
Epístolas! Lá verão como dos povos, de toda a parte para isso reunidos, com que
competência, com que autoridade divina esses preceitos ressoam, não com o
barulho das contendas filosóficas mas com o estrondo dos oráculos de Deus
troando das nuvens! E, todavia, continuam a não imputar aos seus deuses que o
Estado se tornou antes da vinda de Cristo no pior e mais depravado devido ao
fausto, à avareza, aos costumes cruéis e torpes. Mas de tudo por que estão
nestes tempos passando devido à sua soberba e aos seus prazeres acusam a
religião cristã. Se os reis da Terra e todos os povos, os governantes e todos
os juízes da Terra, os jovens e as donzelas, os velhos com os novos, toda a
idade adulta de ambos os sexos, os cobradores de impostos e os soldados de que
fala o Baptista João, ouvissem e praticassem estes preceitos sobre os justos e
bons costumes — a república teria ornado as terras já cá com a felicidade da
vida presente e teria subido até ao cume da vida eterna para conseguir um
reinado de completa felicidade!
Mas
porque este ouve, aquele despreza e a maioria é mais amiga das blandícias dos
vícios do que da útil aspereza das virtudes, ordena-se aos servidores de
Cristo, sejam eles reis ou governantes, juízes ou militares, soldados das
províncias, ricos ou pobres, livres ou servos de ambos os sexos, que tolerem o
Estado se for necessário, mesmo sendo o pior e mais depravado e que adquiram
para si, pelo preço de uma tal tolerância, uma morada esplendorosa na
santíssima e augustíssima cúria dos anjos, na república celeste onde a vontade
de Deus é lei.
CAPÍTULO XX
A felicidade de que queriam
gozar e o género de vida que queriam levar os que acusam os tempos da religião
cristã.
A
verdade é que tais adoradores e amigos desses deuses, dos quais se comprazem em
ser imitadores até no crime e na depravação, não têm a menor preocupação em que
a república seja má e tão corrompida. «Contanto que ela se aguente, dizem eles,
contanto que floresça atulhada da abundância e gloriosa em vitórias ou — o que
ainda é melhor— se mantenha numa paz firme, que nos importa o resto? O que
acima de tudo interessa é:
— que cada um aumente cada vez mais as suas
riquezas;
— que estas cubram as prodigalidades diárias
com que o poderoso conserva submisso o débil;
— que os pobres, procurando encher a barriga,
estejam dispostos a agradar aos ricos;
—
que sob a sua protecção disfrutem duma pacífica ociosidade; — que os ricos
abusem dos pobres, aumentando assim a sua clientela para serviço do próprio
fausto;
— que os povos dêem os seus aplausos não aos
defensores dos seus interesses, mas aos generosos com os seus vícios;
—
que não se dêem ordens difíceis nem se proíba o que é impuro; — que os reis se
preocupem, não com o bem, mas com a submissão dos seus súbditos;
— que as províncias sirvam aos seus
governadores, não como a moderadores dos costumes mas como a donos dos seus
bens e provedores dos seus prazeres;
— que os honrem, não com sinceridade mas
iníqua e servilmente os temam; — que as leis se apliquem, mais para que ninguém
cause dano à vinha alheia do que para defender a vida própria;
— que ninguém seja levado perante os juízes a
não ser quando cause danos aos bens, à casa, à saúde, ou à vida de outrem
contra a sua vontade;
— quanto ao resto, que cada um faça o que lhe
apetecer dos seus bens, com os seus bens ou com quem se lhe ponha à disposição;
— que haja prostitutas públicas em
abundância, quer para todos os que as quiserem gozar, quer, principalmente,
para os que não podem ter uma particular;
— que se construam enormes e sumptuosos
edifícios; — que sejam frequentes e opíparos os festins;
— que, onde lhes aprouver, cada um possa, de
dia ou de noite, jogar, beber, vomitar, dissolver-se;
— que por toda a parte ressoe o barulho das
danças; — que os teatros fervam com gritos de impudica alegria e todo o género
de paixões, as mais cruéis e as mais infames;
— que seja considerado como inimigo público
aquele a quem esta felicidade desagrada;
— e se algum pensar em alterá-la ou
suprimi-la, que a multidão, senhora da sua liberdade, o afaste dos nossos
ouvidos, o expulse de casa, o tire de entre os vivos;
— que se tenham por verdadeiros os deuses que
se preocuparam em proporcionar aos povos esta felicidade e em conservar aquela
de que já disfrutavam;
— que sejam venerados como quiserem, que
exijam os jogos que lhes apetecerem, tal qual como os desejarem obter dos seus
adoradores: façam apenas com que tal felicidade não seja posta em perigo nem
pelo inimigo, nem pela peste, nem por qualquer calamidade».
Quem
de são juízo não comparará esta república, não digo com o Império Romano, mas
com o palácio de Sardanapalo? Outrora este rei entregou-se de tal forma aos
prazeres que mandou inscrever isto na sua sepultura:
Agora que estou morto só considero como bens
os que, com paixão, sorvi quando era vivo [iii]
Se eles o tivessem como rei, em tais casos
tão indulgente, sem a ninguém pôr o menor entrave, ter-lhe-iam consagrado um
templo e um flâmine com melhor vontade do que os velhos romanos a Rómulo.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] paulatim mutata, ex
pulcherrima atque óptima, péssima ac flagiosissima facta est. Salústio,
Catilina, V, 9.
[ii] majorum mores, non
paulatim, ut antea, sed torrentis modo praccipitati; adeo juventus luxu atque
avaritia corrupta est. Salústio, Hist, frag. I, 16.
[iii] Segundo a tradução de
Cícero, o epitáfio estaria assim redigido: Haec habeo quae edi, quaeque
exaturata libido hausit; et illajacent multa et praeclara relicta (Eu possuo o
que comi e o que recebi da voracidade das minhas paixões; porém desperdiçaram-se
muitos outros e excelentes bens). Cícero — Tusculanae,V, 35,101.
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