30/12/2016

Leitura espiritual

Leitura espiritual



A Cidade de Deus 




Vol. 1

CAPÍTULO XXVIII

Razão por que Deus permitiu que a lascívia do inimigo se satisfizesse nos corpos das pessoas continentes.

Se a vossa castidade foi um joguete dos inimigos, nem por isso, ó fiéis de Cristo, deveis sentir desgosto pela vida. Tendes motivos para uma grande e autêntica consolação, se mantiverdes a convicção firme de que não haveis participado, por permissão, nos pecados contra vós cometidos.
Mas, se por acaso perguntardes porque são permitidos — responderei: quão profunda é a providência do Criador e governador do mundo! quão insondáveis são os seus juízos e impenetráveis os seus caminhos! Interrogai-vos sinceramente nas vossas almas a ver se não vos tereis envaidecido com ares de superioridade do dom da vossa integridade ou da vossa continência ou do vosso pudor e levados pelo prazer dos louvores humanos, não havereis tido, neste ponto, inveja de alguns. Não acuso o que ignoro nem ouço a resposta que os corações vos dão a estas perguntas. Mas se eles vos responderem que assim é, — não vos admireis por terdes perdido aquilo com que pretendíeis suscitar a admiração dos homens e por terdes ficado com o que já não podem admirar. Se não prestastes o vosso consentimento aos que estavam a pecar, é porque o auxílio divino se juntou à divina graça para a não perderdes; mas o opróbrio humano sucedeu à glória humana para a não amardes. Em ambos os casos, consolai-vos, ó pusilânimes: por um lado, fostes provadas, pelo outro, castigadas; por um lado, fostes santificadas, pelo outro, corrigidas.

Mas as que, depois de terem interrogado o coração, responderem:
— que jamais se orgulharam da excelência da virgindade, da viuvez ou do recato conjugal;
— que antes, atraídas pela humildade, se alegraram com temor deste dom de Deus;
— que a ninguém invejaram a excelência de uma santidade e de uma castidade semelhante à delas;

— que antes, pondo de parte o louvor humano (que é tanto mais pródigo quanto mais rara é a virtude exaltada), optaram por crescerem em número em vez de sobressaírem em grupo reduzido delas — estas, mesmo que algumas delas tenham sido violentadas por bárbaros sensuais, não se devem queixar de isto ter sido permitido nem crer que Deus esquece tais torpezas porque permite o que ninguém comete impunemente. Na realidade, há como que um certo peso das más paixões a que o juízo divino, oculto no presente, dá livre curso reservando-se para as pôr às claras no último dia. Mas talvez estas — que no seu coração estão bem conscientes de não terem tirado nenhum motivo de orgulho deste privilégio da castidade, e que nem por isso sofreram menos na sua carne a violência do inimigo, — tivessem um pouco de fraqueza secreta que poderia tomar-se em orgulho cheio de arrogância, se no decurso da citada calamidade elas tivessem escapado a esta humilhação. Assim como alguns foram arrebatados pela morte
para que a malícia não pervertesse a sua inteligência [i]
assim também a algumas destas se lhes tirou pela violência um tanto da sua honra para que a sua prosperidade não pervertesse a sua modéstia. Assim, tanto a umas que já se orgulhavam de não terem sofrido nenhum contacto obsceno na sua carne, como a outras, que poderiam talvez vir a orgulhar-se caso não chegassem a sofrer o atentado brutal dos inimigos, — a nenhumas se lhes arrebatou a castidade, mas antes se lhe fortaleceu a humildade. Das primeiras se curou a vaidade latente; às segundas se evitou uma vaidade iminente.

Há ainda outro ponto que se não deve deixar em silêncio: a algumas que sofreram estas coisas pode parecer que o bem da continência se deve considerar como um dos bens corporais e que se conserva se o corpo continuar livre de todo o contacto libidinoso com outro, em vez de residir apenas na fortaleza da vontade ajudada por Deus, santificando assim não só o espírito mas também o corpo. Este bem não é tal que não possa ser arrebatado mesmo sem consentimento. Deste erro foram talvez libertadas:
— quando pensam com que sinceridade serviram a Deus;
— quando com fé inabalável estão convencidas de que, às que assim o servem e lhe suplicam, Deus de maneira nenhuma pode votá-las ao abandono;
— quando tudo isto nelas está arraigado — concluem claramente: Deus jamais poderia permitir que estas coisas acontecessem aos seus santos, se deste modo pudesse perecer a santidade que lhes confiou e que neles ama.

CAPÍTULO XXIX

Que devem responder os servidores de Cristo aos infiéis quando estes o exprobram por não os ter livrado do furor dos inimigos.

Toda a família do verdadeiro Deus soberano tem a sua consolação, uma consolação não falaz nem assente em bens caducos e passageiros. De forma nenhuma deve estar desgostosa mesmo da vida temporal. É nela que aprende a conseguir a eterna e, como peregrina que é, a utilizar-se dos bens terrenos, mas não a deixar-se por eles cativar. E quanto aos males — é neles posta à prova ou é por eles corrigida. Aos que insultam a sua probidade e dizem, quando lhe advém algum mal temporal:
Onde está o teu Deus [ii]?
perguntem, por sua vez, onde é que estão os seus deuses quando sofrem de males semelhantes, eles que, para evitarem tais males, os adoram ou pretendem convencer-nos de que devem ser adorados.

Ela lhes responderá: «O meu Deus está em toda a parte presente; todo em toda a parte; em parte nenhuma encerrado; pode estar presente sem que saibamos; pode ausentar-se sem se mover. Quando me atormenta com a adversidade — está submetendo à prova os meus merecimentos ou castigando os meus pecados; — mas, em compensação dos meus males temporais, piedosamente suportados, tem-me reservada uma recompensa eterna. Mas vós, quem sois vós para merecerdes que convosco se fale sequer dos vossos deuses e muito menos do meu Deus, que é mais terrível que todos os deuses, pois os deuses dos gentios são os demónios, ao passo que o Senhor fez os Ceus [iii].


CAPÍTULO XXX

Os que se queixam dos tempos cristãos pretendem encher-se de vergonhosas prosperidades.

Se ainda estivesse vivo Cipião Nasica, outrora vosso pontífice, eleito por todo o Senado por ser o melhor varão para receber a sagrada imagem da Frigia durante o terror da Guerra Púnica, não vos atraveríeis talvez a olhar-lhe para a cara. Seria ele próprio que vos refrearia a impudência.

Porque vos queixais dos tempos cristãos quando a adversidade vos fustiga? Não será porque estais desejosos de gozar com segurança da vossa luxúria, afundando-vos em costumes totalmente perdidos, longe de toda a aspereza das coisas molestas? Desejais ter paz e estar providos de todo o género de recursos, mas não é para deles fazerdes uso com honradez, isto é, com moderação e sobriedade, com temperança e religiosamente, mas sim para alcançardes infinita variedade de prazeres com dissipações insensatas e, com tal prosperidade, dardes origem nos vossos costumes, a males piores que as crueldades dos inimigos.

Mas o dito Cipião, vosso pontífice máximo, considerado o melhor varão de todo o Senado, receava que sobre vós recaísse esta desgraça e por isso se opunha à destruição de Cartago, então rival do poder romano, e opunha-se a Catão que advogava a sua ruína. Receava a segurança como inimigo para espíritos débeis e via que para estes concidadãos, como se pupilos fossem, era necessário o terror como o melhor tutor.

Não o enganou este parecer. A realidade provou quão verdadeiro fora o que dissera. Efectivamente, destruída Cartago, isto é, afastado e desaparecido o grande terror da república romana, imediatamente começaram a surgir muitos males, como consequência da situação próspera: a concórdia fendeu-se e rompeu-se — primeiro por cruéis e sangrentas rebeliões e, logo depois, num maléfico encadeamento de causas, incluindo guerras civis, surgiram tais desastres, derramou-se tanto sangue, ateou-se tal selvagem cupidez de proscrições e rapinas, que os Romanos, aqueles que em tempos da sua vida mais íntegra temiam desgraças vindas do inimigo, agora, perdida essa integridade de vida, tinham que padecer dos seus próprios compatriotas crueldades maiores. A própria ambição do poder — que, entre outros vícios do género humano, mais puro se encontrava em todo o povo romano, — uma vez vencidas algumas das principais potências, esmagou sob o jugo da servidão as restantes já desfeitas e fatigadas.

CAPÍTULO XXXI

Através de que graus foi aumentando entre os Romanos a ambição do poder.

Na verdade, quando é que descansará esse desejo em tão altivos espíritos, antes de chegarem, depois de escalarem todas as honras, até ao poder absoluto? Se não houvesse uma ambição superior não seria possível essa continuidade de honras. Mas de forma nenhuma essa ambição prevaleceria a não ser num povo corrompido pela avareza e pela luxúria. Em avaro e licencioso se tomou tal povo devido à prosperidade que o citado Nasica, com grande previsão, julgava que se devia evitar opondo-se à destruição da maior, mais forte e mais opulenta cidade inimiga. Assim a paixão seria reprimida pelo medo; e reprimida a paixão não se cairia na luxúria; e reprimida a luxúria, não avançaria a avareza. Atalhados estes vícios, floresceria e cresceria a virtude tão útil à cidade. E a liberdade continuaria companheira da virtude.

Por isto e por tão previdente amor à pátria deste vosso pontífice máximo eleito (nunca é demais repeti-lo) pelo Senado daquele tempo sem discrepância de opinião como o melhor varão, fez ele com que o mesmo Senado retirasse um seu projecto, tão desejado, de construir um teatro [iv]. No seu discurso pleno de gravidade conseguiu convencê-lo a não consentir na infiltração da lascívia grega nos costumes varonis da pátria e a não tolerar a ruína e a morte da virtude romana por causa da depravação estrangeira. Foi tal o poder das suas palavras que o Senado mudou de disposição; proibiu que se colocassem assentos de que, à hora aprazada, os cidadãos se começavam a servir para os espectáculos.

Com que cuidado não teria este homem retirado de Roma os próprios jogos cénicos se tivesse ousado resistir à autoridade dos que ele considerava como deuses! Não se apercebia de que eram nocivos demónios, ou, se o sabia, pensava que era melhor aplacá-los do que desprezá-los. Ainda não tinha sido anunciada aos povos aquela suprema doutrina que, limpando o coração pela fé, poderia mudar as aspirações humanas e tenderia para os bens celestes e supracelestes com humilde espírito religioso liberto da tirania de soberbos demónios.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] ne malitia mutaret intelectum eorum.
Sap. Salom., IV, 11.
[ii] Ubi est Deus tuus?
Salmo XLI, 4
[iii] Terribilis est super omttes deos: quontam dii gentium daemonia, Dominus autem Caelos fedt.
Salmo XCV, 4-5.
[iv] Não foi Cipião Nasica, como pensa Santo Agostinho, mas Cipião Córculo quem levou o Senado a interromper os trabalhos da construção de um teatro fixo, iniciados em 155 pelo Censor Cássio.

Embora o teatro viesse já de longe — com Tondrónico ( +207), Névio (264-194), Énio (239-169), Plauto ( +184), Terêncio (185-159)
— era ele representado sobre um estrado móvel de madeira ao ar livre, geralmente no Forum. Só em 179 é que o censor Emílio Lépido construiu um hemiciclo junto do templo de Apoio e em 174 os censores construíram um, todo de pedra. V. G. Bloch e J. Carcopino, in Histoire Romaine, II.

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