27/12/2016

Leitura espiritual

Leitura espiritual




A Cidade de Deus 


Vol. 1

CAPÍTULO XVIII
Violência e paixão carnal alheias sofridas no corpo da vítima contra sua vontade.

Claro que cada um receia que a luxúria alheia o polua. Não o poluirá se for alheia; se, porém, o poluir, é porque não é alheia. A pudicícia é uma virtude do espírito e tem por companheira a fortaleza que lhe dá ânimo para tolerar os males, mas não para consentir no mal. Mas ninguém, por mais magnânimo e pudico que seja, tem em sua mão dispor da sua própria carne; apenas dispõe da sua anuência ou repulsa. Acaso admitirá alguém de são juízo que perderá a sua castidade no caso de se praticarem actos de paixão carnal estranha, mesmo consumados, na sua própria carne tomada à força? Se num caso destes a castidade desaparecer, sem dúvida já não será uma virtude do espírito e não formará parte daqueles bens que constituem uma conduta intangível. Será antes um dos bens do corpo, tais como o vigor, a beleza, a saúde e outros que tais.
Estes bens, mesmo que eles próprios diminuam, uma vida boa e justa é que nunca diminuirão. Se deste tipo fosse a pudicícia, a que propósito nos esforçaríamos para a não perdermos mesmo com perigo para o corpo? Mas, se é um bem do espírito, nem com a violência sobre o corpo ela se perderá. Mais ainda: quando o bem da santa continência resiste ao assalto impuro das concupiscências carnais, o próprio corpo fica santificado. Se persiste uma decisão inabalável de não ceder às suas solicitações, não desaparece a santidade, mesmo a do corpo, pois que se mantém a vontade e até a faculdade de o utilizar santamente.

Nem o corpo é santo pelo facto de os seus membros se manterem íntegros ou pelo facto de não terem sido objecto de qualquer contacto, pois, por diversas razões, podem sofrer lesões e violências. Os médicos por vezes praticam, por razões de saúde, actos que repugnam à vista.
A parteira, ao verificar com a mão a integridade de uma donzela, pode destruir essa integridade por maldade, por imperícia ou acidentalmente. Julgo que não haverá ninguém tão estulto que pense que a santidade da donzela, inclusive a corporal, se rebaixou devido a essa falta de integridade. Quando o espírito se mantém firme, no propósito que lhe mereceu a santidade, mesmo corporal, não se arranca essa santidade pela violência da concupiscência alheia. A perseverança da sua continência mantém-lhe a santidade.

Se, porém, uma mulher de coração corrompido viola a promessa feita a Deus e procura um sedutor para se entregar à paixão viciosa — diremos que, enquanto vai a caminho, conserva a santidade corporal depois de ter perdido e destruído a do espírito, que tornava santo o corpo?
Longe de nós tal erro. Tiremos do exposto antes a lição seguinte: a santidade do corpo, mesmo em caso de violência, não se perde se permanecer a santidade do espírito; mas perde-se, mesmo que o corpo se mantenha intacto, se se perder a santidade do espírito. Por isso é que não há qualquer razão para se castigar a si mesma com a morte espontânea a mulher violentamente profanada e vítima de pecado alheio. Muito menos, antes que isso aconteça. Porque havemos de consentir um homicídio certo, quando a própria torpeza, ainda por cima alheia, é incerta?
CAPÍTULO XIX

Lucrécia, que se matou devido à violência nela perpetrada.

Dissemos que, quando há violência corporal sem que haja mudado para o mal, no mais íntimo, a resolução de manter a castidade, a torpeza recai somente sobre quem satisfaz a paixão carnal e nunca sobre quem caiu, contra sua vontade, sob a violência carnal. Ousarão contradizer isto aqueles contra os quais defendemos, não só a santidade espiritual, mas também a santidade corporal das mulheres cristãs violadas no cativeiro? Tecem altos louvores à pudicícia de Lucrécia, nobre matrona da velha Roma. O filho do rei Tarquínio cevou a sua lascívia com violência no corpo dela. Ela relatou este crime do devasso jovem a seu marido Colatino e a Bruto, seu parente, varões de estirpe e coragem das mais elevadas, fazendo com que eles lhe prometessem vingança. Em seguida, amargurada pela ofensa contra si cometida e não a podendo suportar, pôs termo à vida. Que diremos? Deve ela ser considerada adúltera ou casta? Quem julgará que se deve despender qualquer esforço nesta discussão? Certo declamador disse com elegância e verdade:
Ó maravilha: foram dois e só um cometeu adultério [i].

Dito esplendidamente e com toda a justeza! Reparou bem, nesta união dos dois corpos, a ignominiosa paixão de um e a castíssima vontade da outra. Atende, não à união dos corpos, mas à separação das almas, quando diz:
Foram dois e só um cometeu adultério2 [ii].

Mas que é isso? Será que a vingança vai recair com mais rigor sobre quem não cometeu adultério? Na verdade, Tarquínio foi expulso da pátria com seu pai; mas Lucrécia foi imolada com o supremo castigo. Se não há impudicícia na vítima violentada, — também não há justiça quando quem sofre o castigo é a mulher casta. Apelo para vós, leis e juízes romanos! Depois de se cometer um crime, nunca tendes permitido que o réu seja impunemente executado sem que antes haja decisão judicial. Se alguém apresentasse este crime perante o vosso tribunal e ficasse provado, não só que sem prévia decisão foi assassinada uma mulher, mas ainda que o foi uma mulher casta e inocente — não aplicaríeis rigorosamente a quem o cometeu a pena adequada? Foi o que fez Lucrécia. Ela, a tão exaltada Lucrécia, ela sim, é que matou uma Lucrécia inocente, casta e, para mais, vítima de violência. Proferi a sentença! Se não o podeis fazer porque já se não pode apresentar quem poderíeis punir — porque louvais, com tanta exaltação, a homicida duma inocente e casta?
Certamente que não tereis argumentos para a defender perante os juízes dos infernos, mesmo que estes sejam como os cantam os vossos poetas nos seus poemas. Com certeza que ela se encontrará entre aqueles

que, sendo inocentes, com suas próprias mãos se mataram e exaltaram suas vidas renegando a luz [iii].
e, quando pretenda voltar à terra,

os fados obstam a isso e o charco odioso retém-na presa nas suas repugnantes águas [iv].
Será que talvez ela se não encontre lá por ter acabado com a sua vida, não inocente, mas consciente da sua malícia? Será que (só ela o poderá saber), depois de violentada pelo tal jovem, ela mesma, arrastada pelo próprio prazer, consentiu — e foi tão grande a sua dor que decidiu expiar esse prazer em si mesma com a morte? Mesmo assim não devia suicidar-se, se é que havia possibilidade de fazer perante os seus falsos deuses uma frutuosa penitência. Em tal caso, é falso aquele dito: «houve dois e só um cometeu adultério». Convém antes dizer que ambos foram adúlteros — um com a sua evidente violência, a outra com a sua latente adesão. Não se suicidou sendo inocente e não podem por isso dizer os literatos que a defendem que não está nas moradas infernais entre os que,

sendo inocentes, com suas próprias mãos se mataram.

Mas assim, este caso sofre de defeito por dois lados: se se atenua o homicídio— reforça-se o adultério; se se desculpa o adultério — agrava-se o homicídio. Não há saída possível quando se diz: se é adúltera, porque é que se exalta? Se é casta, porque é que se suicida?
A nós, porém, — para se confundirem os que, alheios a considerações de santidade, insultam as mulheres cristãs violadas durante o cativeiro— , basta-nos, no exemplo tão nobre desta mulher, o que, como um dos maiores louvores, foi dito:

Foram dois e só um cometeu adultério.

Tinham Lucrécia em tal conta que a julgaram incapaz de se macular com um consentimento adulterino.
O facto de se ter suicidado por ser vítima de um adúltero sem ser adúltera não constitui amor à castidade, mas debilidade da vergonha. Efectivamente, envergonhou-se da torpeza alheia cometida no seu corpo embora sem cumplicidade da sua parte. Como romana que era, demasiado ávida de glória, teve receio de que a violência sofrida durante a sua vida, a interpretasse o público como consentida se continuasse a viver. É por isso que ela julgou que devia apresentar aos olhos dos homens aquele castigo como testemunho da sua intenção, já que não podia mostrar-lhes a sua consciência. Encheu-a de vergonha a ideia de poder ser julgada cúmplice do que outrem torpemente nela realizara sem o seu consentimento interior.

Não procederam assim as mulheres cristãs que, apesar de terem suportado situações semelhantes, continuam a viver. Não vingaram em si um crime alheio, para não acrescentarem o seu aos crimes dos outros. O facto de inimigos terem cometido, por concupiscência, uma violação, não as levou a cometerem, por vergonha, um homicídio contra si próprias. No seu íntimo, mantêm com certeza a glória da castidade e o testemunho da sua consciência.
Mantêm-na também perante o seu Deus e de nada mais precisam. Isto lhes basta para procederem com rectidão — não aconteça que, para evitarem a ferida da suspeita humana, se desviem da autoridade da lei divina.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Mirabile dictu; duo fuerunt, et adulterium unus admisit.
Dito de autor desconhecido.
[ii] Duo fuerunt, et adulterium unus admisit.
U t Supra.
[iii] ... qui sibi letum
Insontes peperere manu, lucemque perosi, Projecere animas.
Vergílio, Eneida VI, 434-436.
[iv] Fas obstat, tristisque palus inamabilis undae Adligat
Id. Ib. 439.

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