Iniciação à Cristologia
SEGUNDA PARTE
A OBRA REDENTORA DE JESUS CRISTO
Agora
passaremos a estudar os actos concretos pelos quais Jesus Cristo nos redime,
tendo presente que actua sempre como nosso Mediador e Cabeça, por isso as suas
obras servem para a nossa salvação.
Capítulo IX
OS MISTÉRIOS DA VIDA TERRENA DE CRISTO E O SEU
VALOR REDENTOR
Na primeira
parte vimos o mistério da Encarnação do Filho de Deus, e agora, neste capítulo
e nos seguintes, consideraremos outros mistérios da vida de Jesus, ainda que,
pela reduzida extensão deste livro, só examinaremos brevemente uns poucos.
1. Toda a vida de Cristo forma parte do mistério
redentor
a) Mistérios da vida de Cristo aos quais se deve a
redenção do homem
O Credo
menciona os mistérios da vida de Cristo – desde a Encarnação até à sua Ascensão
aos céus e a sua segunda vinda – sob o enunciado: «por nós homens e por nossa salvação». Com isto significa-se que a
redenção do homem se deve a cada um desses mistérios e, ao mesmo tempo, que
toda a vida de Cristo constitui no seu conjunto uma unidade redentora a que se
deve a nossa redenção como a uma única causa.
Mas podemos
distinguir mais e assinalar que Cristo – segundo o desígnio de Deus Pai -
«realizou a obra da redenção humana (…) principalmente
pelo mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição dentre os
mortos e gloriosa Ascensão. Por este mistério, com a sua Morte destruiu a nossa
morte e com a sua Ressurreição restaurou a nossa vida»[1].
Com efeito, o mistério pascal é o que dá sentido redentor e unidade a toda a
vida de Jesus: todos os actos do seu caminhar terreno, desde a sua Encarnação (cf.
Heb 10,5-7), ordenam-se à sua Morte e Ressurreição, donde se consuma a
redenção dos homens.
E concretizando
ainda mais podemos dizer que Cristo nos redime «especialmente» com a sua sagrada Paixão e Morte. Com efeito, a
escritura resume muitas vezes toda a obra redentora no Mistério da Morte de
Cristo, ou no seu sangue derramado na cruz: por ele somos redimidos, lavados
dos pecados, justificados, santificados e restabelecidos em comunhão com Deus[2].
Também a liturgia nos move a orar assim: «Te adoramos, Cristo, e te bendizemos
porque com a tua Cruz redimiste o mundo». E o Catecismo da Igreja Católica diz
que «a redenção nos vem antes de tudo pelo sangue da cruz»[3].
Mas não
devemos entender que a salvação seja fruto da Paixão de Cristo separada da sua
Ressurreição, mas sim em união indissolúvel com ela e com todos os mistérios da
sua vida.
b) Traços comuns acerca do valor salvífico de todos
os mistérios de Cristo
Toda a vida de Cristo é mistério de redenção.
Jesus viveu
em todo o momento a sua condição de Sacerdote, e ofereceu a seu Pai em
sacrifício por nós todas as circunstâncias da sua vida; de modo que em todo o
momento exerceu a sua função mediadora para nos livrar do pecado e levar-nos à
união com Deus. Todos os actos de Cristo, ainda os que parecem menos
importantes e pequenos, são redentores e possuem um valor transcendente de
salvação (v g.: as carências materiais que experimentou, o seu trabalho, o seu
cansaço, as dificuldades da vida, etc.)[4]:
todos eles são meritórios e foram oferecidos como sacrifício ao Pai por nós com
uma entrega completa de si e com um amor imenso.
Todos os actos de Cristo nos revelam Deus e o seu
desígnio salvífico.
Jesus viveu
em todo o momento a sua condição de Mestre que nos revela Deus. Por Ele
conhecemos Deus visivelmente[5],
pois o Verbo eterno manifestava-se aos homens em todos os seus actos humanos,
em cada uma das suas palavras, gestos e atitudes. E igualmente todos os seus
actos revelam o Pai que o enviou e com ele é uma só coisa: «Toda a vida de Cristo é revelação do Pai (…)
Jesus pode dizer: ‘Quem me vê a mim, vê o Pai’ (Jo 14,9) (…) Nosso Senhor, ao ter-se feito homem
para cumprir a vontade do Pai, manifestou-nos o amor que Deus nos tem’ (1
Jo 4,9)»[6]
E assim,
Jesus, em todas as suas obras «manifesta plenamente o homem ao próprio homem»[7]:
revela-nos a dignidade e a vocação do homem, criado à sua imagem, chamado a ser
filho de Deus e a participar de uma comunhão de vida com a Trindade.
Todos os actos de Jesus são um exemplo e
ensinamento de vida para nós.
Não
podíamos imitar e seguir Deus a quem não víamos, mas quando o Filho de Deus se
faz homem constitui-se para nós no modelo que podemos contemplar, seguir e
imitar. Jesus, em todo o momento deu-nos exemplo para que vivamos como filhos
de Deus.
2. Mistério da infância de Jesus
a) O mistério da Natividade
São Lucas
narra-nos com emoção o nascimento do Filho de Deus em Belém num estábulo pois
não houve outro alojamento para a Sagrada Família (cf. 2,1-20). E os
anjos explicam este grande mistério que constitui uma grande alegria para
todos: «nasceu-vos na cidade de David o
salvador, que é o Cristo Senhor» (Lc 2 ,
10-11 ).
Com efeito,
Deus apareceu neste mundo. Manifestou-se a luz verdadeira que ilumina todo o
homem, a luz que brilha nas trevas (cf. Jo 1,4-5.9). Manifestou-se a
bondade de Deus e o seu amor misericordioso aos homens (cf. Tit 3,4).
Começou a redenção, o «admirável
intercâmbio» pelo qual o Criador do género humano, fazendo-se homem e
nascendo duma virgem, nos faz partícipes da sua divindade.
E, além do
mais, desde a cátedra de Belém, Jesus Menino distribui tantos ensinamentos que
nunca acabaremos de os considerar. Talvez o principal é que o Filho de Deus vem
libertar-nos do mal e vencer o inimigo, não com as armas do poder e força
humanas, mas sim com as do amor e a humildade, com o seu kénosis (cf. Flp 2,5-7): aqui está a verdadeira
sabedoria e força de Deus, que são mais fortes que os homens (cf. 1 Cor
1,24-25).
E,
fazendo-se um Menino, ensina-nos que «fazer-se
criança em relação a Deus é a
condição para entrar no reino (cf. Mt 18,3-4); para isso é necessário
abaixar-se (cf. Mt. 23,12), fazer-se
pequeno (…) para ‘fazer-se filhos de Deus’ (Jo 1,12)»[8].
b) A Epifania
«Epifania» significa «manifestação». A
epifania de Jesus é a sua manifestação como Messias de Israel e Salvador do
mundo. Se na Natividade Jesus foi manifestado pelos anjos aos pastores, gente
de Israel, neste mistério – na adoração dos magos – manifesta-se aos gentios
por meios duma estrela (cf. Mt 2,1-12).
O Evangelho
vê nos «magos» ou sábios os
representantes de povos vizinhos do Oriente, as primícias das nações que
acolhem o Salvador e a Boa Nova da salvação. São Mateus quer mostra-nos desde o
princípio que a salvação é universal: todos os homens estão chamados a ser «co-herdeiros, membros do mesmo corpo e
partícipes da promessa de Jesus Cristo» (Ef 3,6).
Deus chama
todos a ir a Cristo, e todos devemos responder como os magos. Que viram a
estrela no oriente, deixaram-se guiar por ela, procuraram o Senhor, e chegaram
cheios de alegria até ao Menino com Maria, sua mãe.
c) Outros mistérios da infância de Jesus
«A apresentação de Jesus no templo (cf. Lc 2 ,22-39) mostra-o como o
Primogénito que pertence ao Senhor (cf. Ex 13,2.12-13). Com Simeão
e Ana é toda a expectativa da Israel
que vem ao ‘encontro do seu salvador’ (a tradição bizantina chama assim a este
acontecimento). Jesus é reconhecido como o Messias tão esperado, ‘luz das nações) e ‘glória de Israel, mas também ‘sinal
de contradição’. A espada de dor predita a Maria anuncia outra oblação,
perfeita e única, a da Cruz que dará a salvação que Deus preparou ‘ante todos os povos’[9].
«A fuga para o Egipto e a matança dos inocentes (cf.
Mt 2,13-18) manifestam a oposição
das trevas à luz: ‘Veio a sua casa, e os seus não o receberam’ (Jo1,11).
Toda a vida de Cristo estará sob o sinal
da perseguição. Os seus partilham-na com Ele (cf. Jo 15,20). O seu regresso do Egipto (cf. Mt
2,15) recorda o Êxodo (cf. Os 11,1) e apresenta Jesus como o libertador definitivo»[10].
3. Mistérios da vida oculta de Jesus em Nazaré
a) A normalidade da vida de Jesus. A sua vida de
família e de trabalho, em particular
Jesus
partilhou, durante a maior parte da sua vida a condição comum e normal da
imensa maioria dos homens. Por isso, os seus concidadãos o considerarão igual a
eles em tudo, como um deles, e estranharão a sabedoria e os milagres que
demonstra depois na vida pública (cf. Mc 6,2-3).
Talvez
esses anos da vida de Jesus em Nazaré pareçam sem brilho humano, anos de sombra
(«vida oculta»), ou uma simples
preparação para o seu ministério público; mas não é assim: Jesus estava
realizando a nossa redenção mediante o seu amor e obediência presentes em cada
uma das suas obras que oferecia por nós ao Pai. O Verbo eterno redimiu e
santificou assim todas as realidades nobres com que está entretecida a vida
comum dos homens: a família, as amizades e relações sociais, o trabalho e o
descanso, etc.
E todos
esses actos de Cristo em Nazaré são também um ensinamento para nós: «Jesus, nosso Senhor e modelo, crescendo e
vivendo como um de nós, revela-nos que a existência humana – a tua -, as
ocupações correntes e ordinárias, têm um sentido divino, de eternidade»[11].
A vida de família.
Parte
principal da vida de Jesus em Nazaré era a vida de família, que o Evangelho
resume em poucas palavras porque era norma, ao mesmo tempo que divina: «o Menino ia crescendo e fortalecendo-se
cheio de sabedoria e a graça de Deus estava n’Ele» (Lc 2 ,40); e mais adiante
acrescenta-se que «veio com eles (com os seus pais) para Nazaré e estava-lhes
submetido» (Lc 2 ,51).
Tal como
Jesus santifica a vida familiar e nos redime, a sagrada Família constitui o
espelho e modelo de toda a família: mostra-nos a sua entranhável comunicação de
amor, a sua simples e austera beleza, o seu carácter sagrado e inviolável, o
insubstituível da sua função no plano das pessoas individuais e da vida social.
A vida de trabalho.
Jesus
dedicou a maior parte da sua vida ao seu trabalho junto de José, até depois de
ter cumprido trinta anos. De facto, os seus concidadãos conhecem-no por «o artesão» (Mc 6,3).
Esforçava-se
por fazer bem esse trabalho, cuidando os detalhes, vivendo-o com espírito de
serviço e tratando com amabilidade os vizinhos: «tudo fez bem» (Mc 7,37). Nas mãos de Jesus o trabalho
converte-se em tarefa divina, em «realidade
redimida e redentora: não só é o âmbito em que o homem vive, mas também meio e
caminho de santidade, realidade santificável e santificadora»[12].
Por isso, a
vida de Jesus em Nazaré foi chamada «o
Evangelho do trabalho» já que constitui uma lição da dignidade e do valor
do trabalho; um ensinamento para nos unirmos a Deus com essa actividade e, por
meio dela, colaborar na salvação do mundo.
b) O episódio do Menino Jesus perdido e achado no
Templo
Este
acontecimento é o único que «rompe o silêncio dos Evangelhos sobre os anos ocultos
de Jesus. Jesus deixa entrever nele o mistério da sua consagração total a uma
missão derivada da sua filiação divina: ‘Não
sabíeis que me devo aos assuntos de meu pai’ (Lc 2 ,49). Maria e José ‘não compreenderam’ esta palavra, mas
acolheram-na na fé, e Maria ‘conservava
cuidadosamente todas as coisas no seu coração’, ao longo de todos os anos
em que Jesus permaneceu oculto no silêncio de uma vida normal»[13].
Jesus
dá-nos o exemplo da decisão que temos de ter para cumprir a vontade divina
ainda que custe sacrifício e ainda que outros não a compreendam.
(cont)
Vicente
Ferrer Barriendos
(Tradução do castelhano por ama)
[1]
CONC. VATICANO II, Sacrosanctum concilium,
5.
[2]
Cf. Rom 5,9; Ef 1,7; Col 1,20; Heb 9,14; 13,12; 1 Pd 1,19; 1Jo 1,7; Ap 1,5;
5,9-10; etc.
[3]
CCE, 517. A razão é – como veremos depois – que a Paixão de Cristo nos liberta
do pecado por mais títulos. Além de ser a causa eficiente da nossa salvação
(como o é a Ressurreição), mereceu-a, e também constitui uma satisfação pelo
pecado: só ele é o preço da nossa redenção. E a própria exaltação gloriosa de
Cristo se deve ao mérito da sua Paixão (cf. Flp 2,8-9; Heb 2,9).
[5]
Cf. Prefácio I de natal
[6] CCE, 516.
[8] CCE, 526.
[9] CCE, 529.
[11] S. JOSEMARÍA ESCRIVÁ,
Forja, 688.
[12] S. JOSEMARÍA ESCRIVÁ,
Cristo que Passa, n. 47.
[13]
CCE, 534.
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