Leonard Cohen foi um grande teólogo deste tempo.
Afirmá-lo não é a cedência fácil à comoção da sua partida. Reconhecê-lo é,
antes, sublinhar um dos traços que fizeram dele, como bem anotava o seu
epitáfio no Twitter, um "visionário" na música contemporânea. E não é
um lapso que o considere precisamente teólogo. Porque a religiosidade da sua
música vai muito para lá das referências bíblicas, espirituais e
transconfessionais com que se tece a sua lírica. Porque o eco de Deus na sua
obra afina-se com esse diálogo, mas nasce antes e vai mais longe. Nasce de uma
inquietude perante a vida que não se sabe dizer sem Deus. E chega à hipótese de
um divino ferido, amigo, portanto, do percurso acidentado de Cohen e também de
todos os que têm de lutar para crer. Dir-se-ia que a gravidade do seu timbre
foi feita para a gravidade do que ele canta. O casamento nele entre voz e
palavra não poderia ter sido mais indissolúvel e fecundo.
Talvez seja broken
a palavra mais teológica do seu léxico. Estranhará que assim seja apenas quem
tem de Deus uma ideia naïf e para com a religião uma atitude triunfalista.
Cohen não as tinha. Para ele é na falha, na quebra, na fenda que a questão se
decide. Nele cantaram todos quantos apenas podem elevar aos céus um «broken Hallelujah» (in "Hallelujah"). Isto Cohen percebeu
como poucos: o teólogo não pode ignorar as feridas que este tempo traz no
corpo. E são tantas. E a sua memória tão viva. O louvor que a humanidade pode,
então, prestar a Deus está ferido e quebrado, mesmo se não impossibilitado.
Porque também disto é Cohen um profeta: essas feridas não mataram o que em nós
é música e Hallelujah. Nele cantou-se
igualmente a falha como desbloqueio e não somente como défice: «There is a crack in everything / That's how
the light gets in» [i].
Sabemos que, historicamente, as Igrejas, tal como os
Estados, partidos e ideologias, tiveram dificuldades com os artistas, porque de
vez em quando eles fazem e dizem coisas que não estavam no programa, e seguem
por caminhos que talvez não fossem os mais ortodoxos, ou mais justos, segundo o
entender de quem o diz.
Há nisto uma tal sabedoria do humano que toca o divino. O
realismo de reconhecer que em tudo uma falha existe. A inteligência de perceber
que essa falha não é vazio, mas habitação e estrada de uma luz que permite ver
e ser visto. Teologicamente falando, de poder ver a Deus e ser por ele visto.
Mas com a ousadia que se exige a todo o teologar e transportado pela narrativa
bíblica, Cohen canta ainda um Deus ferido («you
showed me where you had been wounded») e com o nome «broken» inscrito em cada átomo (in "Born in Chains"). Uma tal ideia, nada desconhecida de
tradições teológicas como a judaico-cristã, transborda de teologia.
Cantando e escrevendo, Cohen pensou, desabafou, rezou,
amou. Sempre com aquele jeito cavalheiresco cultuado noutras eras. Porque assim
era, um gentleman em palco e fora dele. Honrou assim o nome que celebrizou. Foi
kohen, isto é, sacerdote, fazendo das
letras e da música como que um santuário. Porque a forma mais recorrente de
Deus na sua obra será mesmo a da invocação. E também assim se faz e fez
teologia. Não apenas falando de Deus, mas falando a Deus. Ter-lhe-á este agora
manifestado a sua vontade: «If it be your
will / That I speak no more / And my voice be still / As it was before» [ii]. Ter-lhe-á este agora respondido à sua "antiga
ideia": «Show me the place where you
want your slave to go» [iii]. Talvez porque tenha acreditado nele, quando Leonard
Cohen lhe cantou: «I'm ready, my Lord»
[iv].
alexandre palma, Teólogo
In "Diário de Notícias", 12.11.2016
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.