SE
DEVEMOS PREFERIR AS COISAS, OU O
CONHECIMENTO
DELAS, AOS SINAIS
AGOSTINHO
– Queria, pois, que bem
compreendesse que são mais importantes as coisas significadas do que seus
sinais.
Tudo o que existe em função
de outra coisa, necessariamente tem valor menor que a coisa pela qual existe,
se concordas com isso.
ADEODATO
– Parece-me impróprio
concordar com isto sem refletir.
Quando, por exemplo, se diz:
“coenum” (lamaçal), parece-me que este nome seja em muito superior à
coisa que significa.
De facto, o que desagrada ao
ouvirmos esta palavra não é o som; “coenum”,
mudando apenas uma letra, torna-se “coelum”
(céu), mas é evidente a enorme diferença que há entre as coisas que estes dois
nomes significam. Por isso eu não teria por essa palavra toda a repulsa que
tenho ao que significa, e, portanto, eu a prefiro a isso; pois menos desagrada
o seu som do que ver ou tocar a coisa que significa.
AGOSTINHO
– Falas com sabedoria.
Assim, não seria correcto afirmarmos que todas as coisas têm valor superior aos
sinais que as exprimem.
ADEODATO
– Assim parece.
AGOSTINHO
– Diz-me, então, qual seria
a intenção dos que deram um nome a coisa tão feia e desagradável? Tu os aprovas
ou desaprovas?
ADEODATO
– Na verdade, não me acho em
condição nem de aprová-los nem de desaprová-los, e também não sei que intenção
tiveram.
AGOSTINHO
– Poderás, ao menos,
dizer-me qual a tua intenção, a finalidade de pronunciares esse nome?
ADEODATO
– Sim; ao pronunciá-lo,
quero avisar ou ensinar ao meu interlocutor aquilo que julgo necessário
avisá-lo ou ensiná-lo.
AGOSTINHO
– Como? O facto de ensinar e
avisar, ou de receber tal ensinamento, facilmente expresso com este nome, não
deveria talvez ser-te mais caro que a própria palavra?
ADEODATO
– Admito que o conhecimento
obtido por este sinal seja preferível ao próprio sinal, mas não preferível à
coisa em si.
AGOSTINHO
– Então, no que acima
afirmamos, embora seja falso que devemos sempre preferir as coisas aos seus
sinais, é verdade que tudo o que existe em função de outra coisa tenha valor menor
que a coisa pela qual existe.
O conhecimento, pois, do
lamaçal, para o qual foi instituído esse nome, há de ser considerado mais que a
palavra que, por sua vez, vimos ser preferível ao próprio lamaçal. E é bem esse
o motivo do conhecimento ser preferível ao sinal de que estamos tratando, pois
este existe devido àquele e não aquele por causa deste.
Assim, aquele glutão, devotado
ao ventre, conforme relata o Apóstolo, quando disse que vivia para comer, foi
contestado por um homem sóbrio, que lhe ouviu as palavras e, não tolerando-as,
assim o redarguiu:
“Bem melhor seria que
comesses para viver”; e vemos que o sóbrio falou assim seguindo essa mesma regra
(regra que estabelece que tudo o que é devido a outra coisa, como no caso de
comer que é subordinado ao viver – é inferior à coisa pela qual existe).
O comilão desagradou porque
avaliava tão miseravelmente sua vida, que a tinha em menor conta que os
prazeres do paladar, afirmando viver para comer.
O homem sóbrio é digno de
louvor porque, compreendendo qual das duas coisas (comer e viver) é feita para
a outra, ou seja, qual está subordinada à outra, alertou que devíamos comer
para viver e não viver para comer.
Do mesmo modo, tu e todo
homem sensato que aprecie as coisas pelo seu valor e justo lado, se um
charlatão afirmasse:
“Ensino para falar”, lhe
responderias:
“Homem, não seria melhor
falar para ensinar?”
Ora, se tais coisas são
verdadeiras, como aliás reconheces, observa quanto as palavras têm menor
importância, em comparação com aquilo por que as usamos; sendo que o próprio
uso das palavras já é mais importante do que elas próprias.
As palavras, pois, existem
para que as usemos, e as usamos para ensinar.
Por isso, ensinar é melhor
que falar, e assim o discurso é melhor que a palavra.
Muito melhor que as palavras
é, portanto, a doutrina.
Mas quero ouvir de ti se por
acaso tenhas algo a opor.
ADEODATO
– Concordo em que a doutrina
seja preferível às palavras; mas talvez se possa levantar objecção contra a
regra que diz:
“tudo o que existe em função
de outra coisa é inferior aquilo pelo qual existe”.
AGOSTINHO
– Trataremos disto a seu
tempo e com mais detalhes: por enquanto, o que concedes já basta para que eu
chegue aonde me proponho.
Concordas, pois, que o
conhecimento das coisas é mais importante que os sinais que as exprimem.
Por isso, o conhecimento das
coisas significadas deve ser preferido ao conhecimento dos sinais, não te
parece?
ADEODATO
– Mas eu disse, por acaso,
que o conhecimento das coisas não é superior ao dos sinais, ou melhor, que é
superior aos próprios sinais?
Por isto hesito em concordar
contigo neste ponto.
Se o nome “lamaçal” é melhor
que seu significado, por que o conhecimento deste nome não haveria de ser
também melhor que o da coisa, embora o nome em si seja inferior aquele conhecimento?
Lidamos aqui com quatro
termos: nome, coisa, conhecimento do nome e conhecimento da coisa.
Como o primeiro é superior
ao segundo, por que também o terceiro não seria superior ao quarto? E, em não
lhe sendo superior, acaso lhe estaria subordinado?
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