Leitura Espiritual
Cristo que passa |
São Josemaria Escrivá
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Sentido divino do caminhar
terreno de Jesus
Ao falar diante do
presépio sempre procurei ver Cristo Nosso Senhor desta maneira, envolto em
paninhos sobre a palha da manjedoura, e, enquanto ainda menino e não diz nada,
vê-Lo já como doutor, como mestre.
Preciso de considerá-Lo
assim, porque tenho de aprender d'Ele.
E para aprender d'Ele é
necessário conhecer a sua vida: ler o Santo Evangelho, meditar no sentido
divino do caminho terreno de Jesus.
Na verdade, temos de
reproduzir na nossa, a vida de Cristo, conhecendo Cristo à força de ler a
Sagrada Escritura e de a meditar, à força de fazer oração, como agora estamos
fazendo diante do presépio.
É preciso entender as
lições que nos dá Jesus já desde menino, desde recém-nascido, desde que os seus
olhos se abriram para esta bendita terra dos homens.
Jesus, crescendo e vivendo
como um de nós, revela-nos que a existência humana, a vida corrente e
ordinária, tem um sentido divino.
Por muito que tenhamos
pensado nestas verdades, devemos encher-nos sempre de admiração ao pensar nos
trinta anos de obscuridade que constituem a maior parte da passagem de Jesus
entre os seus irmãos, os homens.
Anos de sombra, mas, para
nós, claros como a luz do Sol.
Mais: resplendor que
ilumina os nossos dias e lhes dá uma autêntica projecção, pois somos cristãos
correntes, com uma vida vulgar, igual à de tantos milhões de pessoas nos mais
diversos lugares do Mundo.
Assim viveu Jesus seis
lustros: era filius fabris, o filho
do carpinteiro. Virão depois os três anos de vida pública, com o clamor das
multidões.
E as pessoas surpreendem-se:
Quem é este?
Onde aprendeu tantas
coisas?
Pois a sua vida tinha sido
a vida comum do povo da sua terra.
Era o faber, filius Mariae, o carpinteiro, filho de Maria.
E era Deus; e estava a
realizar a redenção do género humano; e estava a atrair a si todas as coisas.
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Como em relação a qualquer
outro aspecto da sua vida, nunca deveríamos contemplar esses anos ocultos de
Jesus sem nos sentirmos afectados, sem os reconhecermos como aquilo que são:
chamamentos que o Senhor nos dirige para sairmos do nosso egoísmo, do nosso
comodismo.
O Senhor conhece as nossas
limitações, o nosso individualismo e a nossa ambição: a dificuldade em nos
conhecermos a nós mesmos e de nos entregarmos aos outros.
Sabe o que é não encontrar
amor e verificar que mesmo aqueles que dizem segui-Lo o fazem só a meias.
Recordai as cenas
tremendas que os evangelistas nos descrevem e em que vemos os apóstolos ainda
cheios de aspirações temporais e de projectos exclusivamente humanos.
Mas Jesus escolheu-os,
mantém-nos juntos de Si e confia-lhes a missão que recebeu do Pai.
Também a nós nos chama e
nos pergunta como a Tiago e João: Potestis
bibere calicem quem ego bibiturus sum?; estais dispostos a beber o cálice
(este cálice da completa entrega ao cumprimento da vontade do Pai) que eu vou
beber?
"Possumus"!
Sim, estamos dispostos! -
é a resposta de João e Tiago...
Vós e eu, estamos
dispostos seriamente a cumprir, em tudo, a vontade do nosso Pai, Deus?
Demos ao Senhor o nosso
coração inteiro ou continuamos apegados a nós mesmos, aos nossos interesses, à
nossa comodidade, ao nosso amor-próprio?
Há em nós alguma coisa que
não corresponda à nossa condição de cristãos e que nos impeça de nos
purificarmos?
Hoje apresenta-se-nos a
ocasião de rectificar.
É necessário que nos
convençamos de que Jesus nos dirige pessoalmente estas perguntas.
É Ele que as faz, não eu.
Eu não me atreveria a
fazê-las a mim próprio.
Eu vou continuando a minha
oração em voz alta e vós, cada um de vós, por dentro, está confessando ao
Senhor: Senhor, que pouco valho!
Que cobarde tenho sido
tantas vezes!
Quantos erros!
Nesta ocasião e naquela...
nisto e naquilo...
E podemos exclamar também:
ainda bem, Senhor, que me tens sustentado com a tua mão, porque eu sinto-me
capaz de todas as infâmias...
Não me largues, não me
deixes; trata-me sempre como um menino. Que eu seja forte, valente, íntegro.
Mas ajuda-me, como a uma
criatura inexperiente.
Leva-me pela tua mão,
Senhor, e faz com que tua Mãe esteja também a meu lado e me proteja.
E assim, possumus!, poderemos, seremos capazes de
ter-Te por modelo!
Não é presunção afirmar possumus!
Jesus Cristo ensina-nos
este caminho divino e pede-nos que o apreendamos porque Ele o tornou humano e
acessível à nossa fraqueza.
Por isso se rebaixou
tanto: Este foi o motivo porque se abateu, tomando a forma de servo aquele
Senhor que, como Deus, era igual ao Pai; mas abateu-se na majestade e na
potência; não na bondade e na misericórdia.
A bondade de Deus quer
tornar-nos fácil o caminho.
Não rejeitemos o convite
de Jesus; não Lhe digamos que não; não nos façamos surdos ao seu chamamento;
pois não existem desculpas, não temos nenhum motivo para continuar a pensar que
não podemos.
Ele ensinou-nos com o seu
exemplo.
Portanto, peço-vos
encarecidamente, meus irmãos, que não permitais que se vos tenha mostrado em
vão exemplo tão precioso, mas que vos conformeis com Ele e vos renoveis no
espírito da vossa alma.
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Passou pela terra fazendo
o bem
Vedes como é necessário
conhecer Jesus, observar amorosamente a sua vida?
Muitas vezes fui à procura
da definição da biografia de Jesus na Sagrada Escritura.
Encontrei-a lendo aquela
que o Espírito Santo faz em duas palavras: pertransiit
benefaciendo.
Todos os dias de Jesus
Cristo na terra, desde o seu nascimento até à morte, pertransiit benefaciendo, foram preenchidos fazendo o bem. Como,
noutro lugar, a Escritura também diz: bene
omnia fecit, fez tudo bem, terminou bem todas as coisas, não fez senão o
bem.
E tu?
E eu?
Lancemos um olhar para ver
se temos alguma coisa que emendar. Eu, sim, encontro em mim muito que fazer.
Como me vejo incapaz, só
por mim, de fazer o bem e, como o próprio Jesus nos disse que sem Ele nada
podemos, vamos tu e eu implorar ao Senhor a sua assistência, por meio de sua
Mãe, neste colóquio íntimo, próprio das almas que amam a Deus.
Não acrescento mais nada,
porque é cada um de vós que tem de falar, segundo a sua particular necessidade.
Por dentro, e sem ruído de
palavras, neste mesmo momento em que vos dou estes conselhos, aplico esta
doutrina à minha própria miséria.
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Pertransiit benefaciendo...
Que fez Jesus para
derramar tanto bem, e só bem, por onde quer que passou?
Os Santos Evangelhos
transmitiram-nos outra biografia de Jesus, resumida em três palavras latinas,
que nos dá a resposta: erat subditus
illis, obedecia.
Hoje, que o ambiente está
cheio de desobediência, de murmuração, de desunião, havemos de estimar especialmente
a obediência.
Sou muito amigo da
liberdade e precisamente por isso amo tanto essa virtude cristã.
Devemos sentir-nos filhos
de Deus e viver com o empenho de cumprir a vontade do nosso Pai, de realizar
tudo segundo o querer de Deus, porque nos dá na gana, que é a razão mais
sobrenatural.
O espírito do Opus Dei,
que tenho procurado praticar e ensinar desde há mais de trinta e cinco anos,
fez-me compreender e amar a liberdade pessoal.
Quando Deus Nosso Senhor
concede a sua graça aos homens, quando os chama com uma vocação específica, é
como se lhes estendesse a mão, uma mão paternal, cheia de fortaleza, repleta
sobretudo de amor, porque nos busca um a um, como filhas e filhos seus, e
porque conhece a nossa debilidade.
O Senhor espera que
façamos o esforço de agarrar a sua mão, essa mão que Ele nos estende. Deus
pede-nos um esforço, prova da nossa liberdade.
E para conseguirmos isso,
temos de ser humildes, temos de sentir-nos filhos pequenos e amar a bendita
obediência com que respondemos à bendita paternidade de Deus.
Convém deixar o Senhor
meter-se nas nossas vidas e entrar confiadamente sem encontrar obstáculos nem
recantos obscuros. Nós, os homens, tendemos a defender-nos, a apegar-nos ao
nosso egoísmo.
Sempre tentamos ser reis,
ainda que seja do reino da nossa miséria. Entendei através desta consideração
por que motivo temos necessidade de recorrer a Jesus: para que Ele nos torne
verdadeiramente livres e, dessa forma, possamos servir a Deus e a todos os
homens.
Só assim perceberemos a
verdade daquelas palavras de S. Paulo: Agora, porém, livres do pecado e feitos
servos de Deus, tendes por fruto a santificação e por fim a vida eterna.
Porque o salário do pecado
é a morte, ao passo que o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Nosso Senhor
Jesus Cristo.
Estejamos precavidos,
portanto, visto que a nossa tendência para o egoísmo não morre e a tentação
pode insinuar-se de muitas maneiras.
Deus exige que, ao
obedecer, ponhamos em exercício a fé, porque a sua vontade não se manifesta com
aparato ruidoso; às vezes o Senhor sugere o seu querer como que em voz baixa,
lá no fundo da consciência; e é necessário escutar atentamente para distinguir
essa voz e ser-Lhe fiel.
Muitas vezes fala-nos
através doutros homens e pode acontecer que, à vista dos defeitos dessas
pessoas ou pensando que não estão bem informadas ou que talvez não tenham
entendido todos os dados do problema, surja uma espécie de convite a não
obedecermos.
Tudo isso pode ter um
significado divino, porque Deus não nos impõe uma obediência cega, mas uma
obediência inteligente, e temos de sentir a responsabilidade de ajudar os
outros com a luz do nosso entendimento.
Mas sejamos sinceros
connosco próprios: examinemos em cada caso se o que nos move é o amor à verdade
ou o egoísmo e o apego ao nosso próprio juízo.
Quando as nossas ideias
nos separam dos outros, quando nos levam a quebrar a comunhão, a unidade com os
nossos irmãos, é sinal certo que não estamos a actuar segundo o espírito de
Deus.
Não o esqueçamos: para
obedecer, repito, é preciso humildade. Vejamos de novo o exemplo de Cristo.
Jesus obedece, e obedece a
José e a Maria. Deus veio à Terra para obedecer, e para obedecer às criaturas.
São duas criaturas
perfeitíssimas - Santa Maria, Nossa Mãe; mais do que Ela só Deus; e aquele
varão castíssimo, José.
Mas criaturas.
E Jesus, que é Deus,
obedecia-lhes!
Temos de amar a Deus, para
amar assim a sua vontade, e ter desejos de responder aos chamamentos que nos
dirige através das obrigações da nossa vida corrente: nos deveres de estado, na
profissão, no trabalho, na família, no convívio social, no nosso próprio
sofrimento e no sofrimento dos outros homens, na amizade, no empenho de
realizar o que é bom e justo...
(cont)
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