INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
SEGUNDA
PARTE
JESUS
CRISTO
CAPÍTULO SEGUNDO
Desenvolvimento da Fé em Cristo nos
Artigos Cristológicos do Símbolo
6."Donde há de vir para julgar
os vivos e os mortos".
Rudolf Bultmann considera como
liquidada para o homem moderno a ideia da volta do Senhor, na qualidade juiz no
fim do mundo, equiparando-a com a descida aos infernos e a subida ao céu, como
coisas míticas: qualquer pessoa está convencida de que o mundo avança do mesmo
modo como progrediu durante quase dois mil anos após a pregação escatológica
do Novo Testamento. Uma tal purificação do pensamento parece impor-se aqui,
tanto mais, porque a mensagem bíblica neste ponto contém indiscutivelmente
fortes elementos cosmológicos, isto é, avança no terreno que consideramos campo
das ciências naturais. Certamente, na linguagem sobre o fim do mundo, o termo
"mundo" não denota primeiramente a estrutura física do cosmos, mas o
mundo dos homens, a história humana; portanto, o seu sentido imediato é que esta
espécie de mundo – o mundo humano – há-de chegar ao fim determinado e
concretizado por Deus. Contudo, não se pode negar que a Bíblia reveste esse
acontecimento essencialmente antropológico de imagens cosmológicas (e em parte
também políticas). Será difícil decidir até que ponto se trata de imagens e até
onde elas se referem ao próprio objecto.
Seguramente é viável dizer algo a
respeito, partindo do contexto mais vasto da cosmovisão da Bíblia. Ora, para a
Bíblia cosmos e homem não representam duas grandezas completamente separáveis,
como se o cosmos formasse, por exemplo, o cenário ocasional da existência
humana, a qual poderia ser separada dele, desenvolvendo-se independente do
mundo. Mundo e homem pertencem-se necessariamente, de modo a não se poder
imaginar o homem sem o mundo e o mundo sem o homem. O primeiro é-nos evidente,
sem mais; o segundo, após as lições de Teilhard de Chardin, também não deveria
ser completamente incompreensível. Nessa perspectiva surgiria a tentação de
afirmar que a mensagem bíblica do fim do mundo e do retorno do Senhor não é
pura antropologia revestida de imagens cósmicas, nem que ela apresenta um
aspecto cosmológico ao lado de outro antropológico, mas que, dentro da lógica
interna da visão bíblica total, ela representa a coincidência de antropologia e
cosmologia na cristologia definitiva e, exactamente ali, o fim do "mundo"
que sempre continua polarizado para esta união como sua meta, devido à sua
binário-una construção de cosmos e homem. Cosmos e homem que sempre pertenceram
um ao outro, muito embora tantas vezes se encontrem em oposição, tornar-se-ão
um, pela sua complexão no maior, no amor a envolver e ultrapassar o bios, como
dissemos antes: com isto volta a ser claro o quanto se identificam o
escatológico final e o avanço realizado na ressurreição de Jesus; torna-se
evidente que o Novo Testamento tem razão ao apontar a ressurreição como o facto
escatológico por excelência.
Para irmos adiante cumpre desenvolver
um pouco mais claramente os nossos pensamentos. Acabamos de dizer que o cosmos
não é apenas um espaço externo da história humana, nem uma imagem estática –
uma espécie de vaso-continente onde se encontram diversos seres que, por si,
poderiam perfeitamente estar em outro vaso qualquer. Positivamente, isto
significa que o cosmos é movimento; que não apenas existe uma história nele;
mas que ele mesmo é história. Não forma apenas o cenário da
história humana, mas ele mesmo já é "história", antes dela e com ela.
Em última análise, existe uma única história completa do mundo, a qual mantém
um rumo geral e vai "adiante" com seus altos e baixos, nos progressos
e regressos que a assinalem. Certamente, para quem apenas considerar uma
parcela, mesmo que seja realmente grande, a história parecerá estática, sempre
na mesma rotina. Não se descobre um rumo, mas o perene girar em torno do mesmo
centro. Somente consegue percebê-lo quem começar a observar o conjunto. Ora, no
seio do movimento cósmico, o espírito,
como antes o constatamos, não produto secundário dos azares da evolução,
produto sem importância para o todo; antes, averiguamos a matéria e o seu
desenvolvimento formam a pré-história do espírito.
A fé no retorno de Jesus Cristo e na
consumação do mundo nele poderia esclarecer-se como convicção de que a nossa
história avança rumo a um ponto ómega, no qual se revelará com claridade
definitiva e meridiana que aquele elemento estável, a dar-nos a impressão de
ser como que o solo da realidade a nos suster, não é a simples matéria
inconsciente, mas que o fundamento propriamente dito e sólido é a razão: ela
conserva o ser coeso, confere-lhe a realidade; ela é a realidade – não é
de baixo, mas do alto que o ser recebe a sua existência. A existência deste
processo da complexidade do ser material mediante o espírito e do espírito
mediante a síntese numa nova forma de união pode ser constatada, em certo
sentido, mesmo hoje em dia, na reformulação, quase recriadora, do mundo, tal
como se vem realizando graças à técnica. Na manipulação do real já começam a
esvair-se os limites entre natureza e técnica, que já não é mais possível
conservar a ambos distintamente separados entre si, sem confusão. Certamente, a
analogia é duvidosa em mais de um ponto de vista. Não obstante, tais processos
preconizam uma figura do mundo, na qual espírito e natureza não se acham
simplesmente um ao lado do outro, mas o espírito, em nova complexidade, absorve
em si o puramente natural, criando assim um mundo novo, conotando ao mesmo
tempo o desaparecimento do antigo. Ora, o fim do mundo em que o cristão
acredita é completamente diferente da vitória total da técnica. Mas, a fusão de
natureza e espírito, concretizada na técnica, possibilita-nos imaginar de modo
novo em que direcção a realidade da fé no retorno de Cristo há de ser pensada:
como fé na definitiva união do real, a partir do espírito.
Agora podemos prosseguir mais um pouco.
Dissemos que natureza e espírito formam uma única história a avançar
continuamente de modo tal que o espírito se revele sempre mais do que aquilo
que envolve tudo, desembocando finalmente antropologia e cosmologia numa única
torrente. Mas, afirmar a crescente complexidade do mundo pelo espírito conota
necessariamente uma união sua em algum centro pessoal, porquanto o espírito não
é algo indeterminado, mas, onde ele existe em sua peculiaridade, existe como
indivíduo, como pessoa. Existe algo assim como "espírito objectivo",
espírito investido em máquinas, em obras multiformes; mas em tudo isto o
espírito não se encontra na sua forma original: "espírito objectivo"
sempre deriva de espírito subjectivo, apontando para uma pessoa, que é a única
e exclusiva modalidade existencial do espírito. Por conseguinte, a afirmação de
que o mundo avança rumo a uma complexidade pelo espírito, inclui a afirmação de
que o cosmos se dirige na direcção de uma união pessoal.
Ora, isto torna a comprovar a infinita
primazia do indivíduo sobre a colectividade. Este princípio anteriormente
analisado torna a revelar-se agora em toda a sua amplitude. O mundo
movimenta-se na direcção da unidade na pessoa. O conjunto recebe o seu sentido
do individual e não o inverso. Essa evidência justifica novamente o aparente
positivismo da Cristologia, ou seja, a convicção, tão escandalosa para os
homens de todos os tempos, que considera um único como centro da história e do
todo. Este "positivismo" volta a mostrar-se aqui na sua necessidade
interna: se é verdade que no desfecho se encontra o triunfo do espírito, isto
é, da verdade, liberdade e amor, então não é uma força qualquer que consegue a
vitória final; no ponto final há-de encontrar-se um rosto. Então o ómega do
mundo é um "tu", uma pessoa, um indivíduo. Então a complexidade
total, a envolver e unir tudo de maneira infinita, é, ao mesmo tempo, negação
de qualquer colectivismo, de qualquer fanatismo da ideia pura, inclusive de uma
assim chamada ideia do cristianismo. O homem, a pessoa, sempre conservou a sua
primazia sobre a ideia.
Aqui inclui-se outra e muito importante
consequência. Se a vitória da ultra-complexidade final está baseada no espírito
e na liberdade, não se trata absolutamente de um caudal cósmico neutro, mas de
um princípio que inclui responsabilidade. Não acontece automaticamente, como
qualquer processo físico, mas baseando-se em decisões. Por esta razão, o
retorno do Senhor é não somente salvação, não apenas o ómega a recolocar tudo
em seu lugar, mas também julgamento. Aliás, nesta altura, estamos em condições
até de definir o sentido do discurso sobre juízo final. Ele diz-nos que o
estágio final do mundo não é resultado de um desenvolvimento natural, mas da
responsabilidade baseada na liberdade. Do seio destas conexões também se há-de
procurar compreender porque o Novo Testamento, apesar da sua mensagem da graça,
insiste em que no fim os homens serão julgados "pelas suas obras",
não havendo possibilidade para ninguém de escapar a esta prestação de contas
sobre a própria vida. Existe uma liberdade que não é eliminada pela graça, mas,
muito pelo contrário, é por ela levada à sua plenitude: o destino definitivo do
homem não lhe será imposto fora de sua decisão vital. O que, aliás, também é
necessário acentuar como limite contra um falso dogmatismo e uma segurança
cristã errada quanto à vida. Só uma tal averiguação preserva a igualdade dos
homens, mantendo a identidade da sua responsabilidade. Desde a época patrística
foi e continua sendo esta uma das tarefas decisivas da pregação cristã: trazer
à consciência essa identidade da responsabilidade, contrapondo-a à falsa
confiança no "dizer: Senhor, Senhor".
Nesse contexto não seria inútil aduzir
as considerações do grande teólogo judeu Leo Baeck, com as quais o cristão não
concordará, mas cuja seriedade não o deixará indiferente. Baeck lembra que a
razão peculiar da existência de Israel se transformou em consciência do serviço
em prol do futuro da humanidade. "Exige-se uma vocação especial, não
se anuncia, porém, nenhuma exclusividade da salvação. O judaísmo escapou
à tentação de circunscrever-se à estreiteza religiosa do conceito de uma
Igreja, fonte única da salvação. Onde não é a fé, mas a acção que conduz a
Deus, onde a comunidade oferece aos seus filhos, como sinal espiritual de
pertença, o ideal e a tarefa, ali o facto de estar na aliança da fé ainda não
pode garantir a salvação da alma". Baeck mostra, a seguir, de que maneira
esse universalismo da salvação baseada na obra, se cristalizou sempre mais no
judaísmo, para finalmente desabrochar totalmente no "clássico":
"também os piedosos que não são israelitas participam da salvação
eterna". Ninguém será capaz de ler sem consternação o que Baeck diz a
seguir, a saber, que bastará comparar esta frase "com a descrição que
Dante apresenta do lugar da condenação, local do destino até dos melhores de
entre os pagãos, com a inflacção de seus quadros de horror, correspondentes à
mentalidade eclesiástica dos séculos antes e depois, para sentir o contraste em
toda a sua agudeza".
Certamente muita coisa desta citação
pode ser contestada, por não exacta; contudo vejo nela uma verdade muito séria.
A seu modo, Baeck pode esclarecer em que consiste a irremissibilidade do artigo
sobre o juízo final de todos os homens "de acordo com as suas obras".
Não é tarefa nossa analisar em detalhe como essa afirmação pode impor-se com
todo o seu peso, ao lado da doutrina da graça. Talvez no fim de contas não se
consiga fugir a um paradoxo, cuja lógica só poderá abrir-se completamente à
experiência de uma vida de fé. Quem se confiar à fé, tornar-se-á consciente de
que existem ambas as coisas: a radicalidade da graça a libertar o homem
impotente e, não menos, a seriedade perene da responsabilidade que desafia o
homem dia e noite. As duas coisas reunidas significam que o cristão dispõe, por
um lado, da tranquilidade libertadora e desinibidora daquele que vive da super-abundância
da divina justiça e se chama Jesus Cristo. Existe uma serenidade que conta com
a certeza: em última análise nada posso destruir do que ele construiu.
Em si o homem carrega a terrível certeza de que o seu poder destruidor é
infinitamente maior do que o seu poderio construtivo. Mas sabe igualmente que,
em Cristo, o poder de reconstruir se revelou infinitamente mais potente. Daí
decorre uma profunda liberdade, um saber sobre o amor não arrependido de Deus,
que, atravessando todas as confusões, continua a querer-nos bem. Torna-se
possível fazer, sem medo, a própria obra que perdeu o seu aspecto pavoroso, por
ter perdido o seu poder destruidor: o resultado do mundo não depende de nós,
mas está nas mãos de Deus. Mas, ao mesmo tempo, o cristão sabe não ter sido
colocado dentro de uma coisa qualquer, sabe que a sua actividade não éum
brinquedo que Deus lhe deixa nas mãos, sem o tomar a sério. Sabe que deve
responder; que, como administrador, deve prestar contas do que lhe foi
confiado. Responsabilidade só existe onde houver um que a exige e examina. O
artigo sobre o Juízo Final mostra-nos ante os olhos de modo inequívoco este
exame final da nossa vida. Nada e ninguém nos confere credenciais para
minimizar a imensa seriedade que paira sobre um acontecimento assim, que revela
a nossa vida como sendo caso sério, que lhe confere assim a sua dignidade.
"Para julgar os vivos e os
mortos", o que, certamente, significa que ninguém, senão ele tem o
direito último de julgar. Com isto está dito que a injustiça do mundo não retém
a última palavra, também não se afirma que ela será eliminada indiferentemente
por meio de um acto geral de graça; existe, antes, uma instância última de apelação
que defende o direito para poder realizar o amor. Um amor que destruísse o
direito criaria a injustiça, não passando assim de caricatura de amor. O verdadeiro
amor conota excesso de direito, excesso sobre o justo, nunca porém destruição
da justiça, que há-de ser e permanecer a forma básica do amor.
Naturalmente devemos defender-nos também
contra outro extremo. Não se pode impugnar que o artigo sobre o juízo final se
desenvolveu, de tempos a tempos, numa forma na qual, praticamente, deveria
conduzir à destruição da fé na redenção, e da promessa da graça. Aduz-se, à
guisa de exemplo, a profunda antítese entre Maran atha e dies irae.
O cristianismo primitivo, na sua invocação deprecatória: "Senhor
nosso, vem! Maran atha" interpretou o retorno de Jesus como um
acontecimento cheio de esperança e de alegria, suspirando por ele como o
instante da grande realização. Para o cristão da Idade Média, ao contrário,
aquele instante surgia como o terrível "dia da ira" (dies irae)
diante do qual o homem gostaria de se desfazer em dor e terror, e para qual
olha com receio e com horror. O retorno do Cristo é simplesmente julgamento É o
dia da grande prestação de contas a ameaçar a cada um. Em semelhante
perspectiva foram esquecidos elementos decisivos: o Cristianismo ficou reduzido
praticamente ao moralismo, privado de qualquer sombra de esperança e de
alegria, onde, porém, está a sua expressão vital mais autêntica.
Talvez se deva dizer que o primeiro
impulso para essa evolução falha, que percebe apenas o risco da
responsabilidade e não a liberdade do amor, se encontra no nosso símbolo, onde,
ao menos para quem examinar o texto no seu sentido literal, o retorno de Cristo
se apresenta totalmente centrado e reduzido à ideia do julgamento: "donde
há de vir para julgar os vivos e os mortos". Sem dúvida, nos círculos
familiarizados com o símbolo, a herança cristã primitiva ainda estava bem viva;
sentia-se ainda a palavra sobre o juízo em ligação natural com a mensagem da
graça: o facto de ser Jesus o juiz por si mesmo mergulhava o julgamento
em uma atmosfera de esperança. Permito-me aduzir um trecho da chamada Segunda
Carta de Clemente em que esta mentalidade se revela de maneira muito clara:
"Irmãos, devemos pensar sobre Jesus Cristo como sobre Deus, como aquele
que julga vivos e mortos. Não devemos pensar na nossa salvação de maneira
mesquinha, pois pensando nela assim, também estaremos amesquinhando a nossa
esperança".
Torna-se visível agora onde está exactamente
o acento do nosso texto: não é meramente – como seria de esperar – Deus, o
infinito, o desconhecido, o eterno, quem julga. Antes, Deus confiou o
julgamento a um que, como homem, é irmão nosso. Não é um estranho que nos
julgará, mas aquele ao qual conhecemos pela fé. O juiz virá ao nosso encontro,
não como um inteiramente outro, mas como um dos nossos, que conheceu e sofreu
por dentro o "ser-homem".
E assim, automaticamente, paira sobre o
juízo a aurora da esperança; não é apenas dia de ira, mas dia do retorno de
Nosso Senhor. Acorre a grandiosa visão de Cristo com que principia o Apocalipse
(1,19): o vidente tomba como morto diante do vulto cheio de medonho poder. Mas
o Senhor põe a mão sobre ele e dirige-lhe a palavra que, outrora, lhe tinha
dito nos dias em que atravessavam juntos o lago de Genezaré em meio à
tempestade: "Não temas, sou eu" (1,17). O Senhor de todo o poder é
aquele Jesus, de quem o vidente se havia tornado outrora companheiro de viagem
pela fé. O artigo sobre o juízo final transfere precisamente este pensamento
para o nosso encontro com o juiz do mundo. Naquele dia de medo, o cristão
constatará, tomado de sagrada administração, que aquele "ao qual foi dado
todo o poder no céu e na terra" (Mt 28,18) fora seu companheiro de
jornada nos dias do peregrinar terreno, pela fé, e é como se ele, já agora, lhe
pusesse as mãos sobre a cabeça por meio das palavras do símbolo e dissesse:
"Não tenhas receio; sou eu". Talvez não se possa responder mais
belamente ao problema do entrelaçamento de juízo e graça, do que mediante a ideia
oculta por trás do nosso Credo.
(cont)
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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