INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
SEGUNDA
PARTE
JESUS
CRISTO
CAPÍTULO SEGUNDO
Desenvolvimento da Fé em Cristo nos Artigos Cristológicos do
Símbolo
4. Ressurgiu dos
mortos
…/2
Antes de mais, está
completamente claro que Cristo ressuscitado não retornou à sua vida terrestre
anterior, como se afirma, por exemplo, do jovem de Naim e de Lázaro. Cristo
ressurgiu para a vida definitiva que não se subordina mais às leis químicas e biológicas, estando por isto fora da possibilidade da morte, dentro
da eternidade concedida pelo amor. Por isso os encontros com Cristo são "aparições";
por isso, aquele do qual, dois dias antes, se era comensal na ceia, não é
reconhecido nem sequer pelos seus amigos mais íntimos e, mesmo reconhecido,
continua estranho: ele só é visto onde concede visão; só onde abre os olhos e o
coração se deixa abrir é que se torna reconhecível neste mundo mortal a face do
vencedor da morte e, nesta face, o outro mundo: o mundo que há-de vir. Por isso
é tão difícil, raiando mesmo pelo impossível, aos Evangelhos descrever os
encontros com o ressuscitado; por isso eles balbuciam apenas, ao falar do
ressuscitado, dando a impressão de contradizer-se, ao descrevê-lo. Na
realidade, os Evangelhos revelam uma espantosa unidade na dialética de suas
informações, na simultaneidade do tocar e do não tocar, do reconhecer e do não
reconhecer, da total identidade entre crucificado e ressuscitado, e na sua
completa mudança. Os discípulos reconhecem o Senhor e não o reconhecem;
palpam-no, mas ele é o intocável; ele é o mesmo e, contudo, é o todo outro.
Como se disse, esta dialética é sempre a mesma; mudam apenas os recursos de
estilo com que ela se exprime.
Examinemos mais de perto,
sob este aspecto, o episódio dos discípulos de Emaús, com que já nos deparamos
de passagem. À primeira vista tem-se a impressão de estarmos diante de uma
descrição totalmente terrena, maciça, como se nada restasse do mistério
indescritível que encontramos nos relatos paulinos. Parece predominar
totalmente a tendência de enfeitar, de lançar mão de um concreto lendário,
apoiada numa apologética que busca dados palpáveis, recolocando completamente o
Senhor ressuscitado dentro da história terrena. Contudo opõe-se a isto o seu
misterioso aparecimento e o não menos misterioso desaparecimento. Mais ainda se
opõe a circunstância de ele se conservar irreconhecível ao olhar comum. Não é
possível identificá-lo como durante a sua vida terrena. Ele se descobre
exclusivamente na esfera da fé; mediante a explicação da Escritura incendeia o
coração dos dois viandantes, e à fracção do pão abre-lhes os olhos. Temos aí a
indicação dos dois elementos fundamentais da antiga liturgia cristã a qual é
integrada de liturgia da palavra (leitura e interpretação da Escritura) e
liturgia da fracção do pão eucarístico. Assim o evangelista faz ver que o
encontro com o Ressuscitado se situa em um plano totalmente novo; tenta
descrever o indescritível, mediante o código dos acontecimentos litúrgicos. Com
isto oferece, simultaneamente, uma teologia da Ressurreição e da liturgia: o
Ressuscitado é encontrado na palavra e no sacramento; o serviço divino é a
maneira pela qual ele se nos torna tangível e reconhecível como vivo.
Vice-versa, liturgia baseia-se no mistério pascal; há de ser compreendida como
a aproximação do Senhor a nós, a tornar-se companheiro nosso de viagem,
incendiando o coração embotado, abrindo os olhos fechados. Cristo continua indo
conosco, volta sempre a encontrar-nos desanimados e queixosos, continua
dispondo da força para fazer-nos ver.
Naturalmente isto tudo diz
apenas a metade. O testemunho do Novo Testamento estaria falseado, se
quiséssemos ficar apenas nisto. A experiência do Ressuscitado é algo diverso do
encontro com um homem da nossa história; muito menos ainda pode ela ser
reduzida a conversas à mesa e a recordações que se tivessem afinal condensado
na ideia de que ele vive e de que a sua obra prossegue. Uma explicação assim
aplaina o evento na direcção oposta, nivelando-o à esfera humana, privando-o do
que lhe é peculiar. Os relatos da ressurreição são algo diferente e algo mais
que meras cenas litúrgicas camufladas: eles permitem ver o acontecimento
fundamental sobre o qual se ergue toda a liturgia cristã. Testemunham um
acontecimento que não brotou dos corações dos discípulos, mas que lhes
sobreveio de fora, dominando-os, de encontro à sua dúvida, e infundindo-lhes a
certeza de que "o Senhor ressuscitou verdadeiramente". O que jazera
no sepulcro não está mais lá, mas vive – é realmente ele mesmo quem vive. O que
fora arrebatado para o outro mundo de Deus, mostrou-se entretanto ser tão
poderoso que tornava palpável ser ele mesmo quem estava diante deles; mostrou
ter-se comprovado nele mais forte o poder do amor do que o poder da morte.
Somente tomando isto tudo
tão a sério como o que fora dito anteriormente é que se conservará a fidelidade
ao testemunho do Novo Testamento; só assim se salvará a sua seriedade
cosmo-histórica. A tentativa mais que cómoda de, por um lado, dispensar a fé no
mistério da potente actuação de Deus neste mundo, e no entanto simultaneamente
querer ter a satisfação de conservar-se no terreno da mensagem bíblica esta
tentativa conduz ao vácuo: não satisfaz nem à honestidade da razão nem às
razões da fé. Não é possível conservar juntas a fé cristã e a "religião
nos limites da razão pura"; a opção é inevitável. Naturalmente, o crente
verá com clareza crescente quão repleta de razão está a adesão àquele amor que
venceu a morte.
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão
da versão portuguesa por ama)
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