14/06/2016

Leitura espiritual

Leitura Espiritual


INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO

"Creio em Deus" – Hoje

SEGUNDA PARTE

JESUS CRISTO

CAPÍTULO SEGUNDO

Desenvolvimento da Fé em Cristo nos Artigos Cristológicos do Símbolo

4. Ressurgiu dos mortos

A ressurreição de Jesus Cristo representa para o cristão garantia da certeza da veracidade da palavra que antes pareceria um belo sonho: "Forte como a morte é o amor" (Ct 8,6). No Antigo Testamento este verso está emoldurado em uma exaltação da força do eros. Isto não quer dizer que podemos deixá-lo de lado como exagero poético. Na ilimitada pretensão do eros, em seus aparentes excessos e exageros, de facto revela-se um problema básico, aliás o problema por excelência da existência humana, porquanto a essência e o paradoxo interno do amor se traem pelo seguinte: o amor exige o infinito, o indestrutível, amor é como que um grito pelo ilimitado. Com isto, porém, coexiste o facto de ser irrealizável um tal clamor; de o amor querer o infinito, mas sem poder conferi-lo; de o amor fazer questão do ilimitado; estando, porém, de facto, preso ao mundo da morte, à sua solidão e ao seu poder destrutivo. Nesta perspectiva pode-se compreender o que vem a ser "ressurreição". Ela é a superioridade do amor sobre a morte.

Ao mesmo tempo, o amor é a prova do que só a imortalidade é capaz de realizar: existir num outro, que continuará quando eu tiver desaparecido. O homem é um ente incapaz de viver eternamente por si, sendo necessariamente presa da morte. Continuar vivendo, ele, que em si mesmo não tem apoio nem chance, só se torna possível, para falar de modo humano, mediante a sua continuação num outro. Desta perspectiva é que se devem encarar as declarações da Escritura sobre morte e pecado. Porquanto, aqui se torna claro que a tentativa humana de "ser como Deus", o seu empenho para conquistar poder, para poder firmar-se a si mesmo e em si mesmo significa a sua morte, porque facto é que o homem não é capaz de manter-se em si. Não reconhecendo os seus limites e, apesar disto, fazendo questão de afirmar-se, tornando-se totalmente "autárquico" – em que consiste a verdadeira essência do pecado – o homem entrega-se, exactamente por isso, à morte.

Naturalmente, chegado a este ponto, o homem compreende que a sua vida não se conserva sozinha e que se lhe impõe estar nos outros, a fim de, através deles, permanecer entre os vivos. Foram dois os principais caminhos tentados para se alcançar esta meta. Primeiro, a sobrevivência na própria prole: daí o facto de os povos primitivos considerarem uma maldição o celibato e a infecundidade que denotam o naufrágio sem esperança, a morte definitiva. Ao inverso, o maior número possível de filhos dá hipóteses de sobrevivência, esperança de imortalidade e, assim, a bênção que o homem pode esperar. Um outro caminho se abre quando o homem descobre ser muito relativa e problemática a sobrevivência nos filhos, desejando que de si reste algo mais. Portanto refugia-se na ideia da glória que o fará realmente imortal, conferindo-lhe a sobrevivência na memória dos outros. Mas também a imortalidade pela permanência nos outros fracassa não menos do que a primeira tentativa: o que resta não é o "eu", mas apenas um eco, uma sombra. Portanto a imortalidade auto-criada torna-se um simples hades, um scheol: antes um não-ser do que um ser. A insuficiência dos dois caminhos provém do facto de não ser eu mesmo, mas apenas um eco de mim o que o outro é capaz de conservar de mim, após a minha morte; e ainda mais, baseia-se na circunstância de o outro, ao qual como que confiei o meu espólio, não permanecer para sempre: também ele há de ruir.

Isto conduz-nos ao próximo passo. Até agora vimos que o homem não tem nenhum ponto de apoio para si mesmo, consequentemente podendo subsistir somente no outro; no outro, porém, ele só se revê como sombra e não definitivamente porque também o outro se esvai. Sendo assim, só existe um capaz de conferir a conservação, a permanência , aquele que "é", que não devém nem se esvai, mas que se conserva na torrente do devir e da passagem: o Deus dos vivos, que não conserva apenas a sombra e o eco do meu ser, o Deus, cujos pensamentos não são meras imitações da realidade. Eu mesmo sou o seu pensamento, o qual, por assim dizer, me ergue antes mesmo de eu ser; o seu pensamento não é a sombra posterior, mas a força original da minha existência. Nele não só me é facultado existir como sombra, mas nele posso existir em verdade, mais perto de mim do que tentando existir só por mim.

Antes de retornar à ressurreição, tentemos encarar este mesmo tema ainda sob um ângulo diferente. Podemos voltar à ideia de amor e ao tema morte e dizer: só onde o valor do amor ultrapassa o da morte, isto é, onde alguém está disposto a colocar a vida atrás do amor e por causa do amor, somente ali o amor será capaz de ser mais forte do que a morte. Para ser mais forte do que a morte, o amor há-de ser primeiramente mais do que a vida. Se conseguisse isto não só pela vontade, mas de facto, significaria que a força do amor se teria elevado acima da capacidade biológica, colocando-a a seu serviço. Falando-se em termos de Teilhard de Chardin: onde tal coisa se desse, teria lugar a decisiva "complexidade" e "complexão"; ali também o bios (a vida) estaria envolvido e incluído no poder do amor. Ali o amor ultrapassaria a sua fronteira – a morte – gerando união onde a morte cria separação. Se a força do amor ao outro fosse forte a ponto de estar capacitada a conservar viva não só a sua memória, a sombra do seu "eu", mas o próprio outro, teria sido alcançado um novo degrau de vida, que deixaria para trás a esfera das mutações e evoluções biológicas, conotando o salto a uma esfera totalmente nova, na qual o amor não estaria mais sujeito ao bios, mas dele se haveria de servir. Um tal derradeiro grau de "mutação" e de "evolução" não seria mais um grau biológico, mas denotaria a fuga ao monodomínio do bios, que é, ao mesmo tempo, domínio da morte; abriria aquele espaço, chamado zoe na Bíblia grega, isto é, vida definitiva que deixou para trás o regime da morte. O último degrau da evolução, de que o mundo está necessitado para alcançar a sua meta, não teria sido realizado dentro do biológico, mas pelo espírito, pela liberdade, pelo amor. Não seria mais evolução, mas opção e dádiva em um.

Mas, que é que tudo isto tem de comum com a ressurreição de Jesus? Ora, até aqui consideramos o problema da imortalidade do homem de dois lados que, aliás, se revelam agora como facetas de um único e idêntico estado de coisas. Dado que o homem por si mesmo não dispõe de meios para subsistir, afirmamos que a sua sobrevivência somente poderá originar-se através da sua continuação em vida, num outro. E dissemos a respeito deste "outro" que somente o amor que admite o amado no seu íntimo estaria em condições de possibilitar essa existência num outro. Ao meu ver, os dois aspectos complementares espelham-se nas duas formas de apresentar a ressurreição do Senhor no Novo Testamento: "Jesus ressurgiu" e "Deus (Pai) ressuscitou a Jesus". As duas fórmulas coincidem no facto de o amor total de Jesus aos homens, amor que o levou à cruz, se completar na sua total transferência para o Pai, tornando-se assim mais forte do que a morte, por ser, ao mesmo tempo, totalmente sustentado por ele.

Daqui se segue um outro passo. Podemos afirmar que o amor serve sempre de fundamento para alguma espécie de imortalidade; inclusive nas suas gradações sub-humanas o amor aponta para esta direcção, em forma de conservação das espécies. Aliás, servir de base para a imortalidade não é algo de acidental ao amor, algo que o amor eventualmente fizesse ao lado de outras coisas, mas constitui a sua verdadeira natureza. Esta afirmação pode ser invertida, significando então que a imortalidade sempre nasce do amor, jamais da autarquia de quem julga bastar-se a si próprio. Podemos até atrever-nos a afirmar que esta constatação, bem compreendida, vale mesmo em relação a Deus, tal como o vê a fé cristã. Também Deus é puro estar e subsistir, face a todo o contingente, por ser relação das três Pessoas entre si, por ser abismar-se na reciprocidade do amor, por ser amor vivo exclusivamente da mútua correlação. Não é divina aquela autarquia que a ninguém conhece senão a si, afirmamos anteriormente. A revolução na imagem cristã do mundo e de Deus, em relação ao mundo antigo, encontramo-la no facto de ela ensinar a compreender o "absoluto" como absoluta "relatividade", como relatio subsistens.

Voltemos ao assunto. Amor fundamenta imortalidade e imortalidade nasce exclusivamente de amor. Esta constatação a que agora chegamos significa que aquele que amor por todos, também fundou imortalidade para todos. Este é o sentido exacto da afirmação bíblica de que a sua ressurreição é a nossa vida. O argumento de S. Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, tão estranho à nossa mentalidade, torna-se compreensível dentro desta perspectiva: se Cristo ressurgiu, também nós, pois neste caso o amor é mais forte do que a morte; se não ressurgiu, nós também não, porquanto a morte continua estando com a última palavra (cfr. 1Cor 15,16 s). Trata-se de um assunto fundamental, por isto tornamos a tecer outra série de considerações em torno do pensamento paulino: amor ou é ou não é mais forte do que a morte. Se o amor se tornou mais forte do que a morte, deve-o ao facto de ser amor pelos outros. O que, naturalmente, significa que o nosso próprio amor isolado não basta para vencer a morte, mas, considerado em si, deveria continuar como um apelo não completado. Isto quer dizer que unicamente o seu amor, coincidente com o divino poder de vida e de amor, é capaz de servir de base para a nossa imortalidade. Apesar disto, continua válido que a maneira da nossa imortalidade há de depender da maneira do nosso amor. Teremos de tornar ao assunto quando tratarmos do julgamento.

Ainda outra conclusão pode ser tirada do que foi exposto. É evidente que a vida do ressuscitado não será uma repetição do bios, da forma biológica da nossa vida mortal intra-histórica, mas será zoe, vida nova, outra, definitiva; vida que ultrapassou o espaço mortal da história da vida, ultrapassado aí por um poder maior. Os relatos do Novo Testamento sobre a ressurreição permitem reconhecer muito claramente que a vida do Ressuscitado não se situa dentro da bios-história, mas fora e acima da mesma. Naturalmente, essa nova vida comprovou-se e devia comprovar-se na história, porquanto ela existe para a história, e anúncio cristão, no fundo, nada mais é do que passar adiante o testemunho de que o amor conseguiu atravessar a morte, transformando assim fundamentalmente a situação de todos. Com tais suposições não é difícil encontrar a hermenêutica certa para a penosa tarefa de interpretar os textos bíblicos sobre a ressurreição, isto é, a de conseguir clareza sobre o sentido em que eles devem ser correctamente compreendidos. Evidentemente não podemos tentar aqui um debate sobre os diversos aspectos deste assunto, que se apresentam, hoje mais do que nunca, muito complexos, principalmente pelo facto de declarações históricas – em geral insuficientemente amadurecidas – e filosóficas irem formando um novelo mais intrincado e, não poucas vezes, a exegese criar, para seu uso, a sua própria filosofia, que ao não iniciado há-de causar a impressão de uma elevação do facto bíblico ao mais alto grau. Sempre ficará muita coisa discutível em concreto, a respeito deste assunto; contudo, não se pode deixar de reconhecer um limite básico entre interpretação que é interpretação e adaptações pessoais.


joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.

(Revisão da versão portuguesa por ama)






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