INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
SEGUNDA
PARTE
JESUS
CRISTO
CAPÍTULO SEGUNDO
Desenvolvimento da Fé em Cristo nos Artigos
Cristológicos do Símbolo
4. Ressurgiu dos mortos
A ressurreição de Jesus Cristo representa para o
cristão garantia da certeza da veracidade da palavra que antes pareceria um
belo sonho: "Forte como a morte é o amor" (Ct 8,6). No Antigo
Testamento este verso está emoldurado em uma exaltação da força do eros. Isto
não quer dizer que podemos deixá-lo de lado como exagero poético. Na ilimitada
pretensão do eros, em seus aparentes excessos e exageros, de facto
revela-se um problema básico, aliás o problema por excelência da existência humana,
porquanto a essência e o paradoxo interno do amor se traem pelo seguinte: o amor
exige o infinito, o indestrutível, amor é como que um grito pelo ilimitado. Com
isto, porém, coexiste o facto de ser irrealizável um tal clamor; de o amor
querer o infinito, mas sem poder conferi-lo; de o amor fazer questão do
ilimitado; estando, porém, de facto, preso ao mundo da morte, à sua solidão e
ao seu poder destrutivo. Nesta perspectiva pode-se compreender o que vem a ser
"ressurreição". Ela é a superioridade do amor sobre a morte.
Ao mesmo tempo, o amor é a prova do que só a
imortalidade é capaz de realizar: existir num outro, que continuará quando eu
tiver desaparecido. O homem é um ente incapaz de viver eternamente por si,
sendo necessariamente presa da morte. Continuar vivendo, ele, que em si mesmo
não tem apoio nem chance, só se torna possível, para falar de modo humano,
mediante a sua continuação num outro. Desta perspectiva é que se devem encarar
as declarações da Escritura sobre morte e pecado. Porquanto, aqui se torna
claro que a tentativa humana de "ser como Deus", o seu empenho para
conquistar poder, para poder firmar-se a si mesmo e em si mesmo significa a sua
morte, porque facto é que o homem não é capaz de manter-se em si. Não
reconhecendo os seus limites e, apesar disto, fazendo questão de afirmar-se,
tornando-se totalmente "autárquico" – em que consiste a verdadeira
essência do pecado – o homem entrega-se, exactamente por isso, à morte.
Naturalmente, chegado a este ponto, o homem
compreende que a sua vida não se conserva sozinha e que se lhe impõe estar nos
outros, a fim de, através deles, permanecer entre os vivos. Foram dois os
principais caminhos tentados para se alcançar esta meta. Primeiro, a
sobrevivência na própria prole: daí o facto de os povos primitivos considerarem
uma maldição o celibato e a infecundidade que denotam o naufrágio sem
esperança, a morte definitiva. Ao inverso, o maior número possível de filhos dá
hipóteses de sobrevivência, esperança de imortalidade e, assim, a bênção que o
homem pode esperar. Um outro caminho se abre quando o homem descobre ser muito
relativa e problemática a sobrevivência nos filhos, desejando que de si reste
algo mais. Portanto refugia-se na ideia da glória que o fará realmente imortal,
conferindo-lhe a sobrevivência na memória dos outros. Mas também a imortalidade
pela permanência nos outros fracassa não menos do que a primeira tentativa: o
que resta não é o "eu", mas apenas um eco, uma sombra. Portanto a
imortalidade auto-criada torna-se um simples hades, um scheol: antes
um não-ser do que um ser. A insuficiência dos dois caminhos provém do facto de
não ser eu mesmo, mas apenas um eco de mim o que o outro é capaz de conservar
de mim, após a minha morte; e ainda mais, baseia-se na circunstância de o
outro, ao qual como que confiei o meu espólio, não permanecer para sempre:
também ele há de ruir.
Isto conduz-nos ao próximo passo. Até agora vimos que
o homem não tem nenhum ponto de apoio para si mesmo, consequentemente podendo
subsistir somente no outro; no outro, porém, ele só se revê como sombra e não
definitivamente porque também o outro se esvai. Sendo assim, só existe um capaz
de conferir a conservação, a permanência , aquele que "é", que
não devém nem se esvai, mas que se conserva na torrente do devir e da passagem:
o Deus dos vivos, que não conserva apenas a sombra e o eco do meu ser, o Deus,
cujos pensamentos não são meras imitações da realidade. Eu mesmo sou o seu
pensamento, o qual, por assim dizer, me ergue antes mesmo de eu ser; o seu
pensamento não é a sombra posterior, mas a força original da minha existência.
Nele não só me é facultado existir como sombra, mas nele posso existir em verdade,
mais perto de mim do que tentando existir só por mim.
Antes de retornar à ressurreição, tentemos encarar
este mesmo tema ainda sob um ângulo diferente. Podemos voltar à ideia de amor e
ao tema morte e dizer: só onde o valor do amor ultrapassa o da morte, isto é,
onde alguém está disposto a colocar a vida atrás do amor e por causa do amor,
somente ali o amor será capaz de ser mais forte do que a morte. Para ser mais
forte do que a morte, o amor há-de ser primeiramente mais do que a vida. Se conseguisse
isto não só pela vontade, mas de facto, significaria que a força do amor se
teria elevado acima da capacidade biológica, colocando-a a seu serviço.
Falando-se em termos de Teilhard de Chardin: onde tal coisa se desse, teria
lugar a decisiva "complexidade" e "complexão"; ali também o
bios (a vida) estaria envolvido e incluído no poder do amor. Ali o amor
ultrapassaria a sua fronteira – a morte – gerando união onde a morte cria separação.
Se a força do amor ao outro fosse forte a ponto de estar capacitada a conservar
viva não só a sua memória, a sombra do seu "eu", mas o próprio outro,
teria sido alcançado um novo degrau de vida, que deixaria para trás a esfera
das mutações e evoluções biológicas, conotando o salto a uma esfera totalmente nova,
na qual o amor não estaria mais sujeito ao bios, mas dele se haveria de
servir. Um tal derradeiro grau de "mutação" e de "evolução"
não seria mais um grau biológico, mas denotaria a fuga ao monodomínio do bios,
que é, ao mesmo tempo, domínio da morte; abriria aquele espaço, chamado zoe
na Bíblia grega, isto é, vida definitiva que deixou para trás o regime da
morte. O último degrau da evolução, de que o mundo está necessitado para
alcançar a sua meta, não teria sido realizado dentro do biológico, mas pelo
espírito, pela liberdade, pelo amor. Não seria mais evolução, mas opção e
dádiva em um.
Mas, que é que tudo isto tem de comum com a
ressurreição de Jesus? Ora, até aqui consideramos o problema da imortalidade do
homem de dois lados que, aliás, se revelam agora como facetas de um único e
idêntico estado de coisas. Dado que o homem por si mesmo não dispõe de meios
para subsistir, afirmamos que a sua sobrevivência somente poderá originar-se
através da sua continuação em vida, num outro. E dissemos a respeito deste "outro"
que somente o amor que admite o amado no seu íntimo estaria em condições de
possibilitar essa existência num outro. Ao meu ver, os dois aspectos
complementares espelham-se nas duas formas de apresentar a ressurreição do
Senhor no Novo Testamento: "Jesus ressurgiu" e "Deus (Pai)
ressuscitou a Jesus". As duas fórmulas coincidem no facto de o amor total
de Jesus aos homens, amor que o levou à cruz, se completar na sua total
transferência para o Pai, tornando-se assim mais forte do que a morte, por ser,
ao mesmo tempo, totalmente sustentado por ele.
Daqui se segue um outro passo. Podemos afirmar que
o amor serve sempre de fundamento para alguma espécie de imortalidade;
inclusive nas suas gradações sub-humanas o amor aponta para esta direcção, em
forma de conservação das espécies. Aliás, servir de base para a imortalidade
não é algo de acidental ao amor, algo que o amor eventualmente fizesse ao lado
de outras coisas, mas constitui a sua verdadeira natureza. Esta afirmação pode
ser invertida, significando então que a imortalidade sempre nasce do
amor, jamais da autarquia de quem julga bastar-se a si próprio. Podemos até
atrever-nos a afirmar que esta constatação, bem compreendida, vale mesmo em relação
a Deus, tal como o vê a fé cristã. Também Deus é puro estar e subsistir, face a
todo o contingente, por ser relação das três Pessoas entre si, por ser
abismar-se na reciprocidade do amor, por ser amor vivo exclusivamente da mútua
correlação. Não é divina aquela autarquia que a ninguém conhece senão a si,
afirmamos anteriormente. A revolução na imagem cristã do mundo e de Deus, em relação
ao mundo antigo, encontramo-la no facto de ela ensinar a compreender o
"absoluto" como absoluta "relatividade", como relatio
subsistens.
Voltemos ao assunto. Amor fundamenta imortalidade e
imortalidade nasce exclusivamente de amor. Esta constatação a que agora
chegamos significa que aquele que amor por todos, também fundou imortalidade
para todos. Este é o sentido exacto da afirmação bíblica de que a sua ressurreição
é a nossa vida. O argumento de S. Paulo na Primeira Carta aos Coríntios,
tão estranho à nossa mentalidade, torna-se compreensível dentro desta
perspectiva: se Cristo ressurgiu, também nós, pois neste caso o amor é mais
forte do que a morte; se não ressurgiu, nós também não, porquanto a morte
continua estando com a última palavra (cfr. 1Cor 15,16 s). Trata-se de
um assunto fundamental, por isto tornamos a tecer outra série de considerações
em torno do pensamento paulino: amor ou é ou não é mais forte do que a morte.
Se o amor se tornou mais forte do que a morte, deve-o ao facto de ser amor
pelos outros. O que, naturalmente, significa que o nosso próprio amor isolado
não basta para vencer a morte, mas, considerado em si, deveria continuar como
um apelo não completado. Isto quer dizer que unicamente o seu amor, coincidente
com o divino poder de vida e de amor, é capaz de servir de base para a nossa
imortalidade. Apesar disto, continua válido que a maneira da nossa imortalidade
há de depender da maneira do nosso amor. Teremos de tornar ao assunto quando
tratarmos do julgamento.
Ainda outra conclusão pode ser tirada do que foi
exposto. É evidente que a vida do ressuscitado não será uma repetição do bios,
da forma biológica da nossa vida mortal intra-histórica, mas será zoe, vida
nova, outra, definitiva; vida que ultrapassou o espaço mortal da história da
vida, ultrapassado aí por um poder maior. Os relatos do Novo Testamento sobre a
ressurreição permitem reconhecer muito claramente que a vida do Ressuscitado
não se situa dentro da bios-história, mas fora e acima da mesma. Naturalmente,
essa nova vida comprovou-se e devia comprovar-se na história, porquanto ela
existe para a história, e anúncio cristão, no fundo, nada mais é do que passar
adiante o testemunho de que o amor conseguiu atravessar a morte, transformando
assim fundamentalmente a situação de todos. Com tais suposições não é difícil
encontrar a hermenêutica certa para a penosa tarefa de interpretar os textos bíblicos
sobre a ressurreição, isto é, a de conseguir clareza sobre o sentido em que
eles devem ser correctamente compreendidos. Evidentemente não podemos tentar
aqui um debate sobre os diversos aspectos deste assunto, que se apresentam,
hoje mais do que nunca, muito complexos, principalmente pelo facto de
declarações históricas – em geral insuficientemente amadurecidas – e
filosóficas irem formando um novelo mais intrincado e, não poucas vezes, a
exegese criar, para seu uso, a sua própria filosofia, que ao não iniciado há-de
causar a impressão de uma elevação do facto bíblico ao mais alto grau. Sempre
ficará muita coisa discutível em concreto, a respeito deste assunto; contudo,
não se pode deixar de reconhecer um limite básico entre interpretação que é
interpretação e adaptações pessoais.
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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