INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO
"Creio
em Deus" – Hoje
SEGUNDA
PARTE
JESUS
CRISTO
CAPÍTULO SEGUNDO
Desenvolvimento da Fé em Cristo nos Artigos
Cristológicos do Símbolo
3. "Desceu aos infernos"
Talvez nenhum artigo do Credo esteja mais longe de
nossa consciência actual do que este. Ao lado dos artigos do nascimento de
Jesus da Virgem Maria e da ascensão do Senhor, este artigo é o que mais aguça o
apetite para a "desmitificação", que aqui parece poder processar-se
sem perigo e sem escândalo. Os poucos textos em que a Escritura parece falar
algo a respeito (1Pdr 3,19 s; 4,6; Ef 4,9; Rom 10,7; Mt
12,40, At 2,27. 31) são tão difíceis de compreender, que facilmente
se pode interpretá-los em muitos sentidos. Se, de acordo com isto, o artigo for
totalmente eliminado, parece ter-se a vantagem de ficar livre de um assunto que
dificilmente se enquadra na nossa mentalidade sem que se tenha tornado culpado
de alguma infidelidade especial. Mas, haverá realmente algum proveito nisto? Ou
apenas se tenta sair do caminho, diante da dificuldade e do mistério da
realidade? Pode tentar-se superar problemas ou negando-os sem mais, ou enfrentando-os.
O primeiro caminho é mais cómodo, mas somente o segundo conduz para a frente.
Portanto, em vez de eliminar o problema, não seria o caso de aprender a
compreender que este artigo ao qual se subordina, no correr do ano litúrgico, o
Sábado Santo, nos está particularmente próximo, constituindo de maneira toda
especial a experiência do nosso século? Na Sexta-Feira da Paixão, de qualquer
maneira, o olhar permanece cravado no Crucificado, enquanto o Sábado Santo é o
dia da "morte de Deus", o dia que exprime e preconiza a inaudita
experiência do nosso tempo: Deus está simplesmente ausente, o túmulo encobre-o,
Deus não acorda mais, não fala mais, de modo que não é mais preciso nem mesmo
contestá-lo, bastando apenas ignorá-lo. "Deus está morto e nós o matámos":
esta frase de Nietzsche pertence verbalmente à tradição da devoção à paixão do
Senhor; exprime o conteúdo do Sábado Santo, o "desceu aos infernos".
Em nexo com este artigo acorrem-me duas cenas
bíblicas. Primeiro, a cruel história do Antigo Testamento em que Elias desafia
os sacerdotes de Baal a impetrar da sua divindade o fogo para o sacrifício.
Fazem-no e, logicamente, nada acontece. Elias escarnece deles, exactamente como
um espírito iluminado zomba do homem piedoso, julgando-o ridículo, quando nada
acontece em resposta à sua prece. Elias anima-os; talvez não tenham rezado
bastante alto: "Gritai mais alto; pois sendo um deus, terá preocupações,
ou ter-se-á retirado, ou estará viajando; é possível que esteja dormindo e é
mister despertá-lo!" (1Rs 18,27). Lendo hoje estes motejos
dirigidos aos devotos de Baal, alguém pode sentir-se um tanto inseguro; pode-se
ter a sensação de sermos nós os que se acham naquela situação,
cabendo-nos a nós os escárneos. Nenhum clamor parece capaz de despertar Deus. O
racionalista pode dizer-nos calmamente: Rezai mais alto; talvez então o vosso
Deus desperte. "Desceu aos infernos": quão realisticamente se retrata
aí a verdade da hora presente, a descida de Deus ao silêncio, ao lúgubre
calar-se de quem não mais está presente.
Mas, ao lado da história de Elias e da página
análoga no Novo Testamento, na narrativa sobre o Senhor a dormir no meio da
borrasca (Mc 4,35-41 e par), também a história dos
discípulos de Emaús encontra aqui o seu lugar (Lc 24,13-35). Os
discípulos perturbados falam da morte da sua esperança. Para eles sucedeu algo
assim como a morte de Deus: extinguiu-se o ponto onde Deus finalmente parecia
ter falado. O mensageiro de Deus está morto, o vazio é total. Nada mais
responde. Mas, enquanto assim falam da morte da sua esperança, incapazes de ver
a Deus, não percebem que no seu meio se encontra precisamente esta esperança.
Que "Deus" ou antes aquela imagem que fizeram da sua promessa, devia
morrer, para viver tanto maior. Devia ser destruída a imagem que fizeram de
Deus, e a cuja camisa de forças teimavam em forçá-lo, para que, quase como por
sobre os escombros da casa destruída, pudessem reencontrar o horizonte e a ele
mesmo que permanece o infinitamente maior. Eichendorff formulou-o no estilo
sentimental e quase ingénuo do seu século:
"Tu és, ó Deus sereno,
Quem, lá do alto trono,
Destrói o que eu ponho,
A fim de que, sem choro,
O céu, mais claro, eu veja".
Portanto, o artigo da descida do Senhor aos
infernos lembra-nos que à revelação cristã pertence não somente o falar de
Deus, mas também o seu silêncio. Deus não é apenas a palavra compreensível que
nos vem ao encontro; ele é igualmente o abismo calado e inacessível,
incompreendido e incompreensível, que nos foge. Certamente, no Cristianismo há
um primado do Logos, da palavra a anteceder o silêncio: Deus falou. Deus é
palavra. Apesar disto, não podemos esquecer o ocultamento de Deus que jamais
termina. Somente experimentando-o como silêncio, podemos esperar ouvir também a
sua voz que clama no silêncio. Através da cruz a cristologia oferece o momento
da palpabilidade do divino amor, até para além das fronteiras da morte, no meio
do silêncio e do obscurecimento de Deus. Será de admirar se a Igreja, se a vida
de cada um é conduzida continuamente para essa hora de silêncio, para o
esquecido e desprezado artigo "desceu aos infernos"?
Ponderando isto, resolve-se automaticamente a
questão sobre a "prova escriturística" para ele; pelo menos no grito
de morte de Jesus: "Meu Deus, por que me abandonaste?" torna-se
visível, qual deslumbrante resplendor de um relâmpago em noite escura, a
descida de Jesus aos infernos. Não esqueçamos ser esta palavra do Crucificado o
verso inicial de uma oração de Israel (Sl 22 [21],2), que resume
tremendamente a miséria e a esperança desse povo eleito e aparentemente tão
abandonado por Deus. Esta prece, brotada da miséria mais profunda da treva de
Deus, termina com um louvor à divina grandeza. Também este elemento está
presente no grito de agonia de Jesus, grito que Ernst Käsemann, há pouco,
descreveu como uma súplica a subir do inferno, como a elevação do primeiro
mandamento no deserto da aparente ausência de Deus. "O Filho ainda
conserva a fé, quando ela parece ter-se tornado sem sentido, revelando a
realidade do Deus ausente, do qual não é em vão que falam o mau ladrão e a multidão
motejante. O seu clamor não se refere à vida nem ao além-vida, não se refere a
ele, mas ao Pai. O seu grito ergue-se contra a realidade do mundo
inteiro". Será preciso ainda perguntar pelo sentido da adoração nesta hora
de treva? A adoração pode ser outra coisa que não o grito das profundezas,
junto com o Senhor que "desceu aos infernos", e que estabeleceu a
proximidade de Deus no coração da ausência de Deus?
Tentemos outra consideração para penetrar neste
complexo mistério, impossível de ser esclarecido por apenas um lado.
Primeiramente voltemos a socorrer-nos de um facto exegético. Afirma-se que a
palavra "inferno" não passa de reprodução errónea de scheol (grego:
hades), com que os hebreus designam a condição após a morte,
representada confusamente como uma espécie de existência sonambúlica, mais
não-ser do que ser. De acordo com isto, o artigo denotaria que Jesus entrou no scheol,
isto é, morreu. Pode ser. Mas continua a pergunta: com isto simplificou-se
o assunto, tornou-se menos misterioso? Creio que, exactamente agora, é que se
apresenta o problema da morte. O que vem a ser morte, que acontece quando
alguém morre, tombando sob o destino da morte? Todos temos de reconhecer o
nosso embaraço diante deste problema. Ninguém sabe a resposta com exactidão,
porque todos vivemos aquém da morte, não tendo ainda provado o seu amargor.
Talvez, porém, se possa tentar uma aproximação a partir, novamente, do grito de
Jesus na cruz, grito no qual identificamos a essência do que vem a ser descida
de Jesus, participação no destino da morte dos homens. Porquanto, nesta
derradeira prece, do mesmo modo como na cena da agonia no Horto das Oliveiras,
revela-se, qual elemento mais profundo da sua paixão, não uma dor física
qualquer, mas a solidão radical, o completo abandono. Ora, nisto manifesta-se
afinal o abismo da solidão humana em geral, do homem que, em seu âmago, está
sozinho. Essa solidão, a maior parte das vezes camuflada, sem deixar de
constituir a verdadeira situação do homem, denota simultaneamente o paradoxo
mais profundo em relação à natureza do homem, que não pode estar sozinho, mas
carece de companhia. Por esta razão a solidão é a causa do medo, fundada na
fragilidade do ser, destinado a existir e, não obstante, condenado ao que lhe é
impossível.
Tentemos exemplificá-lo ainda. Uma criança obrigada
a atravessar sozinha uma floresta numa noite escura tem medo mesmo se lhe
provarem de modo convincente que nada existe capaz de provocar o temor. No
momento em que se vê no meio da treva, sentindo a solidão de modo radical, eis
que surge o medo, o medo essencialmente humano, que não é temor de alguma
coisa, mas medo em si. O receio de algo concreto é inócuo em si, podendo ser
superado pelo afastamento da sua causa. O medo de um cachorro bravo, por
exemplo, elimina-se prendendo o cão. Agora, porém, deparamos com algo muito
mais profundo: cercado da solidão última, o homem teme não uma coisa
determinada; muito mais, sente receio da solidão, experimenta o horror e a
fragilidade do seu próprio ser, impossíveis de serem vencidos racionalmente. Ainda
outro exemplo: sozinho, à noite, a fazer guarda a um defunto, o homem sentirá,
de algum modo sinistro a sua situação, mesmo estando em condições e
esforçando-se em convencer-se racionalmente de que os seus sentimentos carecem
de base. Sabe perfeitamente que o morto nada lhe poderá fazer e que a sua situação
talvez fosse muito mais perigosa, se ele ainda estivesse vivo. O que desperta
aqui é uma uma outra espécie de medo; não medo de alguma coisa, mas da lúgubre
solidão em si, da fragilidade da existência, face a face com a solidão da
morte.
Mas, sendo totalmente inoperante o argumento da
falta de objecto, como poderá ser superado um tal medo? Pois bem, a criança
perderá o medo no momento em que sua mão sentir o aconchego de outra mão amiga,
em que soar outra voz falando com ela; ou seja, no instante em que experimentar
a presença de uma pessoa bondosa. O que se encontra a sós com um defunto,
também sentirá desaparecer o receio, se houver alguém na sua companhia, e
sentir a proximidade de um "tu". Esta superação do medo revela
simultaneamente a sua natureza, a saber, que se trata de medo de estar só, de
temor de um ser que somente pode viver com outros. O medo propriamente dito não
pode ser vencido pela razão, mas exclusivamente pela presença de um ente
amoroso.
Mas, cumpre levar mais longe ainda a nossa
pergunta: Na hipótese de existir uma solidão onde palavra alguma de outrem
consiga penetrar, transformando-a; na suposição de uma solidão tão profunda que
nenhum "tu" a alcance, estaríamos diante da solidão e do horror
total, daquilo a que o teólogo denomina "inferno". Desta perspectiva
é possível definir exactamente o inferno: ele denota uma solidão onde a palavra
do amor não tem mais lugar, conotando com isto a fragilidade essencial da
existência. Neste contexto, a quem não acorreria a opinião de poetas e
filósofos hodiernos, segundo a qual todos os encontros entre homens se
conservam na superfície, não estando aberta a homem nenhum a entrada ao âmago
do outro? Portanto, ninguém pode realmente alcançar o íntimo do outro; qualquer
encontro, por lindo que seja, serve apenas para narcotizar a incurável ferida
da solidão. Deste modo, no mais fundo do nosso ser, habitaria o inferno, o
desespero – a solidão tão inevitável quão terrível. Sartre, como se sabe,
construiu a sua antropologia a partir desta ideia. Mas também um poeta tão
conciliador e otimista como Hermann Hesse deixa transparecer, em última
análise, os mesmos pensamentos:
"Estranho, andar na névoa!
Viver é solidão;
Ninguém conhece ninguém,
O só está só..."
De facto, uma coisa é certa: existe uma noite, em
cujo ermo voz alguma ecoa; há uma porta pela qual só podemos passar sozinhos: a
porta da morte. Todo o medo do mundo finalmente nada mais é do que medo diante
desta solidão. Daqui compreende-se porque o Antigo Testamento conhece uma palavra
apenas para conotar inferno e morte, a palavra scheol: porque
ambas as coisas são idênticas para o Antigo Testamento. A morte é a solidão
simplesmente. Mas, a solidão à qual não pode chegar o amor é o inferno.
Voltamos assim ao nosso ponto de partida, ao artigo
da descida aos infernos. Ele declara que Cristo atravessou as portas da nossa
solidão derradeira; que na sua paixão desceu ao abismo do nosso abandono. Onde
voz alguma está em condições de alcançar-nos, ali ele se encontra. Com isto o
inferno foi vencido, ou mais exactamente: a morte, que antes era o inferno, não
o é mais. Ambas as coisas não são mais o mesmo, porque no seu centro está a
vida, porque no seu meio habita o amor. Só o excluir, o fechar-se voluntário é
inferno, ou, no dizer da Bíblia, é morte segunda (por exemplo Ap 20,14).
Mas a morte não mais é um caminho para o seio desta solidão, as portas do scheol
estão abertas. Creio que, neste enfoque, poderão ser bem compreendidas as
metáforas patrísticas de sabor tão mitológico, que falam da libertação dos
mortos, da abertura das portas. Também tornar-se-á compreensível o texto de
Mateus, de aparência tão mítica, sobre os túmulos que se abriram e os corpos
dos santos que ressurgiram por ocasião da morte de Jesus (Mt 27,52). As
portas da morte estão abertas, desde que na morte reside a vida: reside o amor.
joseph ratzinger, Tübingen, verão de 1967.
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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