Páscoa
Evangelho:
Jo 6, 60-69
60 Muitos dos Seus discípulos ouvindo
isto, disseram: «Dura é esta linguagem! Quem a pode ouvir?». 61 Jesus,
conhecendo em Si mesmo que os Seus discípulos murmuravam por isto, disse-lhes:
«Isto escandaliza-vos? 62 Que será quando virdes subir o Filho do Homem para
onde estava antes? 63 É o Espírito que vivifica; a carne para nada aproveita.
As palavras que Eu vos disse são espírito e vida. 64 Mas há alguns de vós que
não creem». Com efeito Jesus sabia desde o princípio quais eram os que não
acreditavam, e quem havia de O entregar. 65 Depois acrescentou: «Por isso Eu
vos disse que ninguém pode vir a Mim se não lhe for concedido por Meu Pai». 66
Desde então muitos dos Seus discípulos retiraram-se e já não andavam com Ele.
67 Por isso Jesus disse aos doze: «Também vós quereis retirar-vos?». 68 Simão
Pedro respondeu-Lhe: «Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de
vida eterna. 69 E nós acreditamos e sabemos que Tu és o Santo de Deus».
Comentário:
A declaração
de São Pedro é a que todos os homens gostaríamos fazer, deveríamos fazer!
Não há outro caminho para a salvação, não existe outro meio para atingir o Reino de Deus.
Esta é a verdade mais intrínseca da nossa fé.
(ama, comentário sobre Jo 6,
60-69 2015.08.23)
Leitura espiritual
SANTO
AGOSTINHO – CONFISSÕES
LIVRO
DÉCIMO
CAPÍTULO
XXXV
A
curiosidade
Às anteriores
acrescente-se outra tentação, que oferece maiores perigos. Além da concupiscência
da carne, que consiste no deleite voluptuoso de todos os sentidos, e cuja
servidão dana os que ela afasta de ti, insinua-se na alma um outro desejo, que
se exerce pelos mesmos sentidos corporais, mas tende menos a uma satisfação carnal
do que a tudo conhecer por meio da carne.
É a vã curiosidade, que se
disfarça sob o nome de conhecimento e de ciência. Como nasce do apetite de tudo
conhecer, e como entre os sentidos os olhos são os mais aptos para o conhecimento,
a Sagrada Escritura chamou-a de concupiscência dos olhos.
De facto, ver é função
própria dos olhos; mas muitas vezes nós usamos essa expressão mesmo quando se
trata de outros sentidos, aplicados ao conhecimento. Nós não dizemos: “Ouve como
isto brilha” – nem: “Sente como isso resplandece” – nem: “Apalpa como isto cintila”.
– Para exprimir tudo isso dizemos “ver ou olhar”. E até não nos limitamos a
dizer: “Olha que luz!”, pois apenas os olhos nos podem dar esta sensação – mas,
dizemos ainda: “Olha que som! Olha que cheiro! Olha que gosto! Olha como é
duro!” Por isso toda experiência que é obra dos sentidos é chamada, como disse,
concupiscência dos olhos. Essa função da visão, que pertence aos olhos, é usurpada
metaforicamente pelos outros sentidos, quando buscam conhecer alguma coisa.
Daqui podemos distinguir
claramente o papel da volúpia e o da curiosidade na acção dos sentidos. O
prazer procura o que é belo, melodioso, suave, saboroso, agradável ao todo; a curiosidade
por sua vez deseja o contrário, não para se expor ao sofrimento, mas pela
paixão de conhecer por meio da experiência. Que prazer se pode ter na visão de
um cadáver dilacerado, que causa horror? E todavia onde há um cadáver, para lá
corre toda a gente para se entristecer e empalidecer. E temem depois revê-lo em
sonhos, como se alguém os tivesse obrigado a contemplá-lo, ou como se a fama de
alguma beleza os tivesse atraído. O mesmo acontece com os outros sentidos, o
que seria enfadonho enumerar.
É esse quê de curiosidade
mórbida que faz com que se exibam monstruosidades nos espectáculos. É ela que
nos induz a perscrutar os segredos da natureza exterior, cujo conhecimento de
nada serve, mas que os homens buscam conhecer apenas pelo prazer de conhecer. É
ela também que inspira o homem a pesquisar, com fim semelhante, a ciência perversa,
que é a arte da magia.
E é ela, enfim, que, até
na religião, nos induz a tentar a Deus, pedindo-lhe sinais e prodígios, não
para a salvação da alma, mas apenas pela ânsia de vê-los.
Nessa imensa floresta,
cheia de insídias e perigos, cortei e lancei para fora do meu coração muitos
males, graças à força que me concedeste para tanto, Deus da minha salvação.
Contudo, no turbilhão
diário de tantas e tão variadas tentações que atormentam a minha vida, quando
ousarei dizer que nenhuma delas atrai mais a minha atenção e não cativa a minha
vã curiosidade? Certamente que o teatro já não me atrai, nem me importo mais em
conhecer o curso dos astros; jamais, para obter uma resposta, consultei as
sombras, pois detesto todos os ritos sacrílegos.
Mas quantos artifícios
inventa o inimigo para me tentar a que te peça algum milagre, a ti, Senhor, meu
Deus, a quem devo servir humilde e simplesmente! Eu te suplico, por nosso Rei,
pela nossa pátria, a pura e casta Jerusalém, que o perigo de consentir nessas
coisas, que até agora esteve longe de mim, se afaste cada vez mais! Mas quando
te peço a salvação de uma alma, a finalidade do meu intento é bem diferente:
ouve-me pois, e concede-me a graça de seguir de bom grado a tua vontade.
Mas incontáveis são as
pequenas e desprezíveis bagatelas que tentam cada dia nossa curiosidade! E quem
poderá contar as nossas quedas? Quantas vezes ouvimos contar banalidades!
Toleramo-las, de início,
para não magoar os fracos, e depois, aos poucos, ouvimo-las com atenção sempre
crescente!
Não vou mais ao circo,
para ver um cão correr atrás de uma lebre; mas, passando casualmente pelo campo
e vendo algo assim, eis-me interessado pela caçada, talvez até distraindo-me de
algum pensamento profundo. E, se não chega a fazer-me mudar o caminho do meu
cavalo, desvio o curso do meu coração. Se após tal demonstração da minha
fraqueza tu não me alertares para que abandone esse espectáculo, elevando-me a
ti por meio de alguma reflexão, ou desprezando tudo e passando adiante, ficaria
ali, absorvido como um tonto.
E que dizer quando,
sentado na minha casa, observando uma lagartixa à caça de moscas, ou uma aranha
que as enreda na sua teia? Acaso, por serem animais pequenos, a curiosidade que
despertam em mim não é a mesma? É verdade que depois passo a louvar-te; Criador
admirável, ordenador do universo, mas não foi esse o pensamento que primeiro me
moveu. Uma coisa é levantar-se depressa, e outra é não cair.
Dessas quedas está repleta
minha vida, e minha única esperança está na tua infinita misericórdia. O nosso
coração é o receptáculo de tais misérias, e traz em si grande quantidade de vaidades,
que muitas vezes até interrompem e perturbam as nossas orações; e enquanto na
tua presença levantamos a voz da nossa alma até aos teus ouvidos, tais
pensamentos fúteis, vindos não sei de onde, vêm perturbar um acto tão importante.
CAPÍTULO
XXXVI
O
orgulho
Terei também essa miséria
como desprezível? Haverá algo que possa restituir-me a esperança, a não ser a
tua conhecida misericórdia, que começou a transformar-me? Sabes o quanto já me
transformaste; curaste-me primeiro da paixão da vingança, para perdoar-me também
todos os meus pecados, curar as minhas fraquezas, resgatar a minha vida da
corrupção, conservar-me na piedade e misericórdia, e saciar dos teus bens o meu
desejo. Derrubaste o meu orgulho pelo temor, dobrando a minha cerviz ao teu
jugo. Agora eu trago o teu jugo, e sinto-o suave, como prometeste e cumpriste.
Na verdade, o teu jugo já era suave, mas eu não o sabia quando receava tomá-lo
sobre mim.
Mas, Senhor, tu és o único
que sabe mandar sem orgulho, porque és o único Senhor verdadeiro, que não tem
senhor! Diz-me, terá cessado em mim, se isso pode acontecer nesta vida, esta
terceira espécie de tentação, que consiste em querer ser temido e amado pelos homens,
com o único fim de obter uma alegria que não é alegria? Que vida miserável, que
arrogância indigna! Aí está o principal motivo porque não te amamos e tememos
piamente. Por isso resistes aos soberbos, enquanto dás a tua graça aos
humildes. Trovejas contra as ambições do mundo, e fazes abalar as montanhas até
às suas raízes.
Ora, como é necessário,
para se adequar à sociedade, fazer-se amar e temer pelos homens, o inimigo da
nossa verdadeira felicidade alicia-nos, e por toda parte semeia os seus laços gritando:
“Bravo! Muito bem!” – para que, ávidos, recolhamos as lisonjas e nos deixemos incautamente
enredar. O seu intento é que deixemos de encontrar a nossa alegria na verdade,
para buscá-la na mentira dos homens; estimula em nós o prazer em nos fazer
temer e amar, não pelo teu amor, mas no teu lugar. Com isso nos tornamos
semelhantes a ele, não unidos na caridade, mas partilhando das suas penas. Ele
quis fixar sua morada no aquilão
(vento gelado do norte), para que nós, nas trevas e no frio, servíssemos o
perverso e sinuoso imitador do teu poder.
Nós, Senhor, somos o teu
pequeno rebanho: sê o nosso dono. Estende as tuas asas, para nosso refúgio. Sê a
nossa glória; que nos amem por tua causa, e que a tua palavra seja observada
por nós.
Quem busca o louvor dos
homens, quando tu o reprovas, não será por estes defendido quando o julgares,
nem se poderá subtrair à tua condenação. Mas quando não se louvam os pecados
pelos desejos da sua alma, nem se abençoa quem pratica iniquidades, mas te
louva um homem pelos dons que lhe concedeste, se ele se compraz mais no louvor
do que no dom que lhe atrai os louvores, tu o reprovas, a despeito dos louvores
que recebe dos homens. E quem o louva é melhor do que é louvado, porque um se
agradou com o dom de Deus, e o outro alegrou-se com o dom do homem.
(Revisão
de versão portuguesa por ama)
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