05/03/2016

Evangelho, comentário, L. espiritual


Quaresma
Semana III

Evangelho: Lc 18, 9-14

9 Disse também esta parábola a uns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos, e desprezavam os outros: 10 «Subiram dois homens ao templo a fazer oração: um era fariseu e o outro publicano. 11 O fariseu, de pé, orava no seu interior desta forma: Graças Te dou, ó Deus, porque não sou como os outros homens: ladrões, injustos, adúlteros, nem como este publicano. 12 Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de tudo o que possuo. 13 O publicano, porém, conservando-se a distância, não ousava nem sequer levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Meu Deus, tem piedade de mim, pecador. 14 Digo-vos que este voltou justificado para sua casa e o outro não; porque quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado».

Comentário:

Parece haver pessoas que por um motivo qualquer - que não de saúde ou impossibilidade física - acham que não devem ajoelhar-se perante o Sacrário onde está presente Nosso Senhor e até durante a Santa Missa durante os momentos mais destacados como a Consagração permanecem de pé.

Estas mesmas pessoas curvam-se e fazem vénia aos “grandes” deste mundo, aos personagens que, no seu entender, ocupam lugares ou posições na escala social que merecem essa demonstração de respeito.

É, no mínimo, estranho…

(ama, comentário sobre Lc 18, 9-14, 2015.03.15)


Leitura espiritual



SANTO AGOSTINHO - CONFISSÕES

LIVRO SEGUNDO

CAPÍTULO III

Cegueira do pai, cuidados da mãe

Nesse mesmo ano tive de interromper meus estudos, quando voltei de Madaura, cidade vizinha, onde fora estudar literatura e oratória, enquanto se faziam os preparativos necessários para minha viagem mais longa a Cartago, levado mais pela ambição de meu pai que pelos seus parcos bens, pois, era mui modesto cidadão de Tagaste.

Mas, a quem conto eu estes factos? Certamente, não a ti, meu Deus, mas em tua presença conto estas coisas aos da minha estirpe, ao gênero humano, ainda que estas páginas chegassem às mãos de poucos. E para que então? Para que eu, e quem me ler, pensemos na profundeza do abismo de onde temos de clamar por ti? E que há de mais próximo a teus ouvidos que o coração contrito e a vida que procede da fé?

Quem então não cumulava a meu pai de louvores, pois excedendo até seus deveres familiares, gastava com o filho o necessário para tão longa viagem por causa de seus estudos?

Porquê, muitos cidadãos, muito mais ricos do que ele, não mostravam para com os filhos igual cuidado?

Contudo, este mesmo pai não se importava de saber se eu crescia para ti, ou que fosse casto, contanto que fosse deserto; mas antes eu era deserto, por carecer de teu cultivo, ó Deus, único, verdadeiro e bom senhor de teu campo, o meu coração.

Porém, no meu décimo-sexto ano foi necessária uma interrupção nos meus estudos por falta de recursos familiares e, livre da escola, passei a viver com meus pais. Avassalaram então a minha cabeça os espinhos das minhas paixões, sem que houvesse mãos que os arrancassem.

Pelo contrário, meu pai, certo dia, percebendo no banho sinais da minha puberdade e vendo-me revestido de inquieta adolescência, como se já se alegrasse pensando nos netos, foi contá-lo alegre à minha mãe. Alegria esta gerada pela embriaguez com que este mundo esquece de ti, seu criador, e no teu lugar ama a tua criatura; embriaguez que nasce do vinho subtil da sua perversa e mal inclinada vontade para as coisas baixas.

Mas, nessa época, já tinhas começado a levantar, no coração da minha mãe, o teu templo e os alicerces da tua santa morada; meu pai não era mais que catecúmeno, recente ainda. Por isso a minha mãe perturbou-se com santo temor. Embora eu ainda não fosse baptizado, temia que eu seguisse as sendas tortuosas por onde andam os que te voltam as costas, e não o rosto.

Ai de mim! Como me atrevo a dizer que te calavas quando me afastava de ti? Seria verdade que então te calavas comigo? E de quem eram, senão tuas, aquelas palavras que pela boca de minha mãe, tua serva fiel, sussurraste em meus ouvidos, embora nenhuma delas penetrasse no meu coração, para que a cumprisse?

Lembro bem que um dia me admoestou em segredo, com grande solicitude, que me abstivesse da luxúria e, sobretudo, que não cometesse adultério com a mulher de ninguém.

Porém, esses conselhos pareciam-me próprios de mulheres, e eu envergonhar-me-ia segui-los.

Mas, na realidade, eram teus, embora eu não o soubesse, e por isso julgava que te calavas, e que era ela quem me falava; e eu desprezava-te na tua serva, eu, seu filho, filho de tua serva e servo teu, a ti que não cessavas de me falar pela sua boca.

Mas eu não o sabia, e precipitava-me com tanta cegueira, que me envergonhava entre os companheiros de minha idade, de ser menos torpe do que eles. Ouvia-os jactar-se das suas maldades, e gloriar-se tanto mais quanto mais infames eram; assim eu gostava de fazer o mal, não só pelo prazer, mas ainda por vaidade. O que há de mais digno de vitupério do que o vicio? E, contudo, para não ser escarnecido, tornava-me mais viciado e, quando não houvesse cometido pecado que me igualasse aos mais perdidos, fingia ter feito o que não cometera, para que não parecesse mais abjecto quanto mais inocente, e tanto mais vil quanto mais casto.

Eis com que companheiros eu andava pelas graças de Babilónia, revolvendo-me na lama, como em cinamomo e unguentos preciosos. E, para que todo esse lodo me agarrasse bem firme, subjugava-me o inimigo invisível, e seduzia-me, por ser eu presa fácil da sedução.

Nem então minha mãe carnal, que já fugira do meio da Babilónia, mas que em outras coisas caminhava mais devagar, cuidou – como fizera ao aconselhar-me a castidade – de conter com os laços do matrimónio aquilo de que seu marido lhe falara a meu respeito. Já percebera que me era pestilencial, e que mais adiante me seria perigoso – já que essa paixão não podia ser cortada pela raiz. Não pensou nisso, digo, por temer que o vínculo matrimonial frustrasse a esperança que sobre mim acalentava; não a esperança da vida futura, que ela já tinha posto em ti, mas a esperança das letras que ambos, meu pai e minha mãe, desejavam ardentemente; meu pai, porque não pensava quase nada de ti, mas apenas ambições vãs a meu respeito; minha mãe, porque considerava que tais tradicionais estudos das letras não só não me seriam de estorvo, sendo de não pouca ajuda para chegar a ti. Assim julgo eu, agora, enquanto me é possível pela lembrança, o carácter de meus pais.

Por isso, soltavam-me as rédeas para o jogo mais do que o permite uma moderada severidade, deixando-me cair na dissolução de várias paixões; e de todas surgia uma obscuridade que me toldava, ó meu Deus, a luz da tua verdade; e, por assim dizer, do meu corpo, brotava minha iniquidade.

CAPÍTULO IV

O furto das peras

É certo, Senhor, que a tua lei pune o furto, lei tão arraigada no coração dos homens que nem a própria iniquidade pode apagar. Que ladrão há que suporte com paciência que o roubem? Nem o rico tolera isto a quem o faz forçado pela indigência. Também eu quis roubar, e roubei não forçado pela necessidade, mas por penúria, fastio de justiça e abundância de maldade, pois roubei o que tinha em abundância, e muito melhor. Nem me atraía ao furto o gozo do seu resultado, mas atraía-me o furto em si, o pecado.

Nas imediações da nossa vinha, havia uma pereira carregada de frutos, que nem pelo aspecto, nem pelo sabor tinham algo de tentador. Alta noite – pois até então ficaríamos jogando nas eiras, de acordo com nosso mau costume – dirigimo-nos ao local, eu e alguns jovens malvados, com o fim de sacudi-la e colher-lhe os frutos. E levamos grande quantidade deles, não para saboreá-los, mas para jogá-los aos porcos, embora comêssemos alguns; o nosso deleite era fazer o que nos agradava justamente pelo facto de ser coisa proibida.

Aí está o meu coração, Senhor, o meu coração que olhaste com misericórdia quando se encontrava na profundeza do abismo. Que este meu coração te diga agora que era o que ali procurava, para fazer o mal gratuitamente, não tendo a minha maldade outra razão que a própria maldade. Era hedionda, e eu amei-a; amei a minha morte, amei o meu pecado; não o objecto que me fazia cair, mas a minha própria queda. Ó torpe alma minha, que saltando para fora do santo apoio, te lançavas na morte, não buscando na ignomínia senão a própria ignomínia?

CAPÍTULO V

A causa do pecado

Todos os corpos formosos, o ouro, a prata, e todos os demais têm, com efeito, o seu aspecto atraente. No contacto carnal intervém grandemente a congruência das partes, e cada um dos sentidos percebe nos corpos certa modalidade própria. Também a honra temporal e o poder de mandar e dominar têm seu atractivo, de onde nasce o desejo de vingança.

Todavia, para obtermos estas coisas, não é necessário abandonarmos a ti, nem nos desviar da tua lei. Também a vida que aqui vivemos tem os seus encantos, por certa beleza que lhe é própria, e pela harmonia que tem com as demais belezas terrenas. Cara é, finalmente, a amizade dos homens pela união que une muitas almas com o doce laço do amor.

Por todos estes motivos, e outros semelhantes, pecamos quando, por propensão imoderada para os bens ínfimos, são abandonados os melhores e mais altos, como tu, Senhor, nosso Deus, a tua verdade e a tua lei.

É verdade que também esses bens ínfimos têm seus deleites, porém, não como os de Deus, criador de todas as coisas, porque nele se deleita o justo, e nele acham suas delicias os rectos de coração.

Portanto, quando indagamos a causa de um crime, não descansamos até averiguar qual o apetite dos bens chamados ínfimos, ou que temor de perdê-los foi capaz de provocá-lo. Sem dúvida são belos e atraentes, embora, comparados com os bens superiores e beatíficos, sejam abjectos e desprezíveis. Alguém comete um homicídio. Por quê? Porque desejou a esposa do morto, ou suas terras, ou porque quis roubar alguma coisa, ou então, ferido, ardeu em desejos de vingança. Por acaso cometeria o crime sem motivo, apenas pelo gosto de matar? Quem pode acreditar em semelhante coisa?

Mesmo de Catilina, homem sem entranhas e muito cruel, de quem se disse que era mau e cruel sem razão, acrescenta o historiador um motivo: “Para que a ociosidade não embotasse as suas mãos e sentimento”.

Todavia, se indagares porque agia assim, dir-te-ei que mediante o exercício de crimes, depois de tomada a cidade, conseguisse honras, poderes e riquezas, libertando-se do medo das leis e das dificuldades da vida, causados pela pobreza de seu património e a consciência dos seus crimes. Logo, nem o próprio Catilina amava os seus crimes, mas aquilo por cujo motivo os cometia.

(cont)

(Revisão de versão portuguesa por ama)


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