Quaresma
Semana III
Evangelho:
Lc 18, 9-14
9 Disse também esta
parábola a uns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos, e
desprezavam os outros: 10 «Subiram dois homens ao templo a fazer
oração: um era fariseu e o outro publicano. 11 O fariseu, de pé,
orava no seu interior desta forma: Graças Te dou, ó Deus, porque não sou como
os outros homens: ladrões, injustos, adúlteros, nem como este publicano. 12
Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de tudo o que possuo. 13
O publicano, porém, conservando-se a distância, não ousava nem sequer levantar
os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Meu Deus, tem piedade de mim,
pecador. 14 Digo-vos que este voltou justificado para sua casa e o
outro não; porque quem se exalta será humilhado e quem se humilha será
exaltado».
Comentário:
Parece haver pessoas que
por um motivo qualquer - que não de saúde ou impossibilidade física - acham que
não devem ajoelhar-se perante o Sacrário onde está presente Nosso Senhor e até
durante a Santa Missa durante os momentos mais destacados como a Consagração
permanecem de pé.
Estas mesmas pessoas
curvam-se e fazem vénia aos “grandes” deste mundo, aos personagens que, no seu
entender, ocupam lugares ou posições na escala social que merecem essa
demonstração de respeito.
É, no mínimo, estranho…
(ama, comentário sobre Lc 18, 9-14, 2015.03.15)
Leitura espiritual
SANTO
AGOSTINHO - CONFISSÕES
LIVRO
SEGUNDO
CAPÍTULO
III
Cegueira
do pai, cuidados da mãe
Nesse mesmo ano tive de
interromper meus estudos, quando voltei de Madaura, cidade vizinha, onde fora
estudar literatura e oratória, enquanto se faziam os preparativos necessários para
minha viagem mais longa a Cartago, levado mais pela ambição de meu pai que
pelos seus parcos bens, pois, era mui modesto cidadão de Tagaste.
Mas, a quem conto eu estes
factos? Certamente, não a ti, meu Deus, mas em tua presença conto estas coisas
aos da minha estirpe, ao gênero humano, ainda que estas páginas chegassem às
mãos de poucos. E para que então? Para que eu, e quem me ler, pensemos na
profundeza do abismo de onde temos de clamar por ti? E que há de mais próximo a
teus ouvidos que o coração contrito e a vida que procede da fé?
Quem então não cumulava a
meu pai de louvores, pois excedendo até seus deveres familiares, gastava com o
filho o necessário para tão longa viagem por causa de seus estudos?
Porquê, muitos cidadãos,
muito mais ricos do que ele, não mostravam para com os filhos igual cuidado?
Contudo, este mesmo pai
não se importava de saber se eu crescia para ti, ou que fosse casto, contanto
que fosse deserto; mas antes eu era deserto, por carecer de teu cultivo, ó
Deus, único, verdadeiro e bom senhor de teu campo, o meu coração.
Porém, no meu décimo-sexto
ano foi necessária uma interrupção nos meus estudos por falta de recursos
familiares e, livre da escola, passei a viver com meus pais. Avassalaram então
a minha cabeça os espinhos das minhas paixões, sem que houvesse mãos que os
arrancassem.
Pelo contrário, meu pai,
certo dia, percebendo no banho sinais da minha puberdade e vendo-me revestido
de inquieta adolescência, como se já se alegrasse pensando nos netos, foi
contá-lo alegre à minha mãe. Alegria esta gerada pela embriaguez com que este
mundo esquece de ti, seu criador, e no teu lugar ama a tua criatura; embriaguez
que nasce do vinho subtil da sua perversa e mal inclinada vontade para as
coisas baixas.
Mas, nessa época, já
tinhas começado a levantar, no coração da minha mãe, o teu templo e os
alicerces da tua santa morada; meu pai não era mais que catecúmeno, recente
ainda. Por isso a minha mãe perturbou-se com santo temor. Embora eu ainda não
fosse baptizado, temia que eu seguisse as sendas tortuosas por onde andam os
que te voltam as costas, e não o rosto.
Ai de mim! Como me atrevo
a dizer que te calavas quando me afastava de ti? Seria verdade que então te
calavas comigo? E de quem eram, senão tuas, aquelas palavras que pela boca de
minha mãe, tua serva fiel, sussurraste em meus ouvidos, embora nenhuma delas penetrasse
no meu coração, para que a cumprisse?
Lembro bem que um dia me
admoestou em segredo, com grande solicitude, que me abstivesse da luxúria e,
sobretudo, que não cometesse adultério com a mulher de ninguém.
Porém, esses conselhos
pareciam-me próprios de mulheres, e eu envergonhar-me-ia segui-los.
Mas, na realidade, eram
teus, embora eu não o soubesse, e por isso julgava que te calavas, e que era
ela quem me falava; e eu desprezava-te na tua serva, eu, seu filho, filho de
tua serva e servo teu, a ti que não cessavas de me falar pela sua boca.
Mas eu não o sabia, e precipitava-me
com tanta cegueira, que me envergonhava entre os companheiros de minha idade,
de ser menos torpe do que eles. Ouvia-os jactar-se das suas maldades, e
gloriar-se tanto mais quanto mais infames eram; assim eu gostava de fazer o
mal, não só pelo prazer, mas ainda por vaidade. O que há de mais digno de
vitupério do que o vicio? E, contudo, para não ser escarnecido, tornava-me mais
viciado e, quando não houvesse cometido pecado que me igualasse aos mais
perdidos, fingia ter feito o que não cometera, para que não parecesse mais abjecto
quanto mais inocente, e tanto mais vil quanto mais casto.
Eis com que companheiros
eu andava pelas graças de Babilónia, revolvendo-me na lama, como em cinamomo e
unguentos preciosos. E, para que todo esse lodo me agarrasse bem firme, subjugava-me
o inimigo invisível, e seduzia-me, por ser eu presa fácil da sedução.
Nem então minha mãe
carnal, que já fugira do meio da Babilónia, mas que em outras coisas caminhava
mais devagar, cuidou – como fizera ao aconselhar-me a castidade – de conter com
os laços do matrimónio aquilo de que seu marido lhe falara a meu respeito. Já
percebera que me era pestilencial, e que mais adiante me seria perigoso – já
que essa paixão não podia ser cortada pela raiz. Não pensou nisso, digo, por
temer que o vínculo matrimonial frustrasse a esperança que sobre mim
acalentava; não a esperança da vida futura, que ela já tinha posto em ti, mas a
esperança das letras que ambos, meu pai e minha mãe, desejavam ardentemente;
meu pai, porque não pensava quase nada de ti, mas apenas ambições vãs a meu
respeito; minha mãe, porque considerava que tais tradicionais estudos das
letras não só não me seriam de estorvo, sendo de não pouca ajuda para chegar a
ti. Assim julgo eu, agora, enquanto me é possível pela lembrança, o carácter de
meus pais.
Por isso, soltavam-me as
rédeas para o jogo mais do que o permite uma moderada severidade, deixando-me
cair na dissolução de várias paixões; e de todas surgia uma obscuridade que me
toldava, ó meu Deus, a luz da tua verdade; e, por assim dizer, do meu corpo,
brotava minha iniquidade.
CAPÍTULO
IV
O
furto das peras
É certo, Senhor, que a tua
lei pune o furto, lei tão arraigada no coração dos homens que nem a própria
iniquidade pode apagar. Que ladrão há que suporte com paciência que o roubem?
Nem o rico tolera isto a quem o faz forçado pela indigência. Também eu quis
roubar, e roubei não forçado pela necessidade, mas por penúria, fastio de
justiça e abundância de maldade, pois roubei o que tinha em abundância, e muito
melhor. Nem me atraía ao furto o gozo do seu resultado, mas atraía-me o furto
em si, o pecado.
Nas imediações da nossa
vinha, havia uma pereira carregada de frutos, que nem pelo aspecto, nem pelo sabor
tinham algo de tentador. Alta noite – pois até então ficaríamos jogando nas
eiras, de acordo com nosso mau costume – dirigimo-nos ao local, eu e alguns
jovens malvados, com o fim de sacudi-la e colher-lhe os frutos. E levamos
grande quantidade deles, não para saboreá-los, mas para jogá-los aos porcos,
embora comêssemos alguns; o nosso deleite era fazer o que nos agradava
justamente pelo facto de ser coisa proibida.
Aí está o meu coração,
Senhor, o meu coração que olhaste com misericórdia quando se encontrava na
profundeza do abismo. Que este meu coração te diga agora que era o que ali
procurava, para fazer o mal gratuitamente, não tendo a minha maldade outra
razão que a própria maldade. Era hedionda, e eu amei-a; amei a minha morte,
amei o meu pecado; não o objecto que me fazia cair, mas a minha própria queda.
Ó torpe alma minha, que saltando para fora do santo apoio, te lançavas na
morte, não buscando na ignomínia senão a própria ignomínia?
CAPÍTULO
V
A
causa do pecado
Todos os corpos formosos,
o ouro, a prata, e todos os demais têm, com efeito, o seu aspecto atraente. No
contacto carnal intervém grandemente a congruência das partes, e cada um dos sentidos
percebe nos corpos certa modalidade própria. Também a honra temporal e o poder
de mandar e dominar têm seu atractivo, de onde nasce o desejo de vingança.
Todavia, para obtermos
estas coisas, não é necessário abandonarmos a ti, nem nos desviar da tua lei.
Também a vida que aqui vivemos tem os seus encantos, por certa beleza que lhe é
própria, e pela harmonia que tem com as demais belezas terrenas. Cara é,
finalmente, a amizade dos homens pela união que une muitas almas com o doce
laço do amor.
Por todos estes motivos, e
outros semelhantes, pecamos quando, por propensão imoderada para os bens
ínfimos, são abandonados os melhores e mais altos, como tu, Senhor, nosso Deus,
a tua verdade e a tua lei.
É verdade que também esses
bens ínfimos têm seus deleites, porém, não como os de Deus, criador de todas as
coisas, porque nele se deleita o justo, e nele acham suas delicias os rectos de
coração.
Portanto, quando indagamos
a causa de um crime, não descansamos até averiguar qual o apetite dos bens
chamados ínfimos, ou que temor de perdê-los foi capaz de provocá-lo. Sem dúvida
são belos e atraentes, embora, comparados com os bens superiores e beatíficos,
sejam abjectos e desprezíveis. Alguém comete um homicídio. Por quê? Porque
desejou a esposa do morto, ou suas terras, ou porque quis roubar alguma coisa,
ou então, ferido, ardeu em desejos de vingança. Por acaso cometeria o crime sem
motivo, apenas pelo gosto de matar? Quem pode acreditar em semelhante coisa?
Mesmo de Catilina, homem
sem entranhas e muito cruel, de quem se disse que era mau e cruel sem razão,
acrescenta o historiador um motivo: “Para que a ociosidade não embotasse as suas
mãos e sentimento”.
Todavia, se indagares
porque agia assim, dir-te-ei que mediante o exercício de crimes, depois de
tomada a cidade, conseguisse honras, poderes e riquezas, libertando-se do medo
das leis e das dificuldades da vida, causados pela pobreza de seu património e
a consciência dos seus crimes. Logo, nem o próprio Catilina amava os seus
crimes, mas aquilo por cujo motivo os cometia.
(cont)
(Revisão
de versão portuguesa por ama)
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