Quaresma
Semana Santa
Evangelho:
Lc 4, 16-21
16 Foi a Nazaré, onde Se tinha criado,
entrou na sinagoga, segundo o Seu costume, em dia de sábado, e levantou-Se para
fazer a leitura. 17 Foi-Lhe dado o livro do profeta Isaías. Quando
desenrolou o livro, encontrou o lugar onde estava escrito: 18 “O
Espírito do Senhor repousou sobre Mim; pelo que Me ungiu para anunciar a boa
nova aos pobres; Me enviou para anunciar a redenção aos cativos, e a
recuperação da vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, 19
a pregar um ano de graça da parte do Senhor”. 20 Tendo enrolado o
livro, deu-o ao encarregado, e sentou-Se. Os olhos de todos os que se
encontravam na sinagoga estavam fixos n'Ele. 21 Começou a
dizer-lhes: «Hoje cumpriu-se este passo da Escritura que acabais de ouvir».
Comentário:
Nos “trabalhos” de apostolado deparamo-nos muitas
vezes com o sentimento de vergonha ou, antes, hesitação perante um falso dilema
que se nos coloca: Conhecem-me, sabem quem sou… levar-me-ão a sério?
Não estranharão que fale e me apresente como uma
espécie de “pregador”, eu… que sou uma
pessoa normal e corrente?
Como dizia é um falso dilema por duas razões
principais:
A primeira reside no facto de que o que dizemos não
é da nossa “lavra” mas sim sobre a Doutrina da Igreja;
A segunda porque se de facto nos conhecem sabem
muito bem o que fazemos e a forma como tentamos proceder e estranharão – isso
sim – que não lhes falemos do que para nós é principal e importante.
Mas, evidentemente, o que importa é que o que
dissermos esteja de acordo com o que fazemos e praticamos.
Só assim mereceremos credibilidade.
(ama,
comentário sobre Lc 4, 16-30, 2015.08.31)
Leitura espiritual
SANTO
AGOSTINHO - CONFISSÕES
CAPÍTULO
VII
Ainda
a origem do mal
Deste modo, ó meu auxílio,
já me tinhas libertado daqueles grilhões. Contudo eu buscava ainda a origem do
mal, e não encontrava solução. Mas não permitias que as vagas do meu pensamento
me apartassem da fé. Fé na tua existência, na tua substância imutável, na tua providência
para os homens, e na tua justiça que os julgará. Já acreditava que traçaste o
caminho da salvação dos homens, rumo à vida que sobrevém depois da morte, em
Cristo, teu Filho e Senhor nosso, e nas Sagradas Escrituras, recomendadas pela
autoridade da tua Igreja Católica.
Salvas e fortemente
arraigadas estas verdades em meu espírito, buscava eu ansiosamente a origem do
mal. E que tormentos, como que de parto, eram aqueles do meu coração! Que gemidos,
meu Deus! E ali estavam os teus ouvidos atentos, e eu não o sabia. Quando, em
silêncio, me esforçava em pacientes buscas, altos clamores se elevavam até à tua
misericórdia: eram as silenciosas angústias da minha alma.
Só Tu sabes o que eu
padecia, mas homem algum o sabia. De facto, quão pouco era o que minha palavra
transmitia aos meus amigos mais íntimos! Chegava-lhes, porventura, o tumulto da
minha alma, que nem o tempo, nem as palavras bastavam para declarar? Contudo,
chegavam aos teus ouvidos as queixas que no meu coração rugiam, e meu desejo
estava diante de ti, mas a luz dos meus olhos não estava contigo, porque ela
estava dentro, e eu olhava para fora. Não ocupava espaço algum, e eu só pensava
nas coisas que ocupam lugar, e não achava nelas lugar de descanso, nem me
acolhiam de modo que pudesse dizer: “Basta, Aqui estou bem!” – Nem me permitiam
que eu fosse para onde me sentisse satisfeito. Eu era superior a estas coisas,
mas sempre inferior a ti. Serias a minha verdadeira alegria se eu te fosse
submisso, pois sujeitasse a mim tudo o que criaste inferior a mim. Tal seria o
justo equilíbrio e a região central da minha salvação: permanecer como imagem
tua, e servindo-te, ser o senhor do meu corpo. Mas, como me levantei
soberbamente contra ti, investindo contra o meu Senhor coberto com o escudo da minha
dura cerviz, até mesmo as criaturas inferiores se fizeram superiores a mim, e
me oprimiam, e não me davam um momento de alívio e de descanso.
Quando as olhava, elas vinham-me
ao encontro atabalhoadamente de todos os lados; mas quando nelas me
concentrava, tais imagens corporais barravam-me para que me retirasse, como se
me dissessem: “Para onde vais, indigno e impuro?” E estas recobravam forças com
a minha chaga, porque humilhaste o soberbo como a um homem ferido. A minha
presunção separava-me de ti, e o meu rosto de tão inchado, fechava os meus
olhos.
CAPÍTULO
VIII
A
piedade de Deus
Mas tu, Senhor, permaneces
eternamente, e não te iras eternamente contra nós, porque te compadeceste da
terra e do pó, e foi do teu agrado corrigir as minhas deformidades. Tu aguilhoavas-me
com estímulos interiores para que estivesse impaciente, até que por uma visão interior,
te tornasses para mim uma certeza. O inchaço do meu orgulho baixava graças à
mão secreta da tua medicina; a vista da minha alma, perturbada e obscurecida,
ia sarando dia a dia graças ao colírio das dores salutares.
CAPÍTULO
IX
Agostinho
e o neoplatonismo
Primeiramente, querendo tu
mostrar-me como resistes aos soberbos e dás a tua graça aos humildes, e com
quanta misericórdia ensinaste aos homens o caminho da humildade, por se ter feito
carne o teu Verbo, e ter habitado entre os homens, me fizeste chegar às mãos
por meio de um homem inchado de monstruoso orgulho, alguns livros dos platónicos,
traduzidos do grego para o latim.
Neles eu li – não com
estas palavras, mas substancialmente o mesmo e expresso com muitos e diversos
argumentos – que “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo
era Deus. Este estava desde o princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas
por ele, e sem ele nada foi feito do que foi feito. O que foi feito é vida
nele, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, mas as trevas
não a compreenderam. Diziam também que a alma do homem, embora dê testemunho da
luz, não é a luz, mas o Verbo, Deus, é a verdadeira luz, que ilumina a todo o homem
que vem a este mundo. E que neste mundo estava, e que o mundo é criatura sua, e
que o mundo não o conheceu.
E que ele veio para a sua
morada, e que os seus não o receberam, e que a quantos o receberam deu o poder
de se fazerem filhos de Deus, desde que acreditem no seu nome, isto não o li
nesses livros.
Também li neles que o
Verbo, Deus, não nasceu da carne nem do sangue, nem da vontade do varão, mas de
Deus. Mas que o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, isso não o li naqueles
livros.
Igualmente achei nesses
livros, dito de diversos e múltiplos modos, que o Filho, consubstancial ao Pai,
não considerou usurpação ser igual a Deus, porque o é por natureza. Não dizem
porém que se aniquilou a si mesmo, tomando a forma de escravo, que se fez semelhante
aos homens, sendo julgado homem por seu exterior; e que se humilhou, fazendo-se
obediente até a morte, e morte de cruz, pelo que Deus o ressuscitou entre os mortos,
e lhe deu um nome acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobrem todos
os joelhos no céu, na terra e no inferno, e toda língua confesse que o Senhor
Jesus está na glória de Deus Pai.
Neles se diz também que
antes e sobre todos os tempos, o teu Filho único permanece imutável, eterno
consigo, e que da sua plenitude recebem as almas para sua bem-aventurança e que,
para serem sábias, são renovadas participando da sabedoria que permanece em si
mesma.
Mas não se encontra
escrito ali que morreu, no tempo marcado, pelos ímpios, e que não perdoaste ao
teu Filho único, mas que o entregaste por todos nós. Porque escondeste estas
coisas aos sábios e as revelastes aos humildes, a fim de que os atribulados e
sobrecarregados viessem a ele, para que os reconfortasse, porque ele é manso e
humilde de coração. Dirige os pequenos na justiça e ensina aos mansos o seu
caminho, vendo na nossa humildade e no nosso trabalho, e perdoando todos os
nossos pecados.
Mas aqueles que,
erguendo-se sobre uma doutrina, digamos, mais sublime, não ouvem ao que lhes
diz: Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, e encontrareis
descanso para vossas almas. E ainda que conheçam a Deus, não o glorificam como
Deus, nem lhe dão graças, mas se desvanecem nos seus pensamentos, e o seu coração
insensato obscurece-se; e dizendo que são sábios, tornam-se estultos.
E por isso lia também
nesses livros que a glória da tua natureza incorruptível tinha sido transformada
em ídolos e simulacros de todo tipo, à semelhança da imagem do homem corruptível,
das aves, dos quadrúpedes e serpentes. Isto é, naquele alimento do Egipto pelo
qual Esaú perdeu a sua primogenitura. Israel, teu povo primogénito, voltando o
coração para o Egipto, honrou em teu lugar a cabeça de um quadrúpede, curvando a
tua imagem, isto é, a própria alma, diante da imagem de um bezerro comendo
feno.
É o que encontrei nesses
livros, mas delas não me alimentei, porque agradou-te, Senhor, tirar de Jacob o
opróbrio da sua inferioridade, para que o maior servisse ao menor, chamando os gentios
para a tua herança.
Também eu vinha dentre os
gentios para ti, e interessei-me pelo ouro que, por tua vontade, o teu povo
trouxera do Egipto, pois era teu onde quer que estivesse. E disseste aos
atenienses, pela boca do teu Apóstolo, que em ti vivemos, nos movemos e temos
nosso ser, como alguns deles o disseram, e é deles que vinham os livros que me
ocupavam. Mas não me fixei nos ídolos dos egípcios, aos quais sacrificavam, com
o teu ouro, os que mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo
antes à criatura do que ao Criador.
(Revisão
de versão portuguesa por ama)
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