20/03/2016

Evangelho, comentário, L. espiritual


Quaresma

Domingo de Ramos

Evangelho: Lc 23, 1-49

1 Aproximava-se a festa dos Ázimos, chamada Páscoa.2 Os príncipes dos sacerdotes e os escribas procuravam modo de matar Jesus; porém, temiam o povo.3 Ora Satanás entrou em Judas, que tinha por sobrenome Iscariotes, um dos doze,4 o qual foi combinar com os príncipes dos sacerdotes e com os oficiais de que modo lh'O entregaria.5 Ficaram contentes e combinaram com ele dar-lhe dinheiro.6 Judas deu a sua palavra e buscava ocasião oportuna de lh'O entregar sem que a multidão soubesse. 7 Chegou o dia dos Ázimos, no qual se devia imolar a Páscoa.8 Jesus enviou Pedro e João, dizendo: «Ide, preparai-nos a refeição pascal».9 Eles perguntaram: «Onde queres que a preparemos?».10 Ele disse-lhes: «Logo que entrardes na cidade, sair-vos-á ao encontro um homem levando uma bilha de água; segui-o até à casa em que entrar,11 e direis ao dono da casa: O Mestre manda dizer-te: Onde está a sala em que hei-de comer a Páscoa com os Meus discípulos? 12 Ele vos mostrará uma grande sala mobilada no andar de cima; preparai aí o que for preciso».13 Indo eles, encontraram tudo como Jesus dissera; e prepararam a Páscoa. 14 Chegada a hora, pôs-se Jesus à mesa com os Apóstolos e 15 disse-lhes: «Desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de sofrer, 16 porque vos digo que não mais a comerei até que ela se cumpra no reino de Deus».17 Tendo tomado o cálice, deu graças, e disse: «Tomai e distribuí-o entre vós,18 porque vos declaro que não tornarei a beber do fruto da vide até que chegue o reino de Deus».19 Depois tomou um pão, deu graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: «Isto é o Meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de Mim».20 Depois da ceia fez o mesmo com o cálice, dizendo: «Este cálice é a nova Aliança no Meu sangue, que é derramado por vós». 21 «Entretanto, eis que a mão de quem Me há-de entregar está à mesa comigo.22 Em verdade, o Filho do Homem vai, segundo o que está decretado, mas, ai daquele homem por quem será entregue!».23 Eles começaram a perguntar entre si qual deles seria o que haveria de fazer tal coisa. 24 Levantou-se também entre eles uma discussão sobre qual deles se devia considerar o maior.25 Jesus, porém, disse-lhes: «Os reis das nações dominam sobre elas, e os que têm autoridade sobre elas chamam-se benfeitores.26 Não seja assim entre vós, mas o que entre vós é o maior faça-se como o mais pequeno, e o que governa seja como o que serve.27 Porque, qual é maior, o que está à mesa, ou o que serve? Não é maior o que está sentado à mesa? Pois Eu estou no meio de vós como um que serve .28 Vós sois os que tendes permanecido comigo nas Minhas tribulações. 29 Por isso Eu preparo o reino para vós, como Meu Pai o preparou para Mim, 30 para que comais e bebais à Minha mesa, no Meu reino, e vos senteis sobre tronos a julgar as doze tribos de Israel. 31 «Simão, Simão eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como o trigo;32 mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos». 33 Pedro disse-Lhe: «Senhor, eu estou pronto a ir contigo para a prisão e para a morte». 34 Jesus, porém, disse-lhe: «Digo-te, Pedro, que não cantará hoje o galo, sem que tu, por três vezes, tenhas negado que Me conheces». Depois disse-lhes: 35 «Quando Eu vos mandei sem bolsa, nem alforge, nem sandálias, faltou-vos, porventura, alguma coisa?».36 Eles responderam: «Nada». Disse-lhes pois: «Mas agora quem tem bolsa, tome-a, e também alforge, e quem não tem espada venda o seu manto e compre uma.37 Porque vos digo que é necessário que se cumpra em Mim isto que está escrito: “Foi posto entre os malfeitores”. Porque as coisas que Me dizem respeito estão perto do seu cumprimento». 38 Eles responderam: «Senhor, eis aqui duas espadas». Jesus disse-lhes: «Basta». 39 Tendo saído foi, segundo o Seu costume, para o monte das Oliveiras. Seus discípulos seguiram-n'O.  40 Quando chegou àquele lugar disse-lhes: «Orai, para não cairdes em tentação».41 Afastou-Se deles a distância de um tiro de pedra; e, posto de joelhos, orava,42 dizendo: «Pai, se quiseres, afasta de Mim este cálice; não se faça, contudo, a Minha vontade, mas a Tua».43 Então apareceu-Lhe um anjo do céu que O confortava. Entrando em agonia, orava mais intensamente.44 O Seu suor tornou-se como gotas de sangue que corriam até à terra.45 Tendo-Se levantado da oração e indo ter com os Seus discípulos, encontrou-os a dormir por causa da tristeza.46 Disse-lhes: «Porque dormis? Levantai-vos e orai para não cairdes em tentação».47 Estando Ele ainda a falar, eis que chega um tropel de gente. Aquele que se chamava Judas, um dos doze, vinha à frente. Aproximou-se de Jesus para O beijar.48 Jesus disse-lhe: «Judas, com um beijo entregas o Filho do Homem?».49 Os que estavam com Jesus, vendo o que ia acontecer, disseram-Lhe: «Senhor e se os feríssemos à espada?».

Comentário:

Parece-me que o único comentário conveniente a este trecho do Evangelho de São Lucas seja:

Leiamos com atenção, meditemos com profundidade cada palavra, cada episódio;

Guardemos no coração o que lemos e meditamos para o Tempo Litúrgico da Quaresma que amanhã começa;

Tenhamos consciência do incomensurável Amor de Jesus Cristo por todos os homens;
Amor que O leva a instituir a Eucaristia como penhor da Vida Eterna que deseja para cada um de nós;

Amor que O conduz à Agonia no Horto das Oliveiras;

Amor que O leva a suportar a traição mais abominável que é a levada a cabo por um que tinha como amigo e que O entrega com um beijo.

(ama, comentário sobre Lc 23, 1-49, 2016.01.16)



Leitura espiritual


SANTO AGOSTINHO - CONFISSÕES

LIVRO SEXTO

CAPÍTULO X

Os três amigos

Encontrei Alípio em Roma, onde se uniu a mim com vínculo de amizade tão estreito, que foi comigo para Milão, tanto para evitar o nosso afastamento como para exercer o Direito, embora mais para agradar aos pais do que por vontade própria. Já por três vezes fora assessor, sempre com admirável lisura, e ficando ele mais admirado ainda de que juízes preferissem o dinheiro à inocência.

Ficou provada a integridade do seu carácter, não só contra os atractivos da cobiça, mas também contra o aguilhão do medo. Em Roma, era assessor do tesoureiro das finanças da Itália.

Havia nesse tempo um senador poderosíssimo, a quem estavam sujeitos muitos clientes, uns por benefícios, outros por terror. Segundo o costume dos poderosos, este senador tentou fazer não sei que coisa era proibida pelas leis, e Alípio opôs-se-lhe. À tentativa de corrompê-lo, Alípio respondeu com o riso. Zombou das ameaças que aquele lhe dirigiu, causando admiração geral pela rara qualidade da sua alma, que não desejava a amizade e nem temia a inimizade de homem tão poderoso, conhecido pelos seus inúmeros meios de prestar favores ou de prejudicar. Até o próprio juiz, de que Alípio era assessor, embora se opusesse também, não o fazia abertamente, responsabilizando Alípio que, dizia ele, não lhe permitia fazer o que desejava, porque, se acedesse – e era verdade – demitir-se-ia imediatamente.

Alípio quase se deixara seduzir pelo amor às letras, mandando copiar códigos segundo a tarifa paga aos trabalhos para o Estado; porém, consultando a justiça, inclinou-se pelo melhor, preferindo a integridade, que lhe proibia esta acção, ao poder que lha permitia.

Isso é facto pequeno, mas o que é fiel no pouco também o é no muito, e de modo nenhum podem ser vãs aquelas palavras saídas da boca da tua Verdade. Se não fordes fiéis nas riquezas injustas, quem vos confiará as verdadeiras? E se nas alheias não fordes fiéis, quem vos dará o que é vosso?

Assim era então este amigo, tão intimamente unido a mim, e que comigo buscava o tipo de vida que deveríamos seguir.

Também Nebrídio deixou a sua pátria, vizinha de Cartago, e a própria Cartago, onde gozava de boa fama. Abandonou as magníficas propriedades do pai, a casa e até a própria mãe, que não o quis seguir; veio para Milão apenas para viver comigo, na busca apaixonada da verdade e da sabedoria.

Assim como eu, ele suspirava, partilhando a minha perplexidade, mostrando-se investigador ardoroso da vida feliz e indagador acérrimo das questões mais difíceis.

Eram três bocas famintas que comunicavam mutuamente a própria fome, esperando que lhes desses comida no tempo oportuno. Na amargura, que graças à tua misericórdia sempre seguia as nossas acções mundanas, se desejávamos entender a causa dos sofrimentos, encontrávamos trevas. Afastávamo-nos gemendo e dizendo: Até quando durará este sofrimento? E repetíamos isto com frequência, mas não abandonávamos o nosso modo de vida, porque não víamos nenhuma certeza a que nos pudéssemos abraçar, se o abandonássemos.

CAPÍTULO XI

Entre Deus e o mundo

Era com admiração que me recordava diligentemente do longo tempo decorrido desde os meus dezanove anos, quando comecei a arder no desejo da sabedoria, propondo-me, quando a achasse, abandonar todas as vãs esperanças e enganosas loucuras das paixões.

Chegado porém aos trinta anos, ainda continuava preso ao mesmo lodaçal, ávido de gozar dos bens presentes, que me fugiam e me dissipavam. Entretanto, dizia: “Amanhã hei de encontra-la; a verdade aparecerá clara, e abraçá-la-ei. Fausto virá, e dará todas as explicações. Ó grandes varões da Academia: é verdade que não podemos compreender nenhuma coisa com certeza para a conduta da nossa vida?

“Mas não! Procuremos com mais diligência, sem desesperarmos. Já não me parecem absurdas nas Escrituras as coisas que antes me pareciam tais: posso compreendê-las de modo diferente, mais razoável. Fixarei, pois, os pés naquele degrau em que me colocaram os meus pais quando criança, até que encontres a verdade na sua evidência.

“Mas onde e quando buscá-la? Ambrósio não tem tempo livre para me ouvir, e a mim falta-me tempo para ler. E além do mais, onde encontrar os livros? E onde ou quando poderei comprá-los?

A quem hei-de pedi-los?

“Repartamos o tempo, reservemos algumas horas para a salvação da alma. Nasceu uma grande esperança: a fé católica não ensina o que eu pensava, e eu criticava-a levianamente. Os seus doutores têm como crime limitar Deus à figura humana; e eu ainda hesito em bater para que nos sejam reveladas as outras verdades! Dedico as horas da manhã aos alunos; mas que faço das outras? Por que não as consagro a essa busca?

“Mas quando então, visitar os amigos poderosos, de cujos favores necessito? Quando preparar as lições que os alunos me pagam? Quando reparar as forças do espírito, descansando em algo aprazível?

“Perca-se tudo! Deixemos essas coisas vãs e fúteis. Entreguemo-nos por completo à busca da verdade. A vida é miserável, e a hora da morte, incerta. Se esta me surpreender de repente, em que estado sairei do mundo? E onde aprenderei o que deixei de aprender aqui? Não serei antes castigado por essa negligência? Mas, e se a própria morte cortar e for o fim a todo cuidado e sentimento? Também seria conveniente investigar este ponto. Mas afastemos tais pensamentos! Não é por acaso nem é em vão que se difunde por todo o mundo a fé cristã, com grande prestígio. Deus jamais teria criado tantas e tais coisas por nós, se com a morte do corpo terminasse também a vida da alma. Porque hesitar, pois, em abandonar as esperanças do mundo para me consagrar à busca de Deus e da bem-aventurança?

Mas esperemos um pouco! Os bens mundanos também têm seus deleites, que não são pequenos. Não devo deixá-los sem pensar; seria feio ter de voltar a eles. Eis-me prestes a conseguir um cargo de honra. Que mais posso desejar? Tenho uma multidão de amigos poderosos. Sem me apressar muito poderia obter, no mínimo, uma presidência. Poderia então casar-me com uma mulher de alguma fortuna, para que os meus gastos não fossem muito pesados.

Aqui estariam os limites de meus desejos. Muitos homens grandes e dignos de imitação, apesar de casados, dedicaram-se ao estudo da sabedoria.

Enquanto assim pensava, e os ventos cambiantes impeliam o meu coração de um lado para outro, o tempo passava, e eu retardava a minha conversão ao Senhor. Adiava de dia para dia o viver em ti, morrendo todavia todos os dias em mim mesmo. Amando a vida feliz, temia busca-la na sua morada; procurava-a fugindo dela! Pensava que seria muito desgraçado se me visse privado das carícias da mulher. Não pensava ainda no remédio da tua misericórdia, que cura esta enfermidade, porque nunca o havia experimentado. Julgava que a continência fosse obra da nossa própria força, que eu pensava não ter. Eu era bastante néscio para ignorar que ninguém, como está escrito, é casto sem que tu lhes dês a força. Essa força certamente ma darias se eu ferisse os teus ouvidos com os gemidos da minha alma, e com fé firme lançasse em ti meus cuidados.

CAPÍTULO XII

Casar ou não?

Opunha-se Alípio a que me casasse, repetindo-me que, se o fizesse, não poderíamos dedicar-nos juntos, com segura tranquilidade, ao amor da sabedoria, como há muito desejávamos.

Alípio, nessa matéria, era castíssimo de causar admiração, porque, ao entrar na juventude, experimentara o prazer carnal, mas não se prendera a ele. Antes, arrependeu-se muito, e desprezou-o, vivendo depois em perfeita continência.

Eu argumentava com os exemplos dos que, embora casados, se tinham dedicado ao estudo da sabedoria, servindo a Deus, e guardando fidelidade e amor aos amigos. Contudo, eu estava longe dessa grandeza de alma. Prisioneiro da morbidade da carne, arrastava com prazer mortal a minha cadeia, temendo que ela se rompesse e, rejeitando as palavras que bem me aconselhavam, como o ferido repele a mão que lhe desfaz as ligaduras.

Além do mais, a serpente falava pela minha boca a Alípio, e pela língua lhe tecia doces laços em seu caminho, para que os seus pés honestos e livres se enredassem.

Ele admirava-se de que eu, a quem tanto estimava, estivesse tão preso ao visco do prazer a ponto de afirmar, sempre que tratávamos desse assunto, que me era impossível levar vida casta. Para esgrimir contra a sua admiração, dizia-lhe que havia grande diferença entre a sua rápida e furtiva experiência do prazer, de que mal se lembrava e que, por isso, podia desprezar facilmente, e as delícias de uma ligação verdadeira, à qual, se juntasse o honesto nome de matrimónio, já não causaria admiração se eu não pudesse desprezar aquela vida. Com isso, Alípio também começou a desejar o matrimónio, não certamente vencido pelo apetite do prazer, mas pela curiosidade. Desejava saber, dizia ele, o que era aquele bem sem o qual minha vida – que ele tanto apreciava – não me parecia vida, mas tormento. De facto, livre dessa prisão, a sua alma pasmava de tal servidão, e do espanto passava ao desejo de experimentá-la. Depois talvez caísse naquela mesma servidão que o espantava, pois queria fazer um pacto com a morte, e o que ama o perigo, nele cairá.

Certamente que nem ele, nem eu tínhamos grande interesse no que há de bonito e honesto no matrimónio, como a direcção da família e a educação dos filhos. Mas o que me mantinha preso e com fortes tormentos era o hábito de saciar a minha insaciável concupiscência; e a ele, era a admiração que o arrastava para o mesmo cativeiro. Assim éramos, Senhor, até que tu, ó Altíssimo, que não desamparas o nosso lodo, compassivo, por caminhos maravilhosos e ocultos, viestes em socorro destes infelizes.

(cont)

(Revisão de versão portuguesa por ama)



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