16/02/2015

Tratado do verbo encarnado 123

Questão 18: Da unidade de Cristo quanto a vontade

Art. 6 — Se havia em Cristo vontades contrárias.

O sexto discute-se assim. — Parece que havia em Cristo vontades contrárias.

1 — Pois, vontades contrárias supõem a contrariedade dos seus objectos, assim como também a contrariedade dos movimentos supõe a contrariedade dos seus termos, como está claro no Filósofo. Ora, Cristo, pelas suas diferentes vontades, queria coisas contrárias, assim, pela vontade divina queria a morte, que repugnava à sua vontade humana. Donde o dizer Atanásio: Quando o Cristo exclama — Pai, se é possível, passe de mim este cálix, todavia não se faça nisto a minha vontade, mas sim: a tua, e ainda — o espírito está pronto mas a carne é fraca, revela ter duas vontades, - a humana que, pela fraqueza da carne, fugia o sofrimento, e a divina, pronta para a paixão. Logo, havia em Cristo vontades contrárias.

2. Demais. — O Apóstolo diz: Porque a carne deseja contra o espírito e o espírito contra a carne. Há, pois, vontades contrárias, quando o espírito deseja uma coisa e a carne, outra. Ora, tal se dava com Cristo, pois, pela vontade de caridade, que o Espírito Santo lhe causava na alma, queria o sofrimento, segundo a Escritura. — Foi oferecido porque ele mesmo quis, ao contrário, pela carne, fugia o sofrimento. Logo, nele havia contrariedade de vontades.

3. Demais. — O Evangelho diz que posto em agonia Jesus orava com maior instância. Ora, a agonia implica uma luta da alma, que tende para uma direcção oposta. Logo, parece que em Cristo havia vontades contrárias.

Mas, em contrário, determina o Sexto Sínodo: Afirmamos duas vontades naturais não contrárias, ao invés do que os impios ensinam hereticamente, e que a vontade humana de Cristo obedece, sem resistência nem relutância, antes com sujeição, à sua vontade divina e omnipotente.

Não pode haver contrariedade, sem haver oposição fundada num mesmo sujeito e no mesmo ponto de vista. Pois, a diversidade fundada em coisas diferentes e a luzes diversas não basta para constituir uma contrariedade, nem ainda uma contradição, assim, se um homem for belo ou são de mãos e não de pés.

Donde, para haver vontades contrárias é necessário, primeiro, que essa contrariedade tenha o mesmo sujeito. Assim, se a vontade de um quiser fazer uma coisa fundada numa razão universal, e a de outro não quiser fazer a mesma coisa por uma razão particular, não há absolutamente contrariedade de vontades. Por exemplo, se o rei quiser que um ladrão seja enforcado, para o bem da república, e um dos parentes deste não o quiser, pelo amor particular que lhe tem, não haverá contrariedade de vontades. Salvo talvez se a vontade do particular chegar a ponto de querer impedir o bem público, para conservar o seu bem particular, pois, então, a repugnância das vontades funda-se no mesmo objecto.

Em segundo lugar para haver vontades contrárias é necessário que a contrariedade se funde na mesma vontade. Assim, se quisermos uma coisa pelo apetite racional e outra, pelo sensitivo, não há aí nenhuma contrariedade, salvo se o apetite sensitivo prevalecer a ponto de alterar ou retardar o apetite racional, pois, então, já o movimento contrário do apetite sensitivo teria, de certo modo, atingido a vontade racional em si mesma.

Donde devemos concluir, que embora a vontade natural e a vontade sensitiva, em Cristo, quisessem coisas diferentes das queridas pela vontade divina e pela sua própria vontade racional, não havia contudo nele nenhuma contrariedade de vontades. — Primeiro, porque nem a vontade sensitiva repudiava aquela razão pela qual a vontade divina e a vontade da razão humana, em Cristo, queriam a paixão. Pois, a vontade absoluta de Cristo queria a salvação do género humano, não podiam porém querê-la como um meio. Quanto, ao movimento da sensibilidade, ele não podia elevar-se até aí. — Segundo, porque nem a vontade divina nem a racional eram impedidas ou retardadas em Cristo pela vontade natural ou pelo apetite sensível. Semelhantemente e ao contrário, nem a sua vontade divina ou a vontade racional evitavam ou retardavam o movimento da vontade natural humana e o movimento da sensibilidade. Pois, aprazia a Cristo, pela sua vontade divina e também pela vontade racional, que a sua vontade natural e a sua vontade sensível se movessem conforme a ordem das suas naturezas. — Donde é claro, que em Cristo não havia nenhuma repugnância ou contrariedade de vontades.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Mesmo a vontade humana de Cristo querer coisa diferente do que quisesse a sua vontade divina procedia da própria vontade divina, a cujo beneplácito a natureza humana de Cristo se movia com seu movimento próprio, como diz Damasceno.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A concupiscência da carne retarda ou impede em nós a concupiscência do espírito, o que não se dava em Cristo. E por isso em Cristo não havia, como há em nós, contrariedade entre a carne e o espírito.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Cristo não sofreu agonia na parte racional da alma, enquanto isso implica um choque de vontades procedente de razões diversas, por exemplo, quando queremos uma coisa que a razão nos oferece, e queremos também o contrário, que ela nos propõe. O que provém da fraqueza da razão, incapaz de discernir o que é absolutamente melhor. E tal não se dava em Cristo, que, com a sua razão julgava ser, absolutamente, melhor cumprir pela sua paixão a vontade divina, no tocante à salvação do género humano. Houve porém agonia em Cristo quanto à parte sensitiva, que implica o temor do infortúnio iminente, como diz Damasceno.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


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