31/12/2014

Tratado do verbo encarnado 76

Questão 11: Da ciência inata ou infusa da alma de Cristo

Em seguida devemos tratar da ciência inata ou infusa da alma de Cristo.

E nesta questão discutem-se seis artigos:

Art. 1 — Se pela ciência infusa Cristo sabia tudo.
Art. 2 — Se a alma de Cristo não podia conhecer pela ciência infusa, senão servindo-se dos fantasmas.
Art. 3 - Se a alma de Cristo tinha a ciência infusa por via de comparação.
Art. 4 — Se a ciência infusa em Cristo era menor que nos anjos.
Art. 5 — Se em Cristo havia a ciência habitual.
Art. 6 — Se a alma de Cristo só tinha um hábito de ciência.

Art. 1 — Se pela ciência infusa Cristo sabia tudo.

O primeiro discute-se assim. — Parece que pela ciência infusa Cristo não sabia tudo.

1 — Pois, essa ciência foi infusa em Cristo para a perfeição do seu intelecto possível. Ora, o intelecto passível da alma humana não é potencial relativamente a todas as coisas, absolutamente falando, mas só àquelas em relação às quais pode ser actualizada pelo intelecto agente, que é propriamente o seu princípio de acção, e essas coisas são cognoscíveis pela razão natural. Logo, por essa ciência Cristo não conhecia o que excede a razão natural.

2. Demais. — Os fantasmas estão para o intelecto humano como as cores para a visão, como diz Aristóteles. Ora, não constitui uma perfeição da potência visiva conhecer o que é absolutamente desprovido de cor. Logo, nem a perfeição do intelecto humano, conhecer aquilo que não pode ter fantasma, como são as substâncias separadas. Assim, pois, como a referida ciência existia em Cristo, para a perfeição da sua alma intelectiva, parece que, como essa ciência, não conhecia as substâncias separadas.

3. Demais. — Não é da perfeição do intelecto conhecer o particular. Logo, parece que por essa ciência a alma de Cristo não conhecia o particular.

Mas, em contrário, a Escritura: Enchê-lo-ei do Espírito da sabedoria e de entendimento, de ciência e de conselho, no que está compreendido todo o cognoscível. Pois, o objecto da sabedoria é o conhecimento de todas as coisas divinas, o do intelecto, o de todas os seres imateriais, o da ciência, o de todas as conclusões, e enfim, o do conselho, o de tudo o que podemos fazer. Logo, parece que Cristo, pela ciência nele infundida pelo Espírito Santo, teve conhecimento de todas as coisas.

Como dissemos, para a alma de Cristo ser perfeita em tudo, havia de ser reduzida ao acto toda a sua potencialidade. Ora, devemos notar que na alma humana, como em qualquer criatura, distinguimos uma dupla potência passiva. Uma, por comparação com o agente natural, outra, por comparação com o agente primeiro, capaz de reduzir qualquer criatura a um acto mais elevado, ao que não é reduzida por um agente natural. E a isto costuma-se chamar o poder de obediência na criatura. Ora, uma e outra potência da alma de Cristo foi reduzida ao acto por essa ciência divinamente infusa, E assim, por ela, a alma de Cristo, primeiro, conhecia tudo o que o homem pode conhecer por virtude do lume do intelecto agente, como é tudo o que pertence às ciências humanas. Segundo, por essa ciência conhecia Cristo tudo o que o homem conhece pela revelação divina, quer isso pertença ao dom da sabedoria, quer ao da profecia, quer a qualquer dom do Espírito Santo, pois, tudo isso a alma de Cristo conhecia mais abundante plenamente que os outros homens. Mas não conhecia por essa ciência a essência mesma de Deus, mas só pela primeira, de que tratamos antes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A objecção colhe quanto à potência natural da alma intelectiva, em dependência do seu agente natural, que é o intelecto activo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A alma humana, no estado desta vida, por estar de certo modo presa ao corpo de maneira a não poder inteligir sem fantasma, não pode inteligir as substâncias separadas. Mas, após o estado desta vida, a alma separada poderá de certo modo conhecer por si mesma as substâncias separadas, como dissemos na Primeira Parte. O que sobretudo é manifesto quanto à alma dos bem-aventurados. Ora, Cristo, antes da paixão, ao mesmo tempo que vivia nesta vida contemplava a essência divina. Por isso, a sua alma podia conhecer as substâncias separadas, pelo modo pelo qual a alma separada conhece.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O conhecimento do particular não constitui uma perfeição da alma intelectiva, por um conhecimento especulativo, constitui-lhe porém uma perfeição, pelo conhecimento prático, que não se realiza perfeitamente sem o conhecimento do particular, que é o objecto da acção, como diz Aristóteles. Por isso a prudência supõe a memória dos factos passados, o conhecimento dos presentes e a previdência dos futuros, como diz Túlio. Ora, Cristo tendo tido a plenitude da prudência, pelo dom do conselho, era consequente que conhecesse todos os particulares passados, presentes e futuros.


Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.

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