1 Disse também a
Seus discípulos: «Um homem rico tinha um feitor, que foi acusado diante dele de
ter dissipado os seus bens. 2 Chamou-o, e disse-lhe: Que é isto que
eu oiço dizer de ti? Dá conta da tua administração; não mais poderás ser meu
feitor. 3 Então o feitor disse consigo: Que farei, visto que o meu
senhor me tira a administração? Cavar não posso, de mendigar tenho vergonha. 4
Já sei o que hei-de fazer, para que, quando for removido da administração, haja
quem me receba em sua casa. 5 E, chamando cada um dos devedores do
seu senhor, disse ao primeiro: Quanto deves ao meu senhor? 6 Ele
respondeu: Cem medidas de azeite. Então disse-lhe: Toma o teu recibo, senta-te
e escreve depressa cinquenta. 7 Depois disse a outro: Tu quanto
deves? Ele respondeu: Cem medidas de trigo. Disse-lhe o feitor: Toma o teu
recibo e escreve oitenta. 8 E o senhor louvou o feitor desonesto,
por ter procedido sagazmente. Porque os filhos deste mundo são mais hábeis no
trato com os seus semelhantes que os filhos da luz».
Comentário:
“Jesus diz: não ando com eles para
ser como eles mas para os fazer iguais a Mim” (capelão das Irmãzinhas dos
Pobres, homília sobre o ev. de hoje).
Dá-nos que pensar este trecho do
Evangelho de São Lucas que, como sempre, é absolutamente claro no que escreve.
A ‘chave’ está exactamente na última frase: não será por sermos discípulos e seguidores
de Cristo que devemos deixar de cuidar das coisas terrenas no que a nós nos diz
pessoalmente respeito e mais nos deve preocupar, a nossa salvação eterna.
(ama, comentário sobre Lc 16, 1-8,
2014.10.06)
Leitura espiritual
HISTÓRIA DE UMA ALMA
Santa Teresinha do Menino Jesus
Manuscrito "A" - Parte IV
…/4
Minha alma estava mergulhada na
tristeza mas, por fora, permanecia a mesma, pois pensava que não se sabia do
pedido que eu tinha feito ao Santo Padre. Logo, porém, constatei o contrário.
Tendo ficado no vagão, a sós com Celina (os outros romeiros tinham descido para
um lanche durante os poucos minutos de parada), vi o padre Legoux,
vigário-geral de Coutances, abrir a portinhola e, olhando-me sorridente, dizer:
"Como vai nossa pequena carmelita?..." Soube então que todas as
pessoas da romaria sabiam do meu segredo. Felizmente, ninguém comentou comigo,
mas vi, pela maneira simpática de me olhar, que meu pedido não tinha produzido
má impressão, pelo contrário... Na pequena cidade de Assis, tive oportunidade de subir no mesmo carro que o padre Révérony, favor que não foi concedido a
nenhuma senhora durante a viagem toda. Eis como obtive esse privilégio.
Após ter visitado os lugares
perfumados pelas virtudes de são Francisco e de santa Clara, terminamos pelo
mosteiro de santa lnês, irmã de santa Clara. Tinha contemplado à vontade a
cabeça da santa quando, uma das últimas a me retirar, percebi ter perdido meu
cinto. Procurei-o no meio do povo, um padre teve pena de mim e me ajudou. Mas,
depois de lê-lo achado, vi-o afastar-se e fiquei sozinha procurando, pois
embora tivesse encontrado o cinto não podia colocá-lo, porque faltava a
fivela... Enfim, vi-a brilhar num canto; não demorei em ajustá-la à fita. Mas o
trabalho anterior havia demorado mais e percebi estar sozinha ao lado da
igreja, todos os carros tinham ido embora, excepto o do padre Révérony. Que
fazer? Devia correr atrás dos carros que não via mais, arriscar-me a perder o
trem e colocar meu papai querido na inquietação, ou pedir boleia na caleche do
padre Révérony? Optei pela última solução. Com a cara mais graciosa e menos
constrangida possível, apesar do meu extremo embaraço, expus-lhe. minha
situação crítica e o coloquei, por sua vez, em situação difícil, pois seu carro
estava lotado com os mais distintos senhores da romaria, impossível encontrar
um lugar; porém, um cavalheiro apressou-se em descer, fez-me subir no seu lugar
e colocou-se modestamente perto do cocheiro. Parecia um esquilinho pego numa
armadilha e estava longe de me sentir à vontade, cercada por todos esses
personagens e, sobretudo, do mais temível, diante do qual assentei-me...
Todavia, ele foi muito amável comigo, interrompendo, de vez em quando, sua
conversação com os senhores para falar-me do Carmelo. Antes de chegar à
estação, todos os grandes personagens sacaram suas grandes carteiras a fim de
dar dinheiro ao cocheiro (já pago). Fiz como eles e tirei minha diminuta
carteira, mas o padre Révérony não me deixou pegar bonitas moedinhas, preferiu
dar uma grande por nós dois.
Numa outra ocasião, encontrei-me ao
lado dele num ónibus. Foi ainda mais amável e prometeu fazer tudo o que pudesse
para meu ingresso no Carmelo... Mesmo com esse bálsamo todo sobre minhas
feridas, esses pequenos encontros não impediram que a volta fosse menos
agradável que a ida, pois não tinha mais a esperança "do Santo
Padre". Não encontrava ajuda nenhuma na terra, que me parecia ser um
deserto árido e sem água. Toda a minha esperança estava unicamente em Deus...
Acabava de experimentar que é melhor recorrer a Ele que a seus santos...
A tristeza da minha alma não me
impedia de sentir grande interesse pelos santos lugares que visitávamos. Em
Florença, fiquei feliz em contemplar santa Madalena de Pazzi no meio do coro
das carmelitas, que abriram a grande grade para nós. Como não sabíamos que
teríamos esse privilégio, muitas pessoas desejavam encostar seus terços no
túmulo da santa. Só eu conseguia passar a mão pela grade que nos separava dele,
portanto, todos me traziam seus terços e eu estava muito contente com meu
ofício... Eu precisava sempre encontrar o meio de mexer em tudo. Assim também
na igreja de Santa Cruz de Jerusalém (em Roma), onde pudemos venerar diversos
pedaços da verdadeira Cruz, dois espinhos e um dos cravos sagrados mantidos num
magnífico relicário em ouro lavrado, mas sem vidro; foi-me possível, ao venerar
a preciosa relíquia, enfiar meu dedinho num dos orifícios do relicário e tocar
o cravo que fora banhado com o sangue de Jesus... Francamente, era audaciosa
demais!... Felizmente, Deus, que vê o fundo dos corações, sabe que minha
intenção era pura e que por nada neste mundo teria querido desagradar-lhe.
Comportava-me com Ele como uma criança que acredita que tudo lhe é permitido e
olha os tesouros de seu pai como sendo dela. Ainda não consegui entender porque
as mulheres são tão facilmente excomungadas na Itália. A cada instante,
diziam-nos: "Não entrem aqui... Não entrem aí, seriam
excomungadas!..." Ah! pobres mulheres, como são desprezadas!... Todavia,
são muito mais numerosas em amar a Seus e, durante a Paixão de Nosso Senhor, as
mulheres tiveram mais coragem que os apóstolos, pois enfrentaram os insultos
dos soldados e atreveram-se a enxugar a Face adorável de Jesus... É sem dúvida
por isso que Ele permite que o desprezo seja a herança delas na terra, sendo
que Ele o escolheu para Si mesmo....
No Céu, saberá mostrar que as ideias
Dele não se confundem com as dos homens, pois então as últimas serão as
primeiras... Mais de uma vez, durante a viagem, não tive a paciência de esperar
pelo Céu para ser a primeira... Num dia em que visitávamos um mosteiro de
padres carmelitas, não estando satisfeita em acompanhar os romeiros nos
corredores exteriores, adentrei os claustros internos... De repente, vi um bom
velho carmelita que me fazia sinal, de longe, para me afastar. Em vez de
voltar, aproximei-me dele mostrando os quadros do claustro e dizendo, por
sinal, que eram bonitos. Ele percebeu, sem dúvida pelos meus cabelos soltos e
meu ar jovem, que eu não passava de uma criança; sorriu-me com bondade e se
afastou, ciente de que não tinha enfrentado uma inimiga. Se eu soubesse falar
italiano, ter-lhe-ia dito ser uma futura carmelita, mas por causa dos construtores
da torre de Babel isso não foi possível.
Depois de ter visitado Pisa e Génova,
voltamos à França. No percurso, a vista era magnífica. Às vezes, íamos pela
beira-mar e a ferrovia passava tão perto que dava a impressão de que as ondas
iam nos alcançar. Esse espectáculo foi causado por uma tempestade. Era noite, o
que tornava a cena ainda mais imponente. Outras vezes, planícies cobertas de
laranjais com frutas maduras, verdes oliveiras com folhagem leve, palmeiras
graciosas... no fim da tarde, víamos numerosos pequenos portos marítimos
iluminar-se com milhares de luzes, enquanto no Céu brilhavam as primeiras
estrelas... Ah! que poesia enchia minha alma vendo todas essas coisas pela
primeira e última vez na minha vida!... Era sem pena que as via esvair-se, meu
coração aspirava a outras maravilhas. Ele tinha contemplado suficientemente as
belezas da terra, as do Céu eram objeto dos seus desejos e para dá-las às almas
queria tornar-me prisioneira!... Antes de ver abrir-se diante de mim as portas
da prisão abençoada com a qual sonhava, precisava lutar e sofrer ainda mais...
sentia-o ao voltar à França. Todavia, minha confiança era tão grande que não
cessava de esperar que me seria permitido ingressar em 25 de Dezembro... De
volta a Lisieux, nossa primeira visita foi ao Carmelo. Que reencontro aquele!...
Tínhamos tantas coisas para nos contar após um mês de separação, mês que me
pareceu mais longo e durante o qual aprendi mais que durante muitos anos...
Oh, Madre querida! como foi doce para
mim vos rever, abrir-vos minha pobre pequena alma ferida. A vós que tão bem
sabíeis me compreender, a quem uma palavra, um olhar bastava para adivinhar
tudo! Abandonei-me completamente, tinha feito tudo o que dependia de mim, tudo,
até falar com o Santo Padre. Não sabia mais o que tinha de fazer. Dissestes-me
para escrever a Sua Excelência e lembrar-lhe sua promessa; eu o fiz logo, o
melhor que me foi possível, mas em termos que meu tio achou simples demais. Ele
refez minha carta. No momento em que ia enviá-la, recebi uma de vós, dizendo-me
para não escrever, para esperar alguns dias. Obedeci logo, pois estava certa de
que era o melhor meio de não errar. Enfim, dez dias antes do Natal, minha carta
partiu. Convicta de que a resposta não demoraria, ia todas as manhãs, depois da
missa, com papai à agência dos correios, acreditando encontrar aí a permissão
para levantar vôo. Cada manhã trazia nova decepção que, porém, não abalava
minha fé... Pedia a Jesus para romper meus laços. Ele os rompeu, mas de maneira
totalmente diferente do que esperava... A bela festa de Natal chegou e Jesus
não acordou... Deixou no chão sua pequena bola sem ao menos olhar para ela...
Foi de coração partido que assisti à
missa do galo; esperava tanto assistir atrás das grades do Carmelo!... Essa
provação foi muito grande para minha fé... Mas Aquele cujo coração vigia
durante o sono fez-me compreender que, para quem tem fé do tamanho de um grão
de mostarda, Ele opera milagres e transporta as montanhas para firmar essa
pequena fé, mas para seus íntimos, para sua Mãe, não opera milagres antes de
provar sua fé. Não deixou Lázaro morrer, embora Marta e Maria o tivessem
avisado que ele estava doente?... Nas bodas de Caná, quando Nossa Senhora lhe
pediu para socorrer os anfitriões, não respondeu que sua hora não tinha
chegado?... Mas, depois da provação, que recompensa: a água se transforma em
vinho... Lázaro ressuscita... É assim que Jesus age com sua Teresinha; depois
de a pôr à prova durante muito tempo, satisfez todos os desejos do seu
coração...
Na tarde da radiosa festa que passei
chorando, fui visitar as carmelitas; foi grande a surpresa quando, ao abrir-se
a grade, vi um lindo menino Jesus segurando nas mãos uma bola com meu nome
escrito nela. No lugar de Jesus, pequeno demais para poder falar, as carmelitas
cantaram para mim um cântico composto pela minha querida Madre. Cada palavra
derramava em minha alma um doce consolo. Nunca me esquecerei dessa delicadeza
do coração materno que sempre me cumulou das mais finas ternuras... Após ter
agradecido no meio de doces lágrimas, relatei a surpresa que minha Celina
querida me fizera ao voltar da missa do galo. Encontrei no meu quarto, dentro
de uma bela bacia, um barquinho carregando o menino Jesus dormindo com uma
pequena bola ao lado Dele. Na vela branca, Celina escrevera as seguintes
palavras: "Durmo, mas meu coração vela", e, sobre o barquinho, apenas
essa palavra: "Abandono!" Ah! se Jesus ainda não falava com sua
noivinha, se seus divinos olhos continuavam sempre fechados, pelo menos Ele se
revelava a ela por meio de almas que compreendiam todas as delicadezas e o amor
do seu coração...
No primeiro dia do ano de 1888, Jesus
ainda me presenteou com sua cruz, mas dessa vez carreguei-a sozinha, pois era
tanto mais dolorosa quanto incompreendida... Uma carta de Paulina veio me
informar que a resposta de Sua Excelência tinha chegado dia 28, festa dos
santos Inocentes, mas que não a comunicou para mim por ter decidido que meu
ingresso só se daria depois da quaresma. Não pude segurar as lágrimas com a
ideia de tão longa espera. Essa provação teve para mim um carácter muito
peculiar: via meus laços com o mundo rompidos e a arca santa recusando a
entrada para sua pobre pombinha... Quero acreditar que devo ter parecido
manhosa por não aceitar alegremente meus três meses de exílio, mas creio também
que, sem deixar transparecer, essa provação foi muito grande e me fez crescer
muito no abandono e nas outras virtudes.
Como passaram esses três meses tão
ricos de graças para minha alma?... Primeiro, ocorreu-me a idéia de não me
constranger a levar uma vida tão bem regrada como de costume; mas logo
compreendi o valor do tempo que me estava sendo oferecido e resolvi
entregar-me, mais do que nunca, a uma vida séria e mortificada. Quando digo mortificada,
não é para fazer crer que eu fazia penitências, ai! nunca fiz, longe de parecer
com as belas almas que desde a infância praticavam toda espécie de
mortificações, não sentia atrações por elas. Sem dúvida, isto decorria da minha
covardia, pois podia, com Celina, encontrar mil pequenas invenções para me
fazer sofrer; em vez disso, sempre me deixei mimar e cevar como um passarinho
que não precisa fazer penitência... Minhas mortificações consistiam em refrear
minha vontade, sempre prestes a se impor, em reprimir uma palavra de réplica,
em prestar pequenos serviços sem retribuição, em não me encostar quando sentada
etc. etc... Foi pela prática desses nadas que me preparei para ser a noiva de
Jesus e não posso dizer o quanto essa espera deixou em mim doces lembranças...
Três meses passam muito depressa e, enfim, chegou o momento tão desejado.
Escolheu-se para meu ingresso a
segunda-feira, 9 de Abril, dia em que o Carmelo celebrava a festa da
Anunciação, adiada por causa da quaresma. Na véspera, a família toda reuniu-se
em volta da mesa a que me sentava pela última vez. Ah! como são dilacerantes
essas reuniões íntimas!... quando o que se quer é ser esquecido, prodigalizam-se
carícias, e as mais carinhosas palavras fazem sentir o sacrifício da
separação... Meu Rei querido quase não falava, mas seu olhar fixava-se em mim
com amor... Minha tia chorava de vez em quando e meu tio fazia-me mil elogios
afetuosos. Joana e Maria também se esmeravam em delicadezas, sobretudo Maria,
que puxando-me à parte, me pediu mil perdões pelas penas que pensava ter-me
causado. Enfim, minha querida Leoninha, de volta da Visitação havia alguns
meses, enchia-me de beijos e carícias. Só de Celina eu não falei, mas
adivinhais, querida Madre, corno se passou a última noite em que dormimos
juntas... Na manhã do grande dia, depois de lançar um último olhar aos Buissonnets,
ninho gracioso da rainha infância que não devia nunca mais rever, parti de
braços dados com meu Rei querido para subir a montanha do Carmelo... Como na
véspera, a família toda se reuniu para assistir à missa e comungar. Logo após
Jesus ter descido ao coração dos meus familiares queridos, só ouvi soluços ao
meu redor. Só eu não chorava, mas senti meu coração bater com tanta violência
que me pareceu impossível andar quando nos fizeram sinal para chegar até a
porta do convento. Andei, embora me perguntando se não ia morrer devido à força
das batidas do meu coração... Ah! que momento aquele. É preciso tê-lo vivido
para saber como é...
Minha emoção não se expressava
externamente. Depois de ter abraçado todos os membros da minha querida família,
pus-me de joelhos diante do meu incomparável pai e pedi-lhe a bênção. Ele mesmo
ajoelhou-se e me abençoou chorando... Era um espectáculo de fazer os anjos
sorrir, esse de um ancião apresentando ao Senhor sua criança ainda na primavera
da vida!... Alguns momentos depois, as portas da arca sagrada fechavam-se sobre
mim e passava a receber os abraços das irmãs queridas que me haviam servido de
mães e que ia, doravante, tomar por modelo das minhas acções... Enfim, meus desejos
estavam realizados, minha alma gozava de uma paz tão suave e tão profunda que
me seria impossível expressar e, há sete anos e meio, essa paz íntima continuou
sendo meu quinhão. Não me abandonou em meio às maiores provações.
Como todas as postulantes, fui levada
ao coro logo após minha entrada; estava escuro, por causa do Santíssimo
exposto, e o que chamou minha atenção foram os olhos da nossa santa Madre Genoveva,
que se fixaram sobre mim. Fiquei algum tempo de joelhos a seus pés, agradecendo
a Deus pela graça que me concedia de conhecer uma santa, e acompanhei nossa
Madre Maria de Gonzaga aos diversos recintos do convento. Tudo me parecia
bonito, tinha impressão de ter sido transportada para o deserto. Nossa pequena
cela me encantava especialmente, mas a alegria que sentia era calma, nem a
menor aragem fazia ondular as águas tranquilas em que navegava meu barquinho,
nenhuma nuvem escurecia meu céu azul... ah! estava plenamente recompensada por
todas as minhas provações... Com que alegria profunda repetia estas palavras:
"É para sempre, sempre, que estou aqui!..."
Não era uma felicidade efêmera; não
iria embora com as ilusões dos primeiros dias. Deus concedeu-me a graça de não
ter ilusões, nenhuma ilusão ao entrar para o Carmelo. Encontrei a vida
religiosa tal como a imaginara, nenhum sacrifício me surpreendeu e, contudo,
vós sabeis, Madre querida, meus primeiros passos encontraram mais espinhos do
que rosas!... Sim, o sofrimento estendeu-me os braços e atirei-me a ele com
amor... O que eu vinha fazer no Carmelo, declarei-o aos pés de Jesus-Hóstia, no
exame que antecedeu minha profissão: "Vim para salvar as almas e
sobretudo, rezar elos sacerdotes". Quando se quer atingir um fim, é
preciso tomar os meios, Jesus fez-me compreender que era pela cruz que queria
dar-me almas e minha atração pelo sofrimento crescia na medida em que o
sofrimento aumentava. Durante cinco anos, esse caminho foi o meu mas, por fora,
nada exteriorizava meu sofrimento, mais doloroso por ser eu a única a saber
dele. Ah! quantas surpresas teremos no juízo final, quando conhecermos a
história das almas!... haverá pessoas surpresas ao conhecer a via pela qual fui
conduzida!...
Isso é tão verdadeiro que, dois meses
após meu ingresso, estando aqui para a profissão de Irmã Maria do Sagrado
Coração, o padre Pichon ficou espantado ao constatar o que Deus operava em
minha alma e disse-me que, na véspera, tendo-me observado rezando no coro,
pensou ser meu fervor totalmente infantil e meu caminho muito manso. Minha
entrevista com o bom padre foi para mim um grande consolo, mas coberto de lágrimas
diante da dificuldade que sentia em abrir minha alma. Fiz, porém, uma confissão
geral tal como nunca tinha feito; no final, o padre me disse as mais
consoladoras palavras que já ressoaram aos ouvidos da minha alma: "Na
presença de Deus, da Santíssima Virgem e de todos os santos, declaro nunca
terdes cometido um único pecado mortal". E acrescentou: deis graças a Deus
pelo que Ele faz por vós, pois se Ele vos abandonasse, em vez de serdes um
anjinho, seríeis um diabinho. Ah! não tinha dificuldade em acreditar, sentia o
quanto era fraca e imperfeita, mas a gratidão enchia minha alma. Tinha tanto
receio de ter maculado meu vestido de batismo, que tal certidão, oriunda da
boca de um diretor conforme os desejos de Nossa Santa Madre Teresa, isto é, que
une ciência e virtude, parecia-me ter saído da própria boca de Jesus... O bom
padre disse-me ainda essas palavras que se gravaram em meu coração: "Minha
filha, que Nosso Senhor seja sempre vosso Superior e vosso Mestre de
noviças". De facto o foi, e foi também "o meu director". Não
quero dizer com isso que minha alma estivesse fechada para minhas superioras,
ah! longe disso, sempre procurei fazer dela um livro aberto; mas nossa Madre,
frequentemente doente, tinha pouco tempo para cuidar de mim. Sei que me amava muito
e dizia de mim todo o bem possível, todavia Deus permitia que, à sua revelia,
ela fosse severíssima; não podia encontrá-la sem beijar a terra, era a mesma
coisa por ocasião das escassas direcções espirituais que eu tinha com ela... Que
graça inestimável!... Como Deus agia visivelmente naquela que o substituía!...
Que teria sido de mim se, como pensavam as pessoas de fora, tivesse sido
"o brinquedinho" da comunidade?... Quiçá, em vez de ver Nosso Senhor
em minhas Superioras, não teria considerado apenas as pessoas e meu coração,
tão bem preservado no mundo, ter-se-ia ligado humanamente no claustro...
Felizmente, fui protegida contra essa desgraça. Sem dúvida, gostava muito da
nossa Madre, mas de um afeto puro que me elevava para o Esposo da minha alma...
(cont.)
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