Tempo comum XXXIII Semana
1 Tendo entrado em Jericó, atravessava a cidade. 2
Eis que um homem chamado Zaqueu, que era chefe dos publicanos e rico, 3
procurava conhecer de vista Jesus, mas não podia por causa da multidão, porque
era pequeno de estatura. 4 Correndo adiante, subiu a um sicómoro
para O ver, porque havia de passar por ali. 5 Quando chegou Jesus
àquele lugar, levantou os olhos e disse-lhe: «Zaqueu, desce depressa, porque
convém que Eu fique hoje em tua casa». 6 Ele desceu a toda a pressa,
e recebeu-O alegremente. 7 Vendo isto, todos murmuravam, dizendo:
«Foi hospedar-Se em casa de um homem pecador». 8 Entretanto, Zaqueu,
de pé diante do Senhor, disse-Lhe: «Eis, Senhor, que dou aos pobres metade dos
meus bens e, naquilo em que tiver defraudado alguém, restituir-lhe-ei o
quádruplo». 9 Jesus disse-lhe: «Hoje entrou a salvação nesta casa,
porque este também é filho de Abraão. 10 Porque o Filho do Homem
veio buscar e salvar o que estava perdido».
Comentário:
Pensemos, por breves momentos, que Jesus nos dirigia a nós as mesmas
palavras que a Zaqueu!
Como reagiríamos a essa declaração amável e, ao mesmo tempo, imperiosa:
«convém
que Eu fique hoje em tua casa»?
Talvez que uma
primeira reacção fosse: “Porquê eu? O que se passa para que, a Ele, Lhe
convenha ficar em minha casa?
Na verdade,
convém-nos muito mais a nós que a Ele que fique em nossa casa e não só hoje mas
todos os dias da nossa vida. Assim como que ‘um hóspede permanente’.
Tal como no caso de Zaqueu, devemos apressar-nos para tornar esse desejo
em realidade, aproveitando todos os ensejos que se nos deparam quando o Senhor
passa perto de nós.
(ama, comentário sobre Lc 19, 1-10, 2013.11.03)
Leitura espiritual
CRISTO QUE PASSA 001 a 018
1
Começa
o ano litúrgico e o intróito da Missa propõe-nos uma consideração intimamente
relacionada com o princípio da nossa vida cristã: a vocação que recebemos. Vias
tuas, Domine, demonstra mihi et semitas tuas edoce me, mostra-me Senhor os teus
caminhos e ensina-me as tuas veredas. Pedimos ao Senhor que no guie, que nos
deixe ver os seus passos, para que possamos aspirar à plenitude dos seus
mandamentos que é a caridade.
Julgo
que vós, tal como eu, ao pensar nas circunstâncias que acompanharam a vossa
decisão de vos esforçardes por viver integralmente a fé, dareis muitas graças
ao Senhor e tereis a convicção sincera - sem falsas humildades - de que não há
mérito algum da vossa parte. Geralmente, aprendemos a invocar Deus desde a
infância, dos lábios de pais cristãos. Mais adiante, professores, companheiros
e simples conhecidos ajudaram-nos de muitas maneiras a não perder de vista
Jesus Cristo.
Um
dia (não quero generalizar; abre o coração ao Senhor e conta-lhe tu a história)
talvez um amigo, um cristão normal e corrente como tu, te tenha feito descobrir
um panorama profundo e novo e ao mesmo tempo tão antigo como o Evangelho.
Sugeriu-te a possibilidade de te empenhares seriamente em seguir Cristo, em ser
apóstolo de apóstolos. Talvez tenhas perdido então a tranquilidade e não a
terás recuperado, convertida em paz, até que, livremente, "porque muito
bem te apeteceu" - que é a razão mais sobrenatural - respondeste a Deus
que sim. E veio a alegria, vigorosa, constante, que só desaparece quando te
afastas d'Ele.
Não
me agrada falar de escolhidos nem de privilegiados. Mas é Cristo quem fala
disso, quem escolhe. É a linguagem da escritura: elegit nos in ipso ante mundi
constitutionem - diz S. Paulo - ut essemus sancti, escolheu-nos antes da
criação do mundo para sermos santos. Eu sei que isto não te enche de orgulho,
nem contribui para que te consideres superior aos outros homens. Essa escolha,
raiz do teu chamamento, deve ser a base da tua humildade. Costuma levantar-se
porventura algum monumento aos pincéis dum grande pintor? Serviram para fazer
obras-primas mas o mérito é do artista. Nós - os cristãos - somos apenas
instrumentos do Criador do mundo, do Redentor de todos os homens.
2
Os Apóstolos, homens
correntes
A
mim, anima-me muito considerar um precedente, narrado passo a passo, nas
páginas do Evangelho: a vocação dos primeiros doze. Vamos meditá-la devagar,
pedindo a essas santas testemunhas do Senhor que saibamos seguir Cristo como
eles o fizeram.
Aqueles
primeiros doze apóstolos - a quem tenho grande devoção e carinho - eram,
segundo os critérios humanos, bem pouca coisa. Quanto à posição social, com
excepção de Mateus - que com certeza ganhava bem a vida e deixou tudo quando
Jesus lhe pediu - eram pescadores; viviam do dia-a-dia, trabalhando até de
noite para poderem alcançar o seu sustento.
Mas
a posição social é o de menos. Não eram cultos, nem sequer muito inteligentes,
pelo menos no que diz respeito às realidades sobrenaturais. Até os exemplos e
as comparações mais simples lhes eram incompreensíveis e pediam ao Mestre:
Domine, edissere nobis parabolam, Senhor, explica-nos a parábola. Quando Jesus,
com uma imagem, alude ao fermento dos fariseus, supõem que os está a recriminar
por não terem comprado pão.
Pobres,
ignorantes. E nem sequer eram simples, humildes. Dentro das suas limitações,
eram ambiciosos. Muitas vezes discutem sobre quem seria o maior, quando -
segundo a sua mentalidade - Cristo instaurasse na terra o reino definitivo de
Israel. Discutem e excitam-se até naquela hora sublime em que Jesus está
prestes a imolar-se pela humanidade, na intimidade do Cenáculo.
Fé?
Pouca. O próprio Jesus Cristo o diz. Viram ressuscitar mortos, curar todo o
tipo de doenças, multiplicar o pão e os peixes, acalmar tempestades, expulsar
demónios. Pois S. Pedro, escolhido como cabeça, é o único que sabe responder
com prontidão: Tu és o Cristo, Filho de Deus vivo. Mas é uma fé que ele
interpreta à sua maneira; por isso atreve-se a enfrentar Jesus Cristo, a fim de
que Ele não se entregue pela redenção dos homens. E Jesus tem de responder-lhe:
Retira-te de mim, Satanás; tu serves-me de escândalo, porque não tens a
sabedoria das coisas de Deus mas das coisas dos homens. Pedro raciocinava
humanamente, comenta S. João Crisóstomo, e concluía que tudo aquilo (a Paixão e
a Morte) era indigno de Cristo, reprovável. Por isso Jesus repreende-o e
diz-lhe: não, sofrer não é coisa indigna de Mim; tu pensas assim porque
raciocinas com ideias carnais, humanas.
Em
que sobressaem então aqueles homens de pouca fé? Talvez no amor a Cristo? Sem
dúvida que O amavam, pelo menos de palavra. Chegam até a deixar-se arrebatar
pelo entusiasmo: Vamos nós também e morramos com Ele. Mas à hora da verdade,
todos hão-de fugir, excepto João, que O amava com obras e de verdade. Só este
adolescente, o mais jovem dos Apóstolos, permanece junto da cruz. Os outros não
sentiam esse amor tão forte como a morte.
Eram
estes os discípulos escolhidos pelo Senhor; assim os escolhe Cristo; assim se
comportavam antes de que, cheios do Espírito Santo, se tornassem colunas da
Igreja. São homens correntes, com defeitos, com debilidades, com palavras
maiores do que as suas obras. E, contudo, Jesus chama-os para fazer deles
pescadores de homens, corredentores, administradores da graça de Deus.
3
Sucedeu
connosco uma coisa semelhante. Sem grande dificuldade, poderíamos encontrar na
nossa família, entre os nossos amigos e companheiros - para não me referir já
ao imenso panorama do mundo - tantas pessoas mais dignas do que nós de receber
o chamamento de Cristo. Mais simples, mais sábias, mais influentes, mais
importantes, mais gratas, mais generosas...
Eu,
ao pensar nisto, fico envergonhado. Mas compreendo também que a nossa lógica
humana não serve para explicar as realidades da graça. Deus costuma procurar
instrumentos fracos para que se manifeste com evidente clareza que a obra é
sua. O próprio S. Paulo evoca com estremecimento a sua vocação; e por último,
depois de todos, foi também visto por mim, como por um aborto. Porque eu sou o
mínimo dos apóstolos, que não sou digno de ser chamado apóstolo, porque
persegui a Igreja de Deus. Assim escreve Paulo de Tarso, homem de uma
personalidade e de um vigor que a história não fez mais do que engrandecer.
Fomos
chamados sem mérito algum da nossa parte, dizia-vos. Realmente, na base da
nossa vocação está o conhecimento da nossa miséria, a consciência de que as
luzes que iluminam a alma - a fé - o amor com que amamos - a caridade - e o
desejo que nos mantém - a esperança - são dons gratuitos de Deus. Por isso, não
crescer em humildade significa perder de vista o objectivo da escolha divina:
ut essemus sancti, a santidade pessoal.
Agora,
tomando como ponto de partida essa humildade, podemos compreender toda a
maravilha da chamada divina. A mão de Cristo colheu-nos num trigal: o semeador
aperta na sua mão chagada o punhado de trigo; o sangue de Cristo banha a
semente, empapa-a. Depois, o Senhor lança ao ar esse trigo, para que, morrendo,
seja vida e, afundando-se na terra, seja capaz de multiplicar-se em espigas de
oiro.
4
É hora de despertar
A
Epístola da Missa recorda-nos que temos de assumir esta responsabilidade de
apóstolos com novo espírito, com ânimo, despertos. Porque já é hora de nos
levantarmos do sono. Porquanto agora está mais perto a nossa salvação do que
quando abraçámos a fé. A noite está quase passada e o dia aproxima-se.
Deixemos, pois, as obras das trevas e revistamo-nos das armas da luz.
Dir-me-eis que isso não é fácil, e não vos faltará razão. Os inimigos do homem,
que são os inimigos da santidade, procuram impedir essa vida nova, que é
revestirmo-nos com o espírito de Cristo. Não conheço melhor enumeração dos
obstáculos à fidelidade cristã do que a que nos dá S. João: concupiscentia
carnis, concupiscentia oculorum et superbia vitae.Tudo o que há no mundo é
concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba de vida.
5
A
concupiscência da carne não é só a tendência desordenada dos sentidos em geral
nem a apetência sexual, que deve ser ordenada, mas que não é má em si mesma,
pois é uma nobre realidade humana santificável. Por isso, nunca falo de
impureza mas de pureza, porque a todos se dirigem as palavras de Cristo: bem-aventurados
os limpos de coração porque verão a Deus. Por vocação divina, alguns terão de
viver essa pureza no matrimónio; outros, pelo contrário, renunciarão aos amores
humanos, para corresponderem única e apaixonadamente ao amor de Deus. Nem uns
nem outros devem ser escravos da sensualidade, mas senhores do seu corpo e do
seu coração para os poderem dar sacrificadamente aos demais.
Ao
tratar da virtude da pureza, costumo acrescentar o qualificativo de santa. A
pureza cristã, a santa pureza, não é o orgulho de sentir-se puro, não
contaminado; é saber que temos os pés de barro, embora a graça de Deus nos
livre dia a dia das ciladas do inimigo. Considero uma deformação do
cristianismo a insistência de algumas pessoas em escrever ou pregar quase
exclusivamente sobre esta matéria, esquecendo outras virtudes que são capitais
para o cristão e, em geral, para a convivência entre os homens.
A
santa pureza não é a única nem a principal virtude cristã; contudo, é
indispensável para perseverar no esforço diário da nossa santificação e sem ela
não é possível dedicar-se ao apostolado. A pureza é consequência do amor com
que entregámos ao Senhor a alma e o corpo, as potências e os sentidos. Não é
uma negação; é uma alegre afirmação.
Dizia
que a concupiscência da carne não se reduz exclusivamente à desordem da
sensualidade; também se traduz no comodismo, na falta de vibração que incita a
procurar o que é mais fácil, o mais agradável, o caminho aparentemente mais
curto, por vezes à custa de ceder na fidelidade a Deus.
Comportar-se
assim seria como abandonar-se ao império duma daquelas leis - a do pecado -
contra as quais nos previne S. Paulo: Eu encontro, pois, esta lei em mim:
quando quero fazer o bem, o mal está junto de mim; porque me deleito na lei de
Deus, segundo o homem interior; mas vejo nos meus membros outra lei que se opõe
à lei do meu espírito e que me faz escravo da lei do pecado, que está nos meus
membros. Infelix ego homo! Infeliz de mim! Quem me livrará deste corpo de
morte?. Ouvi o que responde o apóstolo: a graça de Deus por Jesus Cristo Nosso
Senhor. Podemos e devemos lutar contra a concupiscência da carne, porque, se
formos humildes, sempre nos será concedida a graça do Senhor.
6
O
outro inimigo, escreve S. João, é a concupiscência dos olhos, uma avareza de
fundo que nos leva a valorizar apenas o que se pode tocar. Os olhos ficam como
que pegados às coisas terrenas e, por isso mesmo, não sabem descobrir as
realidades sobrenaturais. Podemos, portanto, socorrer-nos desta expressão da
Sagrada Escritura para nos referirmos à avareza dos bens materiais e, além
disso, àquela deformação que nos leva a observar o que nos rodeia - os outros,
as circunstâncias da nossa vida e do nosso tempo - só com visão humana.
Os
olhos da alma embotam-se; a razão crê-se auto-suficiente para compreender todas
as coisas, prescindindo de Deus. É uma tentação subtil, que se apoia na
dignidade da inteligência, da inteligência que o nosso Pai, Deus, deu ao homem
para que O conheça e O ame livremente. Arrastada por essa tentação, a
inteligência humana considera-se o centro do universo, entusiasma-se de novo
com a falsa promessa da serpente, sereis como deuses, e, enchendo-se de amor
por si mesma, volta as costas ao amor de Deus.
Deste
modo, a nossa existência pode entregar-se sem condições nas mãos do terceiro
inimigo, a superbia vitae. Não se trata simplesmente dos pensamentos efémeros
de vaidade ou de amor próprio; é uma presunção generalizada. Não nos enganemos,
porque este é o pior dos males, a raiz de todos os extravios. A luta contra a
soberba há-de ser constante, pois não se disse já, dum modo tão gráfico, que
essa paixão só morre um dia depois da morte da pessoa? É a altivez do fariseu,
a quem Deus se mostra renitente em justificar por encontrar nele uma barreira
de auto-suficiência. É a arrogância que conduz a desprezar os outros homens, a
dominá-los, a maltratá-los, porque, onde houver soberba aí haverá também ofensa
e desonra.
7
A misericórdia de Deus
Começa
hoje o tempo do Advento e é bom que tenhamos considerado as insídias destes
inimigos da alma: a desordem da sensualidade e a leviandade; o desatino da
razão que se opõe ao Senhor; a presunção altaneira, esterilizadora do amor a
Deus e às criaturas.
Todas
estas disposições de ânimo são obstáculos certos e o seu poder perturbador é
grande. Por isso a liturgia faz-nos implorar a misericórdia divina: a ti elevo
a minha alma, Senhor, meu Deus. E em ti confio; não seja eu confundido! Não
riam de mim os meus inimigos, rezamos no intróito. E na antífona do ofertório
iremos repetir: espero em ti,; que eu não seja confundido!
Agora
que se aproxima o tempo da salvação, dá gosto ouvir dos lábios de S. Paulo:
depois de Deus, Nosso Salvador, ter manifestado a sua benignidade e o seu amor
para com os homens, libertou-nos, não pelas obras de justiça que tivéssemos
feito, mas por sua misericórdia.
Se
lerdes as Santas Escrituras, descobrireis constantemente a presença da
misericórdia de Deus: enche a terra, estende-se a todos os seus filhos, super
omnem carnem; cerca-nos, antecede-nos, multiplica-se para nos ajudar e foi
continuamente confirmada. Deus tem-nos presente na sua misericórdia, ao
ocupar-se de nós como Pai amoroso. É uma misericórdia suave, agradável, como a
nuvem que se desfaz em chuva no tempo da seca.
Jesus
Cristo resume e compendia toda a história da misericórdia divina:
Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. E, noutra
ocasião: Sede pois misericordiosos como também vosso Pai é misericordioso.
Ficaram também muito gravadas em nós, entre muitas outras cenas do Evangelho, a
clemência com a mulher adúltera, a parábola do filho pródigo, a da ovelha
perdida, a do devedor perdoado, a ressurreição do filho da viúva de Naim.
Quantas razões de justiça para explicar este grande prodígio! Era o filho único
daquela pobre viúva; era ele quem dava sentido à sua vida; só ele poderia
ajudá-la na sua velhice! Mas Cristo não faz o milagre por justiça; fá-lo por
compaixão, porque interiormente se comove perante a dor humana.
Que
segurança deve produzir-nos a comiseração do Senhor! Se ele clamar por mim,
ouvi-lo-ei, porque sou misericordioso. É um convite, uma promessa que não
deixará de cumprir. Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da graça a fim
de alcançar misericórdia e o auxílio da graça, no tempo oportuno. Os inimigos
da nossa santificação nada poderão, porque essa misericórdia de Deus nos
defende. E se caímos por nossa culpa e da nossa fraqueza, o Senhor socorre-nos
e levanta-nos. Tinhas aprendido a afastar a negligência, a afastar de ti a
arrogância, a adquirir piedade, a não ser prisioneiro das questões mundanas, a
não preferir o caduco ao eterno. Mas, como a debilidade humana não pode manter
o passo decidido num mundo resvaladiço, o bom médico indicou-te também os
remédios contra a desorientação e o juiz misericordioso não te negou a
esperança do perdão.
8
Correspondência humana
É
neste clima da misericórdia de Deus que se desenvolve a existência do cristão.
Este é o âmbito do seu esforço por se comportar como filho do Pai. E quais são
os principais meios para conseguirmos que a vocação se mantenha firme? Vou
dizer-te hoje dois, que são dois eixos vivos da conduta cristã: a vida interior
e a formação doutrinal, o conhecimento profundo da nossa fé.
Vida
interior, em primeiro lugar. Há ainda tão pouca gente que entenda isto! Ao
ouvir falar de vida interior, pensa-se logo na obscuridade do templo, quando
não no ambiente abafado de algumas sacristias. Estou há mais de um quarto de
século a dizer que não se trata disso. Eu falo da vida interior de cristãos
normais e correntes, que habitualmente se encontram em plena rua, ao ar livre;
e que na rua, no trabalho, na família e nos momentos de diversão estão unidos a
Jesus todo o dia. E o que é isto senão vida de oração contínua? Não é verdade
que compreendeste a necessidade de ser alma de oração, numa intimidade com Deus
que te leva a endeusar-te? Esta é a fé cristã e assim o compreenderam sempre as
almas de oração. Torna-se Deus aquele homem, escreve Clemente de Alexandria,
porque quer o mesmo que Deus quer.
A
princípio custará. É preciso esforçarmo-nos por nos dirigir ao Senhor, por lhe
agradecermos a sua piedade paternal e concreta para connosco. A pouco e pouco o
amor de Deus torna-se palpável - embora isto não seja coisa de sentimentos -
como uma estocada na alma. É Cristo que nos persegue amorosamente: Eis que
estou à porta e chamo. Como anda a tua vida de oração? Não sentes às vezes,
durante o dia, desejos de falar mais devagar com Ele? Não Lhe dizes: logo vou
contar-te isto e aquilo; logo vou conversar sobre isso contigo?
Nos
momentos dedicados expressamente a esse colóquio com o Senhor o coração
expande-se, a vontade fortalece-se, a inteligência - ajudada pela graça - enche
a realidade humana com a realidade sobrenatural. E, como fruto, sairão sempre
propósitos claros, práticos, de melhorares a tua conduta, de tratares
delicadamente, com caridade, todos os homens, de te empenhares a fundo - com o
empenho dos bons desportistas - nesta luta cristã de amor e de paz.
A
oração torna-se contínua como o bater do coração, como as pulsações. Sem essa
presença de Deus não há vida contemplativa. E sem vida contemplativa de pouco
vale trabalhar por Cristo, porque em vão se esforçam os que constroem se Deus
não sustenta a casa.
9
O sal da mortificação
Para
se santificar, o cristão corrente - que não é um religioso e não se afasta do
mundo, porque o mundo é o lugar do seu encontro com Cristo - não precisa de
hábito externo nem sinais distintivos. Os seus sinais são internos: a constante
presença de Deus e o espírito de mortificação. Na realidade, são uma só coisa,
porque a mortificação é apenas a oração dos sentidos.
A
vocação cristã é vocação de sacrifício, de penitência, de expiação. Temos de
reparar pelos nossos pecados (já voltámos a cara tantas vezes para não vermos
Deus!) e por todos os pecados dos homens. Precisamos de seguir de perto os
passos de Cristo: trazendo sempre no nosso corpo a mortificação, a abnegação de
Cristo, o seu abatimento na Cruz, para que também a vida de Jesus se manifeste
nos nossos corpos. O nosso caminho é de imolação e, nesta renúncia,
encontraremos o gaudium cum pace, a alegria e a paz.
Não
contemplamos o mundo com um olhar triste. Talvez involuntariamente, prestaram
um fraco serviço à catequese os biógrafos de santos que queriam encontrar a
todo o custo coisas extraordinárias nos servos de Deus, logo desde os primeiros
vagidos. E contam de alguns deles que na sua infância não choravam, não mamavam
às sextas-feiras por mortificação... Tu e eu nascemos a chorar, como Deus
manda; e sugámos o peito da nossa mãe sem nos preocuparmos com Quaresmas nem
Têmporas...
Agora,
com o auxílio de Deus, aprendemos a descobrir ao longo dos dias (aparentemente
sempre iguais) spatium verae penitentiae, tempo de verdadeira penitência; e
nesses instantes fazemos propósitos de emendatio vitae, de melhorar a nossa
vida. Este é o caminho para nos predispormos à graça e às inspirações do
Espírito Santo na alma. E com essa graça - repito - vem o gaudium cum pace, a
alegria, a paz e a perseverança no caminho.
A
mortificação é o sal da nossa vida. E a melhor mortificação é a que combate -
em pequenos pormenores, durante todo o dia - a concupiscência da carne, a
concupiscência dos olhos e a soberba de vida. Mortificações que não mortifiquem
os outros, que nos tornem mais delicados, mais compreensivos, mais abertos a
todos. Tu não podes ser mortificado se és susceptível, se só vives os teus
egoísmos, se dominas os outros, se não sabes privar-te do supérfluo e, por
vezes, até do necessário e, enfim, se te entristeces quando as coisas não
correm como tu tinhas previsto. Serás, pelo contrário, mortificado se souberes
fazer-te tudo para todos para salvar a todos.
10
A fé e a inteligência
A
vida de oração e de penitência e a consideração da nossa filiação divina transformam-nos
em cristãos profundamente piedosos, como meninos pequenos diante de Deus. A
piedade é a virtude dos filhos e, para que o filho possa entregar-se nos braços
do seu pai, há-de ser e sentir-se pequeno, necessitado. Tenho meditado com
frequência na vida de infância espiritual, que não se contrapõe à fortaleza,
porque requer uma vontade rija, uma maturidade bem temperada, um carácter firme
e aberto.
Piedosos,
portanto, como meninos; mas não ignorantes, porque cada um há-de esforçar-se,
na medida das suas possibilidades, pelo estudo sério e científico da fé. E o
que é isto, senão teologia? Piedade de meninos, sim, mas doutrina segura de
teólogos.
O
afã por adquirir esta ciência teológica - a boa e firme doutrina cristã -
deve-se, em primeiro lugar, ao desejo de conhecer e amar a Deus.
Simultaneamente é consequência da preocupação geral da alma fiel por alcançar a
mais profunda compreensão deste mundo, que é uma realização do Criador. Com
periódica monotonia, há pessoas que procuram ressuscitar uma suposta
incompatibilidade entre a fé e a ciência, entre a inteligência humana e a
Revelação divina. Tal incompatibilidade só pode surgir, e só na aparência,
quando não se entendem os termos reais do problema.
Se
o mundo saiu das mãos de Deus, se Ele criou o homem à sua imagem e semelhança e
lhe deu uma chispa da sua luz, o trabalho da inteligência deve ser - embora
seja um trabalho duro - desentranhar o sentido divino que naturalmente já têm
todas as coisas. E, com a luz da fé, compreendemos também o seu sentido
sobrenatural, que resulta da nossa elevação à ordem da graça. Não podemos
admitir o medo da ciência, visto que qualquer trabalho, se é verdadeiramente
científico, tende para a verdade. E Cristo disse: Ego sum veritas. Eu sou a
verdade.
O
cristão precisa de ter fome de saber. Desde o estudo dos saberes mais
abstractos até à habilidade do artesão, tudo pode e deve conduzir a Deus.
Efectivamente não há tarefa humana que não seja santificável, motivo para a
nossa própria santificação e oportunidade para colaborar com Deus na
santificação dos que nos rodeiam. A luz dos seguidores de Jesus Cristo não deve
estar no fundo do vale, mas no cume da montanha para que vejam as vossas boas
obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus.
Trabalhar
assim é oração. Estudar assim é oração. Investigar assim é oração. Nunca saímos
afinal do mesmo: tudo é oração, tudo pode e deve levar-nos a Deus, alimentar a
nossa intimidade contínua com Ele, da manhã à noite. Todo o trabalho honrado
pode ser oração e todo o trabalho que é oração é apostolado. Deste modo, a alma
fortalece-se numa unidade de vida simples e forte.
11
A esperança do Advento
Nada
mais queria dizer-vos neste primeiro domingo do Advento, quando já começamos a
contar os dias que nos aproximam do Natal do Salvador. Vimos a realidade da
vocação cristã, ou seja, como o Senhor confiou em nós para levar as almas à
santidade, para as aproximar d'Ele, para as unir à Igreja e estender o reino de
Deus a todos os corações. O Senhor quer-nos entregues, fiéis, dedicados, com
amor. Quer-nos santos, muito seus.
Por
um lado, a soberba, a sensualidade e o tédio, o egoísmo; por outro, o amor, a
entrega, a misericórdia, a humildade, o sacrifício, a alegria. Tens de
escolher. Foste chamado a uma vida de fé, esperança e caridade. Não podes
cruzar os braços e refugiar-te num medíocre isolamento.
Em
certa ocasião, vi uma águia encerrada numa jaula de ferro. Estava suja e meia
depenada. Tinha entre as garras um pedaço de carne podre. Pensei então no que
seria de mim se abandonasse a vocação recebida de Deus. Tive pena daquele
animal solitário, enjaulado, que tinha nascido para subir muito alto e olhar de
frente o Sol. Podemos ascender até às humildes alturas do amor de Deus, do
serviço a todos os homens. Para isso, porém, é preciso que não haja na alma
recantos escondidos, onde não possa entrar o sol de Jesus Cristo. Temos de
deitar fora todas as preocupações que nos afastem d'Ele; e assim terás Cristo
na tua inteligência, Cristo nos teus lábios, Cristo no teu coração, Cristo nas
tuas obras. Toda a vida - o coração e as obras, a inteligência e as palavras -
cheia de Deus.
Olhai
e levantai as vossas cabeças porque está próxima a vossa redenção, lemos no
Evangelho. O tempo do Advento é o tempo da esperança. Todo o panorama da nossa
vocação cristã, a unidade de vida que tem como nervo a presença de Deus, Nosso
Pai, pode e deve ser uma realidade diária.
Invoca
comigo Nossa Senhora, e imagina como passaria Ela aqueles meses à espera do
Filho que havia de nascer. E Nossa Senhora, Santa Maria, fará com que sejas
alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo.
12
Lux
fulgebit hodie super nos, quia natus est nobis Dominus - Hoje brilhará sobre
nós a luz, porque nos nasceu o Senhor! Eis a grande novidade que comove os
cristãos e que, através deles, se dirige à Humanidade inteira. Deus está aqui!
Esta verdade deve encher as nossas vidas. Cada Natal deve ser para nós um novo
encontro especial com Deus, deixando que a sua luz e a sua graça entrem até ao
fundo da nossa alma.
Detemo-nos
diante do Menino, de Maria e de José; estamos contemplando o Filho de Deus
revestido da nossa carne... Vem-me à lembrança a viagem que fiz a Loreto, em 15
de Agosto de 1951, para visitar a Santa Casa por motivo muito íntimo. Celebrei
lá a Santa Missa. Queria dizê-la com recolhimento mas não tinha contado com o
fervor da multidão. Não tinha calculado que nesse grande dia de festa muitas
pessoas dos arredores viriam a Loreto - com a bendita fé dessa terra e com o
amor que têm à Madona. E a sua piedade, considerando as coisas - como diria? -
só do ponto de vista das leis rituais da Igreja, levava-as a manifestações não
muito correctas. E assim, enquanto eu beijava o altar, nos momentos prescritos
pelas rubricas da Missa, três ou quatro camponeses beijavam-no ao mesmo tempo.
Distraía-me mas estava emocionado. E também me atraía a atenção a lembrança de
que naquela Santa Casa - que a tradição assegura ser o lugar onde viveram
Jesus, Maria e José - na mesa do altar tinham gravado estas palavras: Hic Verbum
caro factum est. Aqui, numa casa construída pelas mãos dos homens, num pedaço
de terra em que vivemos, habitou Deus!
13
Jesus Cristo, perfeito
Deus e perfeito homem
O
Filho de Deus fez-se carne e é perfectus Deus, perfectus homo, perfeito Deus e
perfeito homem! Neste mistério há qualquer coisa que deveria emocionar os
cristãos. Estava e estou comovido; gostava de voltar a Loreto... Vou lá em
desejo para reviver os anos da infância de Jesus, repetindo e considerando: Hic
Verbum caro factum est!
Jesus
Christus, Deus Homo, Jesus Cristo, Deus-Homem! Eis uma magnalia Dei, uma das
maravilhas de Deus em que temos de meditar e que temos de agradecer a este
Senhor que veio trazer a paz na terra aos homens de boa vontade, a todos os
homens que querem unir a sua vontade à Vontade boa de Deus. Não só aos ricos,
nem só aos pobres! A todos os homens, a todos os irmãos! Pois irmãos somos
todos em Jesus; filhos de Deus, irmãos de Cristo. Sua Mãe é nossa Mãe.
Na
terra há apenas uma raça: a raça dos filhos de Deus. Todos devemos falar a
mesma língua: a que o nosso Pai que está nos Céus nos ensina; a língua dos
diálogos de Jesus com seu Pai; a língua que se fala com o coração e com a
cabeça; a que estais a usar agora na vossa oração. É a língua das almas
contemplativas, dos homens espirituais por se terem dado conta da sua filiação
divina; uma língua que se manifesta em mil moções da vontade, em luzes vivas do
entendimento, em afectos do coração, em decisões de rectidão de vida, de
bem-fazer, de alegria, de paz.
É
preciso ver o Menino, nosso Amor, no seu berço. Olhar para Ele, sabendo que
estamos perante um mistério. Precisamos de aceitar o mistério pela fé,
aprofundar o seu conteúdo. Para isso necessitamos das disposições humildes da
alma cristã: não pretender reduzir a grandeza de Deus aos nossos pobres
conceitos, às nossas explicações humanas, mas compreender que esse mistério, na
sua obscuridade, é uma luz que guia a vida dos homens.
Vemos
- diz S. João Crisóstomo - que Jesus saiu de nós, da nossa substância humana, e
que nasceu de Mãe virgem; mas não entendemos como pode ter-se realizado esse
prodígio. Não nos cansemos, tentando descobri-lo; aceitemos antes com humildade
o que Deus nos revelou sem esquadrinharmos com curiosidade o que Deus nos
escondeu. Assim, com este acatamento, saberemos compreender e amar; e o
mistério será para nós um esplêndido ensinamento, mais convincente do que
qualquer outro raciocínio humano.
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Sentido divino do caminhar
terreno de Jesus
Ao
falar diante do presépio sempre procurei ver Cristo Nosso Senhor desta maneira,
envolto em paninhos sobre a palha da manjedoura, e, enquanto ainda menino e não
diz nada, vê-Lo já como doutor, como mestre. Preciso de considerá-Lo assim,
porque tenho de aprender d'Ele. E para aprender d'Ele é necessário conhecer a
sua vida: ler o Santo Evangelho, meditar no sentido divino do caminho terreno
de Jesus.
Na
verdade, temos de reproduzir na nossa, a vida de Cristo, conhecendo Cristo à
força de ler a Sagrada Escritura e de a meditar, à força de fazer oração, como
agora estamos fazendo diante do presépio. É preciso entender as lições que nos
dá Jesus já desde menino, desde recém-nascido, desde que os seus olhos se
abriram para esta bendita terra dos homens.
Jesus,
crescendo e vivendo como um de nós, revela-nos que a existência humana, a vida
corrente e ordinária, tem um sentido divino. Por muito que tenhamos pensado
nestas verdades, devemos encher-nos sempre de admiração ao pensar nos trinta
anos de obscuridade que constituem a maior parte da passagem de Jesus entre os
seus irmãos, os homens. Anos de sombra, mas, para nós, claros como a luz do
Sol. Mais: resplendor que ilumina os nossos dias e lhes dá uma autêntica
projecção, pois somos cristãos correntes, com uma vida vulgar, igual à de
tantos milhões de pessoas nos mais diversos lugares do Mundo.
Assim
viveu Jesus seis lustros: era filius fabris, o filho do carpinteiro. Virão
depois os três anos de vida pública, com o clamor das multidões. E as pessoas
surpreendem-se: Quem é este? Onde aprendeu tantas coisas? Pois a sua vida tinha
sido a vida comum do povo da sua terra. Era o faber, filius Mariae, o
carpinteiro, filho de Maria. E era Deus; e estava a realizar a redenção do
género humano; e estava a atrair a si todas as coisas.
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Como
em relação a qualquer outro aspecto da sua vida, nunca deveríamos contemplar
esses anos ocultos de Jesus sem nos sentirmos afectados, sem os reconhecermos
como aquilo que são: chamamentos que o Senhor nos dirige para sairmos do nosso
egoísmo, do nosso comodismo. O Senhor conhece as nossas limitações, o nosso
individualismo e a nossa ambição: a dificuldade em nos conhecermos a nós mesmos
e de nos entregarmos aos outros. Sabe o que é não encontrar amor e verificar
que mesmo aqueles que dizem segui-Lo o fazem só a meias. Recordai as cenas
tremendas que os evangelistas nos descrevem e em que vemos os apóstolos ainda
cheios de aspirações temporais e de projectos exclusivamente humanos. Mas Jesus
escolheu-os, mantém-nos juntos de Si e confia-lhes a missão que recebeu do Pai.
Também
a nós nos chama e nos pergunta como a Tiago e João: Potestis bibere calicem
quem ego bibiturus sum?; estais dispostos a beber o cálice (este cálice da
completa entrega ao cumprimento da vontade do Pai) que eu vou beber?
"Possumus"!. Sim, estamos dispostos! - é a resposta de João e
Tiago... Vós e eu, estamos dispostos seriamente a cumprir, em tudo, a vontade
do nosso Pai, Deus? Demos ao Senhor o nosso coração inteiro ou continuamos
apegados a nós mesmos, aos nossos interesses, à nossa comodidade, ao nosso amor-próprio?
Há em nós alguma coisa que não corresponda à nossa condição de cristãos e que
nos impeça de nos purificarmos? Hoje apresenta-se-nos a ocasião de rectificar.
É
necessário que nos convençamos de que Jesus nos dirige pessoalmente estas perguntas.
É Ele que as faz, não eu. Eu não me atreveria a fazê-las a mim próprio. Eu vou
continuando a minha oração em voz alta e vós, cada um de vós, por dentro, está
confessando ao Senhor: Senhor, que pouco valho! Que cobarde tenho sido tantas
vezes! Quantos erros! Nesta ocasião e naquela... nisto e naquilo... E podemos
exclamar também: ainda bem, Senhor, que me tens sustentado com a tua mão,
porque eu sinto-me capaz de todas as infâmias... Não me largues, não me deixes;
trata-me sempre como um menino. Que eu seja forte, valente, íntegro. Mas
ajuda-me, como a uma criatura inexperiente. Leva-me pela tua mão, Senhor, e faz
com que tua Mãe esteja também a meu lado e me proteja. E assim, possumus!,
poderemos, seremos capazes de ter-Te por modelo!
Não
é presunção afirmar possumus! Jesus Cristo ensina-nos este caminho divino e
pede-nos que o apreendamos porque Ele o tornou humano e acessível à nossa
fraqueza. Por isso se rebaixou tanto: Este foi o motivo porque se abateu,
tomando a forma de servo aquele Senhor que, como Deus, era igual ao Pai; mas
abateu-se na majestade e na potência; não na bondade e na misericórdia.
A
bondade de Deus quer tornar-nos fácil o caminho. Não rejeitemos o convite de
Jesus; não Lhe digamos que não; não nos façamos surdos ao seu chamamento; pois
não existem desculpas, não temos nenhum motivo para continuar a pensar que não
podemos. Ele ensinou-nos com o seu exemplo. Portanto, peço-vos encarecidamente,
meus irmãos, que não permitais que se vos tenha mostrado em vão exemplo tão
precioso, mas que vos conformeis com Ele e vos renoveis no espírito da vossa
alma.
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Passou pela terra fazendo
o bem
Vedes
como é necessário conhecer Jesus, observar amorosamente a sua vida? Muitas
vezes fui à procura da definição da biografia de Jesus na Sagrada Escritura.
Encontrei-a lendo aquela que o Espírito Santo faz em duas palavras: pertransiit
benefaciendo. Todos os dias de Jesus Cristo na terra, desde o seu nascimento
até à morte, pertransiit benefaciendo, foram preenchidos fazendo o bem. Como,
noutro lugar, a Escritura também diz: bene omnia fecit, fez tudo bem, terminou
bem todas as coisas, não fez senão o bem.
E
tu? E eu? Lancemos um olhar para ver se temos alguma coisa que emendar. Eu,
sim, encontro em mim muito que fazer. Como me vejo incapaz, só por mim, de
fazer o bem e, como o próprio Jesus nos disse que sem Ele nada podemos, vamos
tu e eu implorar ao Senhor a sua assistência, por meio de sua Mãe, neste
colóquio íntimo, próprio das almas que amam a Deus. Não acrescento mais nada,
porque é cada um de vós que tem de falar, segundo a sua particular necessidade.
Por dentro, e sem ruído de palavras, neste mesmo momento em que vos dou estes
conselhos, aplico esta doutrina à minha própria miséria.
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Pertransiit
benefaciendo... Que fez Jesus para derramar tanto bem, e só bem, por onde quer
que passou? Os Santos Evangelhos transmitiram-nos outra biografia de Jesus,
resumida em três palavras latinas, que nos dá a resposta: erat subditus illis,
obedecia. Hoje, que o ambiente está cheio de desobediência, de murmuração, de
desunião, havemos de estimar especialmente a obediência.
Sou
muito amigo da liberdade e precisamente por isso amo tanto essa virtude cristã.
Devemos sentir-nos filhos de Deus e viver com o empenho de cumprir a vontade do
nosso Pai, de realizar tudo segundo o querer de Deus, porque nos dá na gana,
que é a razão mais sobrenatural.
O
espírito do Opus Dei, que tenho procurado praticar e ensinar desde há mais de
trinta e cinco anos, fez-me compreender e amar a liberdade pessoal. Quando Deus
Nosso Senhor concede a sua graça aos homens, quando os chama com uma vocação
específica, é como se lhes estendesse a mão, uma mão paternal, cheia de
fortaleza, repleta sobretudo de amor, porque nos busca um a um, como filhas e
filhos seus, e porque conhece a nossa debilidade. O Senhor espera que façamos o
esforço de agarrar a sua mão, essa mão que Ele nos estende. Deus pede-nos um
esforço, prova da nossa liberdade. E para conseguirmos isso, temos de ser
humildes, temos de sentir-nos filhos pequenos e amar a bendita obediência com
que respondemos à bendita paternidade de Deus.
Convém
deixar o Senhor meter-se nas nossas vidas e entrar confiadamente sem encontrar
obstáculos nem recantos obscuros. Nós, os homens, tendemos a defender-nos, a
apegar-nos ao nosso egoísmo. Sempre tentamos ser reis, ainda que seja do reino
da nossa miséria. Entendei através desta consideração por que motivo temos
necessidade de recorrer a Jesus: para que Ele nos torne verdadeiramente livres
e, dessa forma, possamos servir a Deus e a todos os homens. Só assim
perceberemos a verdade daquelas palavras de S. Paulo: Agora, porém, livres do
pecado e feitos servos de Deus, tendes por fruto a santificação e por fim a
vida eterna. Porque o salário do pecado é a morte, ao passo que o dom gratuito
de Deus é a vida eterna em Nosso Senhor Jesus Cristo.
Estejamos
precavidos, portanto, visto que a nossa tendência para o egoísmo não morre e a
tentação pode insinuar-se de muitas maneiras. Deus exige que, ao obedecer,
ponhamos em exercício a fé, porque a sua vontade não se manifesta com aparato
ruidoso; às vezes o Senhor sugere o seu querer como que em voz baixa, lá no
fundo da consciência; e é necessário escutar atentamente para distinguir essa
voz e ser-Lhe fiel.
Muitas
vezes fala-nos através doutros homens e pode acontecer que, à vista dos
defeitos dessas pessoas ou pensando que não estão bem informadas ou que talvez
não tenham entendido todos os dados do problema, surja uma espécie de convite a
não obedecermos.
Tudo
isso pode ter um significado divino, porque Deus não nos impõe uma obediência
cega, mas uma obediência inteligente, e temos de sentir a responsabilidade de
ajudar os outros com a luz do nosso entendimento. Mas sejamos sinceros connosco
próprios: examinemos em cada caso se o que nos move é o amor à verdade ou o
egoísmo e o apego ao nosso próprio juízo. Quando as nossas ideias nos separam
dos outros, quando nos levam a quebrar a comunhão, a unidade com os nossos
irmãos, é sinal certo que não estamos a actuar segundo o espírito de Deus.
Não
o esqueçamos: para obedecer, repito, é preciso humildade. Vejamos de novo o
exemplo de Cristo. Jesus obedece, e obedece a José e a Maria. Deus veio à Terra
para obedecer, e para obedecer às criaturas. São duas criaturas perfeitíssimas
- Santa Maria, Nossa Mãe; mais do que Ela só Deus; e aquele varão castíssimo,
José. Mas criaturas. E Jesus, que é Deus, obedecia-lhes! Temos de amar a Deus,
para amar assim a sua vontade, e ter desejos de responder aos chamamentos que
nos dirige através das obrigações da nossa vida corrente: nos deveres de
estado, na profissão, no trabalho, na família, no convívio social, no nosso
próprio sofrimento e no sofrimento dos outros homens, na amizade, no empenho de
realizar o que é bom e justo...
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Quando
chega o Natal, gosto de contemplar as imagens do Menino Jesus. Essas figuras
que nos mostram o Senhor tão apoucado, recordam-me que Deus nos chama, que o
Omnipotente Se quis apresentar desvalido, quis necessitar dos homens. Do berço
de Belém, Cristo diz-me a mim e diz-te a ti que precisa de nós; reclama de nós
uma vida cristã sem hesitações, uma vida de entrega, de trabalho, de alegria.
Não
conseguiremos jamais o verdadeiro bom humor se não emitarmos deveras Jesus, se
não formos humildes como Ele. Insistirei de novo: vedes onde se oculta a
grandeza de Deus? Num presépio, nuns paninhos, numa gruta. A eficácia redentora
das nossas vidas só se pode dar com humildade, deixando de pensar em nós mesmos
e sentindo a responsabilidade de ajudar os outros.
É
corrente, às vezes até entre almas boas, criar conflitos íntimos, que chegam a
produzir sérias preocupações, mas que carecem de qualquer base objectiva. A sua
origem está na falta de conhecimento próprio, que conduz à soberba: o desejo de
se tornarem o centro da atenção e da estima de todos, a preocupação de não
ficarem mal, de não se resignarem a fazer o bem e desaparecerem, a ânsia da
segurança pessoal... E assim, muitas almas que poderiam gozar de uma paz
extraordinária, que poderiam saborear um imenso júbilo, por orgulho e presunção
tornam-se desgraçadas e infecundas!
Cristo
foi humilde de coração. Ao longo da sua vida, não quis para Si nenhuma coisa
especial, nenhum privilégio. Começa por estar nove meses no seio de sua Mãe,
como qualquer outro homem, com extrema naturalidade. Sabia o Senhor de sobra
que a Humanidade padecia de uma urgente necessidade d'Ele. Tinha, portanto,
fome de vir à terra para salvar todas as almas; mas não precipita o tempo; vem
na Sua hora, como chegam ao mundo os outros homens. Desde a concepção ao nascimento,
ninguém, salvo S. José e Santa Isabel, adverte esta maravilha: Deus veio
habitar entre os homens!
O
Natal também está rodeado de uma simplicidade admirável: o Senhor vem sem
aparato, desconhecido de todos. Na Terra, só Maria e José participam na divina
aventura. Depois, os pastores, avisados pelos Anjos. E mais tarde os sábios do
Oriente. Assim acontece o facto transcendente que une o Céu à Terra, Deus ao
homem!
Como
é possível tanta dureza de coração que cheguemos a acostumar-nos a estes
episódios? Deus humilha-Se para que possamos aproximar-nos d'Ele, para que
possamos corresponder ao seu Amor com o nosso amor, para que a nossa liberdade
se renda, não só ante o espectáculo do seu poder, como também ante a maravilha
da sua humildade.
Grandeza
de um Menino que é Deus! O Seu Pai é o Deus que fez os Céus e a Terra, e Ele
ali está, num presépio, quia non erat eis locus in diversorio, porque não havia
outro sítio na Terra para o dono de toda a Criação!
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