13/07/2014

Tratado da lei 52

Questão 100: Dos preceitos morais da lei antiga.

Art. 8 — Se os preceitos do decálogo admitem dispensa.

(Supra, q. 94, a. 5, ad 2.; IIª-IIae., q. 104, a. 5, ad 2; Sent., dist. XLVII, a.4; III, dist. XXXVII, a. 4; De Malo, q. 3, a. 1, ad 17; q, 15, a. 1, ad 8).

O oitavo discute-se assim. — Parece que os preceitos do decálogo admitem dispensa.

1. — Pois, os preceitos do decálogo são de direito natural. Ora, o justo natural admite, em certos casos, excepções e é mutável, assim como a natureza humana, no dizer do Filósofo. Ora, a deficiência da lei, em certos casos particulares, é a razão da dispensa, como já se disse (q. 96, a. 6; q. 97, a. 4). Logo, os preceitos do decálogo admitem dispensa.

2. Demais. — O homem está para a lei humana como Deus para a lei divina. Ora, o homem pode ser dispensado do preceito legal, que ele mesmo estabeleceu. Logo, tendo sido os preceitos do decálogo instituídos por Deus, resulta que Deus pode dispensar neles. Ora, os prelados desempenham, na terra, o papel de Deus, conforme o Apóstolo (2 Cor 2, 10): pois eu também, se dei alguma coisa, foi por amor de vós em pessoa de Cristo. Logo, também os prelados podem dispensar nos preceitos do decálogo.

3. Demais. — Entre os preceitos do decálogo está incluída a proibição do homicídio. Ora, os homens podem dispensar neste preceito; assim quando, segundo os preceitos da lei humana, alguns, como os malfeitores ou os inimigos da pátria, são mortos licitamente. Logo, os preceitos do decálogo admitem dispensa.

4. Demais. — A observância do Sábado está contida entre os preceitos do decálogo. Ora, houve dispensa neste preceito, conforme a Escritura (1 Mc 2, 4): Tomaram naquele dia esta resolução dizendo: Todo homem, quem quer que ele seja, que nos atacar em dia de Sábado, não façamos dificuldade de pelejar contra ele. Logo, os preceitos do decálogo admitem dispensa.

Mas, em contrário, na Escritura (Is 24, 5), alguns são censurados porque mudaram o direito, romperam a aliança sempiterna; e isto se deve entender sobretudo dos preceitos do decálogo. Logo, estes não podem sofrer mudança por dispensa.

Como já se disse (q. 96, a. 6; q. 97, a. 4), deve-se dispensar nos preceitos, quando ocorrer algum caso particular, em que, observadas as palavras da lei, contrariar-se-ia a intenção do legislador. Ora, a intenção de qualquer legislador ordena-se, primeiro e principalmente, para o bem comum; e segundo, para a ordem da justiça e da virtude, pela qual se conserva o bem comum e a ele se chega. Portanto, se estabelecerem preceitos conducentes à própria conservação do bem comum, ou, à própria ordem da justiça e da virtude, tais preceitos exprimem a intenção do legislador, e portanto não admitem dispensa. Por exemplo, se uma comunidade estabelecesse como preceito, que ninguém deve destruir a república, nem entregar a cidade aos inimigos; ou que ninguém deve fazer nada de injusto ou de mal, tais preceitos não admitiriam dispensa. Mas se estabelecesse outros, ordenados para estes, que lhes determinassem alguns modos especiais, estes poderiam admitir dispensa, quando a omissão deles, em certos casos particulares, não prejudicasse os primeiros, expressivos da intenção do legislador. Assim se, para a conservação da república, uma cidade estabelecesse que alguns, de cada aldeia, velassem pela guarda da outra cidade sitiada, poderiam alguns ser disso dispensados, em vista de uma utilidade maior.

Ora, os preceitos do decálogo exprimem a própria intenção de Deus legislador. Pois, os da primeira tábua, que ordenam para ele, contêm a própria ordem para o bem comum e final, que é Deus. E os da segunda, a ordem da justiça a ser observada entre os homens, de modo que, p. ex., a ninguém se faça o que se lhe não deve fazer, e a cada um seja pago o devido; pois, a esta luz é que devem ser entendidos os preceitos do decálogo. Logo, esses preceitos são absolutamente indispensáveis.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — O Filósofo não se refere ao justo natural, que contém a própria ordem da justiça; pois, a observância da justiça não admite nenhuma excepção. Mas refere-se a determinados modos de observá-la, que sofrem excepção, em alguns casos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz o Apóstolo (2 Tm 2, 13), Deus permanece fiel, não pode negar-se a si mesmo. Ora, negar-se-ia a si mesmo, se, sendo a própria justiça, ele próprio lhe eliminasse a ordem. Portanto, Deus não pode dispensar o homem de tender ordenadamente para si, ou de sujeitar-se à ordem da sua justiça, mesmo, em matéria conducente a os homens se ordenarem uns para os outros.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O decálogo proíbe matar outrem, na medida em que esse acto tem natureza de indébito; pois, então, esse preceito exprime a própria essência da justiça. Ora, a lei humana não pode conceder seja lícito matar alguém indevidamente. Não é porém indevido matar os malfeitores ou os inimigos da república. Por isso, tal não contraria ao preceito do decálogo; nem tal morte constitui o homicídio proibido pelo preceito, como diz Agostinho. E semelhantemente, privar do seu a quem devidamente deve ser privado não é o furto nem a rapina proibidos pelo preceito do decálogo. Por isso, quando os filhos de Israel, por preceito de Deus, espoliaram os egípcios, não cometeram furto; pois deviam fazê-lo por sentença divina. — Semelhantemente, quando Abraão consentiu em matar o filho, não consentiu num homicídio, porque devia matá-lo, por mandado de Deus, senhor da vida e da morte. Pois, Ele é quem infligiu a pena de morte a todos os homens, justos e injustos, por causa do pecado do primeiro pai. E o homem que for executor de tal sentença, por autoridade divina, não será homicida, como Deus não o é. — Do mesmo modo ainda, Oséas, tendo tido relação com uma esposa fornicária ou uma mulher adúltera, não cometeu adultério nem fornicou; porque buscou a que era sua por ordem de Deus, autor da instituição do matrimónio. — Assim pois, os referidos preceitos do decálogo, quanto à razão de justiça que contêm, são imutáveis. Mas, são mutáveis no tocante a alguma determinação, quando se aplicam a casos particulares, p. ex., quanto a saber-se se há ou não homicídio, furto ou adultério. E isso só pela autoridade divina, no caso do que só por Deus foi instituído, como o matrimónio e instituições semelhantes; ora, também por autoridade humana, em matéria cometida à jurisdição dos homens; pois, estes governam em nome de Deus, neste ponto, e não em relação a tudo.

RESPOSTA À QUARTA. — A resolução de que se trata foi, antes, interpretação, que dispensa no preceito. Pois, não se considera como violador do Sábado quem obra por necessidade da salvação humana, como o Senhor o mostra (Mt 12, 3 ss).

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


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