10/06/2014

Tratado da lei 19

Questão 95: Da Lei humana

Em seguida devemos tratar da lei humana.

E primeiro, da lei humana em si mesma. Segundo, do seu poder. Terceiro, da sua mutabilidade.

Na primeira questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se é útil terem os homens estabelecido leis.
Art. 2 — Se toda lei feita pelos homens é derivada da lei natural.
Art. 3 — Se Isidoro expõe convenientemente a qualidade da lei positiva.
Art. 4 — Se Isidoro estabelece convenientemente a divisão das leis humanas ou do direito humano.

Art. 1 — Se é útil terem os homens estabelecido leis.

(Supra, q. 91, a. 3; X Ethic., lect XIV).

O primeiro discute-se assim. — Parece que não é útil os homens terem estabelecido leis.

1. — Pois, a intenção de qualquer lei é tornar os homens bons, como já se disse (q. 92, a. 1). Ora, eles são levados melhor ao bem, voluntariamente, por advertências, do que coagidos por leis. Logo, não é necessário estabelecê-las.

2. Demais. — O Filósofo diz: Os homens buscam o juiz, como sendo a justiça animada. Ora, a justiça animada é melhor que a inanimada, contida nas leis. Logo, melhor seria cometer a execução da justiça ao arbítrio dos juízes, do que legislar a esse respeito.

3. Demais. — Toda lei é directiva dos actos humanos, como do sobredito resulta (q. 90, a. 1, a. 2). Ora, como os actos humanos versam sobre situações particulares, que são infinitas, o que respeita à direcção dos actos humanos não pode ser levado em conta suficientemente, senão por alguém que tenha a ciência dos particulares. Logo, é melhor serem os actos humanos dirigidos pelo arbítrio dos prudentes, do que fazer leis para eles. Portanto, não é necessário estabelecer leis humanas.

Mas, em contrário, Isidoro diz: As leis foram feitas para que, por medo delas, seja coibida a audácia humana, a inocência defendida contra os maus e dos próprios maus refreada a faculdade de fazer mal, pelo temor do suplício. Ora, tudo isto é em máximo grau necessário ao género humano. Logo, é necessário que se tenham estabelecido leis humanas.

Como do sobredito resulta (q. 63, a. 1; q. 94, a. 3), o homem tem aptidão natural para a virtude; mas a própria perfeição da virtude é forçoso adquiri-la por meio da disciplina. Assim, vemos que é por alguma indústria, que satisfaz às suas necessidades, p. ex., as do comer e do vestir-se. Dessa indústria já a natureza lhe forneceu o início, a saber, a razão e as mãos; não porém o complemento, como o fez para os outros animais, a que deu a cobertura dos pêlos e alimentação suficiente. Ora, para a disciplina em questão, o homem não se basta facilmente a si próprio. Pois, a perfeição da virtude consiste principalmente em retraí-lo dos prazeres proibidos, a que sobretudo é inclinado, e, por excelência, os jovens, para os quais a disciplina é mais eficaz. Logo, é necessário que essa disciplina, pela qual consegue a virtude, o homem a tenha recebido de outrem. Assim, para os jovens naturalmente inclinados aos actos de virtude, por dom divino, basta a disciplina paterna, que procede por advertências. Certos, porém, são protervos, inclinados aos vícios e não se deixam facilmente mover por palavras. Por isso é necessário que sejam coibidos do mal pela força e pelo medo, para que ao menos assim, desistindo de fazer mal, e deixando a tranquilidade aos outros, também eles próprios pelo costume sejam levados a fazer voluntariamente o que antes faziam por medo, e deste modo se tornem virtuosos. Ora, essa disciplina, que coíbe pelo temor da pena, é a disciplina das leis. Donde é necessário, para a paz dos homens e para a virtude, que se estabeleçam leis. Pois, como diz o Filósofo, o homem se, aperfeiçoado pela virtude, é o melhor dos animais, afastado da lei e da justiça, é o pior de todos. Porque tem as armas da razão, para satisfazer as suas paixões e crueldades, que os outros animais não têm.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Os homens bem dispostos são melhor induzidos à virtude por advertências, que voluntariamente aceitam, do que pela coacção. Alguns, porém, mal dispostos, não se deixam levar à virtude, senão coagidos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz o Filósofo, é melhor que tudo seja regulado por lei, do que entregue ao arbítrio de juízes. E isto por três razões. — Primeiro, por ser mais fácil encontrar uns poucos homens prudentes, suficientes para fazer leis rectas, do que muitos que seriam necessários, para julgar bem de cada caso particular. — Segundo, porque os legisladores, com muita precedência consideram sobre o que é preciso legislar; ao contrário, os juízos sobre factos particulares procedem de casos nascidos subitamente. Ora, mais facilmente pode o homem ver o que é recto, depois de ter refletido muito, do que apoiado só num único facto. — Terceiro, porque os legisladores julgam em geral e para o futuro; ao passo que os homens, que presidem ao juízo, julgam do presente, apaixonados pelo amor ou pelo ódio, ou por qualquer cobiça; o que lhes deprava o juízo. — Portanto, como, a justiça animada do juiz não se encontra em muitos e é flexível, é necessário, sempre que for possível, que seja determinado por lei como se deva julgar, deixando pouquíssima margem ao arbítrio humano.

RESPOSTA À TERCEIRA. — É necessário cometer a juízes certos casos particulares, que a lei não pode abranger, conforme o Filósofo o diz, no mesmo lugar; p. ex., saber se um facto se deu ou não, ou coisas semelhantes.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


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