02/06/2014

Tratado da lei 11

Questão 92: Dos efeitos da lei.

Em seguida devemos tratar dos efeitos da lei. E nesta questão dois artigos se discutem:

Art. 1 — Se o efeito da lei é tornar os homens bons.
Art. 2 — Se os actos da lei estão convenientemente assinalados na expressão: são actos da lei ordenar, proibir, permitir e punir.

Art. 1 — Se o efeito da lei é tornar os homens bons.

(II Cont. Gent., cap. CXVI: X Ethic., Irect., Iect. XIV).

O primeiro discute-se assim. — Parece que o efeito da lei não é tornar os homens bons.

1. — Pois, os homens são bons pela virtude, que torna bom quem a tem, como diz Aristóteles. Ora, a virtude do homem vem-lhe de Deus, que a produz em nós, sem nós, como se disse a propósito da definição da virtude (q. 55, a. 4). Logo, não compete à lei tornar os homens bons.

2. Demais. — A lei não é útil ao homem se ele não lhe obedecer. Ora, já é por bondade que o homem obedece à lei. Logo, antes da lei, é-lhe necessária a bondade. Logo, não é ela que torna os homens bons.

3. Demais. — A lei ordena-se para o bem comum, como já se disse (q. 90, a. 2). Ora, alguns, que procedem rectamente no atinente ao bem comum, não o fazem em relação ao próprio. Logo, não pertence à lei tornar os homens bons.

4. Demais. — Certas leis são tirânicas, como diz o Filósofo. Ora, o tirano não busca o bem dos súbditos, mas a utilidade própria. Logo, não pertence à lei tornar os homens bons.

Mas, em contrário, diz o Filósofo: A vontade de todo legislador é tornar os cidadãos bons.

Como já dissemos (q. 90, a. 1 ad 2; a. 3, a. 4), a lei não é senão o ditame da razão do chefe, que governa os súbditos. Ora, a virtude de todo súbdito está em submeter-se bem àquele por quem é governado; assim como a virtude do irascível e do concupiscível consiste em serem bem obedientes à razão. E assim, a virtude de qualquer súbdito está em sujeitar-se bem ao que governa, como diz o Filósofo. Pois, toda lei é estabelecida para ser obedecida pelos súbditos. Por onde é manifesto, que é próprio da lei levar os súbditos a serem virtuosos. Ora, como é a virtude que torna bom quem a tem, segue-se que é efeito próprio da lei tornar bons, absoluta ou relativamente, aqueles para os quais foi dada. Assim, se a intenção do legislador visar o verdadeiro bem, que é o bem comum regulado pela justiça divina, resulta que, pela lei, os homens se tornarão absoluta­mente bons. Se for, porém, a intenção do legislador o bem não absoluto, mas o útil, o deleitável ou o que repugna à justiça divina, então a lei tornará os homens bons, não absoluta, mas relativamente, em ordem a um determinado regime. Donde, existe bem, ainda nos que são, em si mesmos, maus, assim, chama-se bom ladrão o que age bem em vista dos seus fins.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Dupla é a virtude, como do sobredito se colhe (q. 63, a. 2): a adquirida e a infusa. Ora, para uma e outra contribui o agir costumeiro, mas diversamente; pois, causa a virtude adquirida, dispõe para a infusa, e conserva e promove a já adquirida. E como a lei é dada para dirigir os actos humanos, na medida em que eles levam para a virtude, nessa mesma a lei torna os homens bons. Donde o dizer o Filósofo: Os legisladores tornam os cidadãos bons, imprimindo-lhes bons hábitos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Nem sempre obedecemos à lei pela bondade de uma virtude perfeita, mas umas vezes, pelo temor da pena, outras, pelo só ditame da razão, que é um princípio de virtude, como já estabelecemos (q. 63, a. 1).

RESPOSTA À TERCEIRA. — A bondade da parte é considerada relativamente à do todo, por isso, diz Agostinho, é má toda a parte que não se coaduna com o todo. Sendo pois cada homem parte da cidade, é impossível que seja bom sem ser bem proporcionado ao bem comum, nem o todo pode ter boa consistência senão pelas partes, que lhe sejam proporcionadas. Donde, é impossível manter-se o bem comum da cidade sem os cidadãos serem virtuosos, ao menos aqueles a quem cabe governar. Pois basta, para o bem da comunidade, que os cidadãos sejam virtuosos na medida em que obedecem às ordens do chefe. E por isso o Filósofo diz: A virtude do chefe e a do bom cidadão é a mesma, mas não é a mesma que a do bom cidadão a virtude de um cidadão qualquer.

RESPOSTA À QUARTA. — A lei tirânica, não estando de acordo com a razão, não é, absolutamente falando, lei, antes, é uma perversão dela. E contudo, na medida em que participa da essência da lei, tende a tornar bons os cidadãos. Ora, da essência da lei não participa, senão na medida em que é um ditame de quem governa os seus súbditos e tende a que eles sejam obedientes à lei. O que é torná-los bons, não absolutamente, mas em relação ao regime.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


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