17/04/2014

Tratado dos vícios e pecados 62

Questão 83: Do sujeito do pecado original.

Em seguida devemos tratar do sujeito do pecado original. E nesta questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se o pecado original está mais na carne que na alma.
Art. 2 — Se o pecado original está mais na essência da alma que nas potências.
Art. 3 — Se o pecado original contaminou mais a vontade que as outras faculdades.
Art. 4 — Se as referidas potências — a geratriz, a potência concupiscível e o sentido do tacto, foram mais contaminadas que as outras.

Art. 1 — Se o pecado original está mais na carne que na alma.

(II Sent., dist. XVIII, q. 2, a. 1, ad. 3; dist. XXX, q. q, a. 2, ad 4; dist. XXXI, q. 1, a. 1, ad 2, 4; dist. XXXIII, q. 1, a. 3, ad 4; De Malo, q. 4, a. 3).

O primeiro discute-se assim. — Parece que o pecado original está mais na carne que na alma.

1. — Pois, a repugnância da carne pela a alma procede da corrupção do pecado original. Ora, a raiz dessa repugnância está na carne, conforme o Apóstolo (Rm 7): sinto nos meus membros outra lei que repugna à lei do meu espírito. Logo, o pecado original está principalmente na carne.

2. Demais. — Tudo está mais na causa que no efeito; assim o calor esta mais no fogo que aquece, do que na água aquecida. Ora, a alma sofre a contaminação do pecado original, por meio do sémen carnal. Logo, o pecado original está mais na carne que na alma.

3. Demais. — Contraímos o pecado original do primeiro pai, porque preexistimos nele pelo gérmen seminal. Ora, não preexistimos nele pela alma, mas só pela carne. Logo, o pecado original não está na alma, mas na carne.

4. Demais. — A alma racional criada por Deus é infundida no corpo. Se portanto, a alma fosse contaminada pelo pecado original, sê-lo-ia desde a sua criação ou infusão. E assim, Deus, causa da criação e da infusão, seria também a causa do pecado.

5. Demais. — Ninguém que tenha sabedoria iria despejar um licor precioso num vaso, do qual sabe que o contaminará. Se portanto a alma, pela sua união com o corpo, pudesse contaminar-se com a mácula da culpa original, Deus, que é a própria sabedoria, nunca haveria de infundi-la em tal corpo. Ora, se a infunde, é que ela não fica maculada pela carne. Portanto, o pecado original não está na alma, mas na carne.

Mas, em contrário, o sujeito de uma virtude e de um vício ou pecado, é o mesmo que o da virtude ou vício contrários. Ora, a carne não pode ser sujeito da virtude, pois, como diz o Após­tolo (Rm 7), eu sei que em mim, quero dizer, na minha carne, não habita o bem. Logo, a carne não pode ser o sujeito do pecado original, mas só a alma.

SOLUÇÃO. — Uma coisa pode estar noutra de dois modos: como na causa, principal ou instrumental, ou como no sujeito. Donde, o pecado original de todos os homens preexistiu por certo, em Adão, como na causa primeira principal, conforme o Apóstolo (Rm 5): no qual todos pecaram. Por outro lado, o pecado original preexistia no sémen do corpo, como na causa instrumental, porque é pela virtude activa do sémen que ele se transmite à prole simultaneamente com a natureza humana. Mas, o pecado original não pode ter de nenhum modo a carne como sujeito, mas só a alma.

E a razão é que, como já dissemos, pela vontade do primeiro pai, o pecado original se transmitiu aos descendentes, por via de geração, assim como da vontade de um homem o pecado actual deriva para as outras partes. E nesta derivação notamos o seguinte. Tudo o redundante da moção da vontade, de pecar, para qualquer parte do homem, de algum modo participante do pecado, seja, como sujeito, seja, como instrumento, tudo isso implica essencialmente a culpa. Assim, a vontade da gula faz o concupiscível desejar o alimento, e leva as mãos e a boca a tomarem-no, que, enquanto movidas pela vontade ao pecado, são instrumentos deste. Porém o ulterior redundante na potência nutritiva, e nos membros interiores, de natureza a não serem movidos pela vontade, não implica a culpa essencialmente.

Assim pois, podendo a alma ser sujeito da culpa, e a carne, em si mesma, não, toda a corrupção do primeiro pecado, que atinge a alma, implica a culpa; o que porém não a atinge implica, não culpa, mas a pena. Portanto, a alma, e não a carne, é o sujeito do pecado original.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Como diz Agostinho, o Apóstolo refere-se no lugar citado ao homem já redimido, libertado da culpa, mas sujeito à pena, e por isso diz que o pecado habita na carne. Mas daqui se não segue seja a carne sujeito da culpa, mas só da pena.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O pecado original tem no sémen a sua causa instrumental. Ora, não é necessário que o existente na causa instrumental exista nesta mais principalmente que no efeito, senão só na causa principal. E deste modo o pecado original existiu mais principalmente em Adão, em quem existiu como pecado actual.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A alma de um homem qualquer não preexistiu, seminalmente em Adão pecador, como no seu princípio efectivo, mas como no princípio dispositivo. Porque o sémen corpóreo, transmitido por Adão, não tem a virtude de produzir a alma racional, mas, só a de dispô-la.

RESPOSTA À QUARTA. — A mácula do pecado original de nenhum modo foi causada por Deus, mas só pelo pecado do primeiro pai, mediante a geração carnal. Logo, a criação, implicando relação da alma só com Deus, não se pode dizer que fosse maculada por ela. A infusão porém implica relação com Deus, que infunde, e com a carne, na qual é a alma infundida. Logo, considerada a relação com Deus, que infunde, não se pode dizer que pela infusão a alma seja maculada, mas só levando-se em conta a relação com o corpo em que é infundida.

RESPOSTA À QUINTA. — O bem comum tem preferência sobre o particular. Por isso, Deus, em conformidade com a sua sabedoria, não derroga para evitar o contágio particular de uma alma, a ordem universal das coisas, que exige ser infundida em tal corpo. Sobretudo por ser da natureza da alma não começar a existir senão unida ao corpo, como se demonstrou na Primeira Parte. Pois, é-lhe melhor a ela assim existir, segundo a natureza, do que não existir de nenhum modo; sobretudo por poder, pela graça, livrar-se da condenação.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


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