21/11/2013

Tratado dos hábitos 21


Questão 54: Da distinção dos hábitos.

Em seguida devemos tratar da distinção dos hábitos. E sobre este ponto quatro artigos se discutem:

Art. 1 — Se numa mesma potência podem existir muitos hábitos.
Art. 2 — Se os hábitos se distinguem pelos objectos.
Art. 3 — Se os hábitos se distinguem pelo bem e pelo mal.

Art. 1 — Se numa mesma potência podem existir muitos hábitos.

(III Sent., dist. XXXIII, q. 1, a. 1, qª 1, De Verit., q. 15, a. 2, ad 11, De Virtut., q. 1, a. 12, ad 4).

O primeiro discute-se assim. — Parece que numa mesma potência não podem existir muitos hábitos.

1. — Pois, a multiplicação de uma actividade, que se distingue de outra pelo mesmo fundamento, acarreta a multiplicação dessa outra. Ora, a potência e o hábito distinguem-se pelo mesmo fundamento, a saber, pelos actos e pelos objectos. Logo, também assim se multiplicam. Logo, numa mesma potência não podem existir muitos hábitos.

2. Demais — A potência é uma virtude simples. Ora, num sujeito simples não pode haver diversidade de acidentes, porque o sujeito é causa do acidente e do que é simples só pode resultar um ser. Logo, numa mesma potência não podem existir muitos hábitos.

3. Demais — Assim como o corpo é formado pela figura, assim a potência pelo hábito. Ora, um mesmo corpo não pode ser formado simultaneamente por várias figuras. Logo, também uma potência não pode ser simultaneamente formada por muitos hábitos. Logo, na mesma potência não podem existir simultaneamente muitos hábitos.

Mas, em contrário, o intelecto é uma potência, na qual, contudo há hábitos de diversas ciências.

Como já dissemos 1, os hábitos são disposições do que é potencial em relação a alguma coisa, quer seja a natureza, quer uma operação ou fim da natureza. — Ora, os hábitos que são disposições para a natureza, podem, manifestamente, existir vários num mesmo sujeito, porque as partes deste podem ser consideradas diversamente, e conforme a disposição delas assim se denominam os hábitos. Assim, se consideramos os humores como partes do corpo humano, da disposição deles na natureza humana depende o hábito ou disposição da saúde. Se porém considerarmos as partes semelhantes, como os nervos, os ossos e as carnes, a mesma disposição em ordem à natureza constitui a fortaleza ou a magreza. Se por fim levarmos em conta os membros, como as mãos, os pés e outros, a disposição deles conveniente à natureza é a beleza. E assim há vários hábitos ou disposições num mesmo sujeito.

Se porém considerarmos os hábitos que são disposições para a operação e que propriamente pertencem às potências, também vários podem pertencer a uma mesma potência. E a razão é que o sujeito do hábito é a potência passiva, como já dissemos 2, pois, a potência que só é activa não é sujeito de nenhum hábito, como consta claramente do sobredito 3. Ora, a potência passiva está para o acto determinado de uma mesma espécie, como a matéria está para a forma, pois assim como a matéria é determinada a uma mesma forma por um mesmo agente, assim a potência passiva é determinada, por virtude de um objecto activo, a um acto específico. Donde, assim como vários objectos podem mover uma potência passiva, assim uma potência passiva pode ser sujeito de diversos actos ou perfeições especificamente considerados. Ora, os hábitos são qualidades ou formas inerentes à potência, pelos quais esta se inclina a actos especificamente determinados. Donde, a uma mesma potência podem pertencer vários hábitos, assim como vários actos especificamente diferentes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Como nos seres naturais a diversidade das espécies se funda na forma, e a diversidade dos géneros se funda na matéria, como já se disse 4, porque seres genericamente diversos têm matéria diversa, assim também a diversidade genérica dos objectos produz a distinção das potências, e por isso o Filósofo diz que seres genericamente diferentes têm também partículas diferentes da alma 5. A diversidade específica dos objectos, por fim, causa a diversidade específica dos actos e por consequência, dos hábitos. Ora, a diversidade genérica implica a diversidade específica, mas não inversamente. Portanto, a potência diversas correspondem actos específicos diversos e diversos hábitos. Não é necessário porém que hábitos diversos pertençam a potências diversas, antes, vários podem pertencer a uma mesma potência. E assim como há géneros de géneros e espécies de espécies, assim também podem existir diversas espécies de hábitos e potências.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora essencialmente simples, a potência é de virtude múltipla, porque pode estender-se a muitos actos especificamente diferentes. Donde, nada impede que existam numa mesma potência muitos hábitos especificamente diferentes.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O corpo é formado pela figura como pela sua terminação própria. Ora, o hábito não é uma terminação da potência, mas, uma disposição para o acto, como seu último termo. Portanto, numa mesma potência não podem existir simultaneamente vários hábitos, senão talvez enquanto um está compreendido no outro, assim como também um mesmo corpo não pode ter várias figuras, senão enquanto uma está na outra, como o triângulo no quadrângulo. Pois, o intelecto não pode inteligir muitos objectos simultânea e actualmente, pode porém saber muitas simultânea e habitualmente.

Nota: Revisão da tradução portuguesa por ama.
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Notas:
1. Q. 49, a. 4.
2. Q. 51, a. 2.
3. Ibid.
4. V Metaph. (lect. XXII).
5. VI Ethic. (lect. I).


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