24/10/2013

Tratado das paixões da alma 119




Questão 47: Da causa eficiente da ira e dos seus remédios

Em seguida devemos tratar da causa eficiente da ira e dos seus remédios. E sobre esta questão quatro artigos se discutem:

Art. 1 — Se sempre nos iramos por alguma coisa feita contra nós.
Art. 2 — Se o contempto ou o desprezo é motivo de ira.
Art. 3 — Se a nossa excelência é a causa de nos irarmos mais facilmente.
Art. 4 — Se uma deficiência é causa de mais facilmente nos irarmos contra outrem.

Art. 1 — Se sempre nos iramos por alguma coisa feita contra nós.

O primeiro discute-se assim. — Parece que nem sempre nos iramos por alguma coisa feita contra nós.

1. — Pois, pecando, nada podemos contra Deus, conforme a Escritura (Jó 35, 6): se as tuas iniquidades se multiplicarem, que farás tu contra ele? E contudo a Escritura também diz que Deus se ira contra os homens, por causa dos pecados (Sl 105, 40): E se abrasou de furor o Senhor contra o seu povo. Logo, nem sempre nos iramos por alguma coisa feita contra nós.

2. Demais — A ira é o desejo de vingança. Ora, podemos querer tirar vingança mesmo daquilo que é feito contra outros. Logo, nem sempre o motivo da ira é o feito contra nós.

3. Demais — Como diz o Filósofo, iramo-nos principalmente contra os que desprezam aquilo com que nos ocupamos de preferência, assim, os que se ocupam com a filosofia se iram contra os que a desprezam 1, e o mesmo se dá com outras coisas. Ora, desprezar a filosofia não é fazer mal aos que com ela se ocupam. Logo, nem sempre nos iramos contra aquilo que é feito contra nós.

4. Demais — Se nos calamos em face de quem nos injuria, mais lhe provocamos a ira, como diz Crisóstomo 2. Mas, pelo facto de nos calarmos, nada fazemos contra ele. Logo, a ira nem sempre é provocada pelo que é feito contra nós.

Mas, em contrário, diz o Filósofo: a ira provém sempre do feito contra nós, a inimizade porém, mesmo que isso não se dê, assim, odiamos alguém só pelo reputarmos como tal 3.

Como já dissemos 4, a ira é o desejo de fazer mal a outrem, com fundamento na justiça vindicativa. Ora, a vingança supõe sempre a injúria preexistente. Nem toda injúria porém provoca a vindicta, senão só a que atinge o que deseja vingar-se, pois, assim como cada ser naturalmente deseja o seu próprio bem, assim também naturalmente repele o próprio mal. Ora, a injúria que outrem nos faça não nos atinge, se não fizer nada que seja contra nós. Donde se segue que o motivo da ira de alguém é sempre alguma coisa contra ele feita.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Não se atribui a ira a Deus como paixão da alma, mas como juízo da justiça, enquanto quer tirar vingança do pecado. Pois, embora, pecando, não possamos efetivamente fazer mal a Deus, contudo, pela nossa parte, agimos de dois modos contra Ele. Primeiro, porque o desprezamos nos seus mandamentos. Segundo, enquanto causamos algum mal a outrem ou a nós mesmos, no que diz respeito a Deus, porque a pessoa a quem fizemos mal está sob a sua providência e tutela.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Iramo-nos contra aqueles que fazem mal aos outros, e desejamos tirar vingança, enquanto aqueles a quem foi feito mal, de certo modo nos dizem respeito, quer por alguma afinidade, quer pela amizade, ou ao menos por alguma comunhão de natureza.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Consideramos como bem nosso, aquilo por que sobretudo nos interessamos. Donde, quando isso é desprezado, consideramo-nos também como desprezados e lesados.

RESPOSTA À QUARTA. — Provocamos a ira de quem nos injuria, ficando calados, quando o fazemos por desprezo, quase desdenhando a ira do mesmo. Ora, esse desdém já é, por si, um acto.

Nota: Revisão da tradução portuguesa por ama.
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Notas:
1. II Rhetoric. (cap. II).
2. Hom. XXII, in epist. Ad Rom.
3. II Rhetoric. (cap. IV).
4. Q. 46, a. 6.


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