Em
seguida devemos tratar da causa eficiente da ira e dos seus remédios. E sobre
esta questão quatro artigos se discutem:
Art.
1 — Se sempre nos iramos por alguma coisa feita contra nós.
Art.
2 — Se o contempto ou o desprezo é motivo de ira.
Art.
3 — Se a nossa excelência é a causa de nos irarmos mais facilmente.
Art.
4 — Se uma deficiência é causa de mais facilmente nos irarmos contra outrem.
Art. 1 — Se sempre nos
iramos por alguma coisa feita contra nós.
O
primeiro discute-se assim. — Parece que nem sempre nos iramos por alguma coisa
feita contra nós.
1. — Pois, pecando, nada podemos contra Deus, conforme a Escritura (Jó 35, 6): se as tuas iniquidades se multiplicarem, que farás tu contra ele? E contudo a Escritura também diz que Deus se ira contra os homens, por causa dos pecados (Sl 105, 40): E se abrasou de furor o Senhor contra o seu povo. Logo, nem sempre nos iramos por alguma coisa feita contra nós.
2.
Demais — A ira é o desejo de vingança. Ora, podemos querer tirar vingança mesmo
daquilo que é feito contra outros. Logo, nem sempre o motivo da ira é o feito
contra nós.
3.
Demais — Como diz o Filósofo, iramo-nos principalmente contra os que desprezam
aquilo com que nos ocupamos de preferência, assim, os que se ocupam com a
filosofia se iram contra os que a desprezam 1, e o mesmo se dá com
outras coisas. Ora, desprezar a filosofia não é fazer mal aos que com ela se
ocupam. Logo, nem sempre nos iramos contra aquilo que é feito contra nós.
4.
Demais — Se nos calamos em face de quem nos injuria, mais lhe provocamos a ira,
como diz Crisóstomo 2. Mas, pelo facto de nos calarmos, nada fazemos
contra ele. Logo, a ira nem sempre é provocada pelo que é feito contra nós.
Mas,
em contrário, diz o Filósofo: a ira provém sempre do feito contra nós, a
inimizade porém, mesmo que isso não se dê, assim, odiamos alguém só pelo
reputarmos como tal 3.
Como já dissemos 4, a ira é o desejo de fazer mal a outrem, com
fundamento na justiça vindicativa. Ora, a vingança supõe sempre a injúria
preexistente. Nem toda injúria porém provoca a vindicta, senão só a que atinge
o que deseja vingar-se, pois, assim como cada ser naturalmente deseja o seu
próprio bem, assim também naturalmente repele o próprio mal. Ora, a injúria que
outrem nos faça não nos atinge, se não fizer nada que seja contra nós. Donde se
segue que o motivo da ira de alguém é sempre alguma coisa contra ele feita.
DONDE
A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Não se atribui a ira a Deus como paixão da
alma, mas como juízo da justiça, enquanto quer tirar vingança do pecado. Pois,
embora, pecando, não possamos efetivamente fazer mal a Deus, contudo, pela
nossa parte, agimos de dois modos contra Ele. Primeiro, porque o desprezamos
nos seus mandamentos. Segundo, enquanto causamos algum mal a outrem ou a nós
mesmos, no que diz respeito a Deus, porque a pessoa a quem fizemos mal está sob
a sua providência e tutela.
RESPOSTA
À SEGUNDA. — Iramo-nos contra aqueles que fazem mal aos outros, e desejamos
tirar vingança, enquanto aqueles a quem foi feito mal, de certo modo nos dizem
respeito, quer por alguma afinidade, quer pela amizade, ou ao menos por alguma
comunhão de natureza.
RESPOSTA
À TERCEIRA. — Consideramos como bem nosso, aquilo por que sobretudo nos
interessamos. Donde, quando isso é desprezado, consideramo-nos também como
desprezados e lesados.
RESPOSTA
À QUARTA. — Provocamos a ira de quem nos injuria, ficando calados, quando o
fazemos por desprezo, quase desdenhando a ira do mesmo. Ora, esse desdém já é,
por si, um acto.
Nota:
Revisão da tradução portuguesa por ama.
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Notas:
1. II Rhetoric. (cap. II).
2. Hom. XXII, in epist. Ad Rom.
3. II Rhetoric. (cap. IV).
4. Q. 46, a. 6.
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