3. O sentido da filiação
divina como fundamento da vida espiritual
Quando
se vive com intensidade a filiação divina, esta chega a ser «uma atitude
profunda da alma, que acaba por informar toda a existência: está presente em
todos os pensamentos, em todos os desejos, em todos os afectos» 4. É
uma realidade para ser vivida sempre, não só em circunstâncias particulares da
vida: «Não podemos ser filhos de Deus só de vez em quando, ainda que haja
alguns momentos especialmente dedicados a considerá-lo, a compenetrarmo-nos
desse sentido da nossa filiação divina, que é a essência da piedade» 5.
A
alegria cristã tem as suas raízes no sentido da filiação divina: «A alegria é
consequência necessária da filiação divina, de nos sabermos queridos com
predilecção pelo nosso Pai Deus, que nos acolhe, nos ajuda e nos perdoa» 7.
Na pregação de São Josemaria reflecte-se muito frequentemente que a sua alegria
brotava da consideração desta realidade: «Por motivos que não vem a propósito
referir – mas que são bem conhecidos de Jesus, que aqui temos a presidir no
Sacrário – a vida tem-me levado a sentir-me de um modo muito especial filho de
Deus. Tenho saboreado a alegria de me meter no coração de meu Pai, para
rectificar, para me purificar, para o servir, para compreender e desculpar a
todos, tendo como base o seu amor e a minha humilhação (…). Ao longo dos anos,
tenho procurado apoiar-me sem desfalecimento nesta feliz realidade» 8.
Uma
das questões mais delicadas que o homem encontra quando medita sobre a filiação
divina é o problema do mal. Muitos não conseguem perceber a experiência do mal
no mundo face à certeza de fé da infinita bondade divina. No entanto, os santos
ensinam que tudo o que acontece na vida humana há-de ser considerado como um
bem, porque compreenderam profundamente a relação entre a filiação divina e a
Santa Cruz. É o que expressam, por exemplo, umas palavras de São Tomás Moro à
sua filha mais velha, quando estava encarcerado na Torre de Londres: «Minha
filha queridíssima, nunca se perturbe a tua alma por qualquer coisa que me
possa suceder neste mundo. Nada pode acontecer senão aquilo que Deus quer. E eu
estou muito seguro de que, seja o que for por muito mau que pareça, será
verdadeiramente o melhor» 9. E o mesmo ensina São Josemaria em
relação a situações menos dramáticas, mas nas quais uma alma cristã pode sofrer
e desconcertar-se: «Penas? Contradições por aquele acontecimento ou outro
qualquer? … Não vês que é o teu Pai-Deus que o quer…, e Ele é bom…, e Ele
ama-te – a ti só! – mais que todas as mães do mundo juntas podem amar os seus
filhos?» 10.
Para
São Josemaria, a filiação divina não é uma realidade adocicada, alheia ao
sofrimento e à dor. Pelo contrário, afirma que esta realidade está
intrinsecamente ligada à Cruz, presente de modo inevitável em todos os que
queiram seguir Cristo de perto: «Jesus ora no horto: Pater mi (Mt XXVI, 39),
Abba, Pater (Mc XIV, 36)! Deus é meu Pai, ainda que me envie sofrimento. Ama-me
com ternura, mesmo quando me bate. Jesus sofre, para cumprir a Vontade do
Pai... E eu, que também quero cumprir a Santíssima Vontade de Deus, seguindo os
passos do Mestre, poderei queixar-me, se encontro por companheiro de caminho o sofrimento?
Constituirá
um sinal certo da minha filiação, porque me trata como ao Seu Divino Filho. E,
então, como Ele, poderei gemer e chorar sozinho no meu Getsemani; mas,
prostrado por terra, reconhecendo O meu nada, subirá ao Senhor um grito saído
do íntimo da minha alma: Pater mi, Abba, Pater,... fiat!» 11.
Outra
consequência importante do sentido da filiação divina é o abandono filial nas
mãos de Deus, que não se deve tanto à luta ascética pessoal – ainda que a
pressuponha – mas ao deixar-se levar por Deus, e, por isso, se fale de
abandono. Trata-se de um abandono activo, livre e consciente por parte do
filho. Esta atitude deu origem a um modo concreto de viver a filiação divina –
que não é o único, nem é caminho obrigatório para todos – chamado «infância
espiritual»; consiste em reconhecer-se não só filho, mas filho pequeno, menino
muito necessitado diante de Deus. Assim o exprimia São Francisco de Sales: «Se
não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus (Mt 18, 3).
Enquanto a criança é pequenina, conserva-se com grande simplicidade; conhece
apenas a sua mãe; tem um só amor, a sua mãe; uma única aspiração, o regaço da
sua mãe; não deseja outra coisa senão recostar-se em tão amável descanso. A
alma perfeitamente simples só tem um amor, Deus; e neste único amor, uma só
aspiração, repousar no peito do Pai celestial, e estabelecer aí o seu descanso,
como filho amoroso, deixando completamente todos os cuidados para Ele, não
olhando para outra coisa senão em manter-se nesta santa confiança» 12.
Por seu lado, São Josemaria aconselhava também a percorrer o caminho da
infância espiritual: «Sendo crianças não tereis penas: os miúdos esquecem
rapidamente os desgostos para voltar aos seus divertimentos habituais. – Por
isso, com o “abandono”, não tereis de vos preocupar, pois descansareis no Pai» 13.
manuel belda
Bibliografia
básica:
Catecismo
da Igreja Católica, 2759-2865.
Bento
XVI-Joseph Ratzinger, Jesus de Nazaré, Esfera dos Livros, Lisboa 2007, pp.
173-219 (capítulo dedicado à oração do Senhor).
Leituras
recomendadas:
São
Josemaria, Homilias “A Intimidade com Deus” e “Rumo à santidade”, em Amigos de
Deus, 142-153 e 294-316.
J. Burggraf, El
sentido de la filiación divina, en A.A.V.V., Santidad y mundo, Pamplona 1996,
pp. 109-127.
F. Fernández-Carvajal
y P. Beteta, Hijos de Dios. La filiación divina que vivió y predicó el beato
Josemaria Escrivá, Madrid 1995.
F.
Ocáriz, A filiação divina na vida e nos ensinamentos do Beato Josemaria
Escrivá, em Viver como filhos de Deus, Rei dos Livros, Lisboa 2000, pp. 17-105.
B. Perquin, Abba,
Padre: para alabanza de tu gloria, Madrid 1999.
J. Sesé, La
conciencia de la filiación divina, fuente de vida espiritual, en J.L. Illanes
(dir.), El Dios y Padre de Nuestro Señor Jesucristo, XX Simpósio Internacional
de Teologia da Universidade de Navarra, Pamplona 2000, pp. 495-517.
J. Stöhr, La vida
del cristiano según el espíritu de filiación divina, em «Scripta Theologica» 24
(1992/3) 872-893.
____________________________
Notas:
*
4
São Josemaria, Amigos de Deus, 146.
5
São Josemaria, Temas Actuais do Cristianismo, 102.
6
São Josemaria, Cristo que passa, 64.
7
São Josemaria, Forja, 332.
8
São Josemaria, Amigos de Deus, 143.
9
São Tomás Moro, Um homem só. Cartas da Torre, n. 7 (Carta de Margaret a Alice,
Agosto de 1534, relatando uma longa entrevista com o pai na prisão), Madrid
1988, p. 65.
10
São Josemaria, Forja, 929.
11
São Josemaria, Via Sacra, I Estação, Ponto de meditação, n. 1.
12
São Francisco de Sales, Conversaciones espirituales, n. 16, 7, en Obras Selectas
de San Francisco de Sales, vol. I, p. 724.
13
São Josemaria, Caminho, 864.
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