08/08/2013

Resumos da Fé cristã 67

TEMA 40. Pai Nosso, que estais nos céus

3. O sentido da filiação divina como fundamento da vida espiritual

Quando se vive com intensidade a filiação divina, esta chega a ser «uma atitude profunda da alma, que acaba por informar toda a existência: está presente em todos os pensamentos, em todos os desejos, em todos os afectos» 4. É uma realidade para ser vivida sempre, não só em circunstâncias particulares da vida: «Não podemos ser filhos de Deus só de vez em quando, ainda que haja alguns momentos especialmente dedicados a considerá-lo, a compenetrarmo-nos desse sentido da nossa filiação divina, que é a essência da piedade» 5.

São Josemaria ensina que o sentido ou a consciência vivida da filiação divina «é o fundamento do espírito do Opus Dei. Todos os homens são filhos de Deus, mas um filho pode reagir de muitos modos diante do seu pai. Temos de esforçar-nos por ser filhos que procuram lembrar-se de que o Senhor, querendo-nos como filhos, fez com que vivamos em sua casa no meio deste mundo; que sejamos da sua família; que o que é seu seja nosso e o nosso seu; que tenhamos com Ele a mesma familiaridade e confiança com que um menino é capaz de pedir a própria Lua!» 6.

A alegria cristã tem as suas raízes no sentido da filiação divina: «A alegria é consequência necessária da filiação divina, de nos sabermos queridos com predilecção pelo nosso Pai Deus, que nos acolhe, nos ajuda e nos perdoa» 7. Na pregação de São Josemaria reflecte-se muito frequentemente que a sua alegria brotava da consideração desta realidade: «Por motivos que não vem a propósito referir – mas que são bem conhecidos de Jesus, que aqui temos a presidir no Sacrário – a vida tem-me levado a sentir-me de um modo muito especial filho de Deus. Tenho saboreado a alegria de me meter no coração de meu Pai, para rectificar, para me purificar, para o servir, para compreender e desculpar a todos, tendo como base o seu amor e a minha humilhação (…). Ao longo dos anos, tenho procurado apoiar-me sem desfalecimento nesta feliz realidade» 8.

Uma das questões mais delicadas que o homem encontra quando medita sobre a filiação divina é o problema do mal. Muitos não conseguem perceber a experiência do mal no mundo face à certeza de fé da infinita bondade divina. No entanto, os santos ensinam que tudo o que acontece na vida humana há-de ser considerado como um bem, porque compreenderam profundamente a relação entre a filiação divina e a Santa Cruz. É o que expressam, por exemplo, umas palavras de São Tomás Moro à sua filha mais velha, quando estava encarcerado na Torre de Londres: «Minha filha queridíssima, nunca se perturbe a tua alma por qualquer coisa que me possa suceder neste mundo. Nada pode acontecer senão aquilo que Deus quer. E eu estou muito seguro de que, seja o que for por muito mau que pareça, será verdadeiramente o melhor» 9. E o mesmo ensina São Josemaria em relação a situações menos dramáticas, mas nas quais uma alma cristã pode sofrer e desconcertar-se: «Penas? Contradições por aquele acontecimento ou outro qualquer? … Não vês que é o teu Pai-Deus que o quer…, e Ele é bom…, e Ele ama-te – a ti só! – mais que todas as mães do mundo juntas podem amar os seus filhos?» 10.

Para São Josemaria, a filiação divina não é uma realidade adocicada, alheia ao sofrimento e à dor. Pelo contrário, afirma que esta realidade está intrinsecamente ligada à Cruz, presente de modo inevitável em todos os que queiram seguir Cristo de perto: «Jesus ora no horto: Pater mi (Mt XXVI, 39), Abba, Pater (Mc XIV, 36)! Deus é meu Pai, ainda que me envie sofrimento. Ama-me com ternura, mesmo quando me bate. Jesus sofre, para cumprir a Vontade do Pai... E eu, que também quero cumprir a Santíssima Vontade de Deus, seguindo os passos do Mestre, poderei queixar-me, se encontro por companheiro de caminho o sofrimento?

Constituirá um sinal certo da minha filiação, porque me trata como ao Seu Divino Filho. E, então, como Ele, poderei gemer e chorar sozinho no meu Getsemani; mas, prostrado por terra, reconhecendo O meu nada, subirá ao Senhor um grito saído do íntimo da minha alma: Pater mi, Abba, Pater,... fiat!» 11.

Outra consequência importante do sentido da filiação divina é o abandono filial nas mãos de Deus, que não se deve tanto à luta ascética pessoal – ainda que a pressuponha – mas ao deixar-se levar por Deus, e, por isso, se fale de abandono. Trata-se de um abandono activo, livre e consciente por parte do filho. Esta atitude deu origem a um modo concreto de viver a filiação divina – que não é o único, nem é caminho obrigatório para todos – chamado «infância espiritual»; consiste em reconhecer-se não só filho, mas filho pequeno, menino muito necessitado diante de Deus. Assim o exprimia São Francisco de Sales: «Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus (Mt 18, 3). Enquanto a criança é pequenina, conserva-se com grande simplicidade; conhece apenas a sua mãe; tem um só amor, a sua mãe; uma única aspiração, o regaço da sua mãe; não deseja outra coisa senão recostar-se em tão amável descanso. A alma perfeitamente simples só tem um amor, Deus; e neste único amor, uma só aspiração, repousar no peito do Pai celestial, e estabelecer aí o seu descanso, como filho amoroso, deixando completamente todos os cuidados para Ele, não olhando para outra coisa senão em manter-se nesta santa confiança» 12. Por seu lado, São Josemaria aconselhava também a percorrer o caminho da infância espiritual: «Sendo crianças não tereis penas: os miúdos esquecem rapidamente os desgostos para voltar aos seus divertimentos habituais. – Por isso, com o “abandono”, não tereis de vos preocupar, pois descansareis no Pai» 13.

manuel belda

Bibliografia básica:
Catecismo da Igreja Católica, 2759-2865.
Bento XVI-Joseph Ratzinger, Jesus de Nazaré, Esfera dos Livros, Lisboa 2007, pp. 173-219 (capítulo dedicado à oração do Senhor).

Leituras recomendadas:
São Josemaria, Homilias “A Intimidade com Deus” e “Rumo à santidade”, em Amigos de Deus, 142-153 e 294-316.
J. Burggraf, El sentido de la filiación divina, en A.A.V.V., Santidad y mundo, Pamplona 1996, pp. 109-127.
F. Fernández-Carvajal y P. Beteta, Hijos de Dios. La filiación divina que vivió y predicó el beato Josemaria Escrivá, Madrid 1995.
F. Ocáriz, A filiação divina na vida e nos ensinamentos do Beato Josemaria Escrivá, em Viver como filhos de Deus, Rei dos Livros, Lisboa 2000, pp. 17-105.
B. Perquin, Abba, Padre: para alabanza de tu gloria, Madrid 1999.
J. Sesé, La conciencia de la filiación divina, fuente de vida espiritual, en J.L. Illanes (dir.), El Dios y Padre de Nuestro Señor Jesucristo, XX Simpósio Internacional de Teologia da Universidade de Navarra, Pamplona 2000, pp. 495-517.
J. Stöhr, La vida del cristiano según el espíritu de filiación divina, em «Scripta Theologica» 24 (1992/3) 872-893.

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Notas:
*
4 São Josemaria, Amigos de Deus, 146.
5 São Josemaria, Temas Actuais do Cristianismo, 102.
6 São Josemaria, Cristo que passa, 64.
7 São Josemaria, Forja, 332.
8 São Josemaria, Amigos de Deus, 143.
9 São Tomás Moro, Um homem só. Cartas da Torre, n. 7 (Carta de Margaret a Alice, Agosto de 1534, relatando uma longa entrevista com o pai na prisão), Madrid 1988, p. 65.
10 São Josemaria, Forja, 929.
11 São Josemaria, Via Sacra, I Estação, Ponto de meditação, n. 1.
12 São Francisco de Sales, Conversaciones espirituales, n. 16, 7, en Obras Selectas de San Francisco de Sales, vol. I, p. 724.
13 São Josemaria, Caminho, 864.


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