Questão 119: Da propagação
do homem quanto ao corpo.
Em
seguida, deve-se tratar da propagação do homem, quanto ao corpo.
E
sobre esta questão, dois artigos se discute:
Art.
1 — Se algo do alimento se transforma realmente em natureza humana.
Art.
2 — Se o sémen é um alimento supérfluo ou faz parte da substância do gerador.
Art. 1 — Se algo do
alimento se transforma realmente em natureza humana.
(II Sent., disto XXX, q. 2, a.
I; IV, dist. XLIV, q. I, a. 2, qª 4; Quodl. VIII, q. 3, a. I).
O
primeiro discute-se assim. — Parece que nada, do alimento, se converte,
realmente em natureza humana.
1.
— Pois, diz a Escritura: Tudo o que entra pela boca passa ao ventre, e se lança
depois num lugar escuro. Ora, o que é expulso, não se transforma realmente em natureza
humana. Logo, realmente, nada, do alimento, se transforma nessa natureza.
2.
Demais. — O Filósofo distingue na carne a espécie e a matéria e diz que a carne
material advém e desaparece. Ora, o gerado do alimento advém e desaparece.
Logo, este se converte na carne material, e não na específica. Ora, o que pertence
realmente à natureza humana pertence à espécie humana. Logo, realmente o
alimento não se transforma em natureza humana.
3.
Demais. — A umidade faz parte, fundamental e realmente, da natureza humana e
uma vez perdida não pode ser recuperada, como dizem os médicos. Ora,
podê-lo-ia, se o alimento se convertesse na própria unidade. Logo, realmente a
nutrição não se converte em natureza humana.
4.
Demais. — Se o alimento se convertesse realmente em natureza humana, o homem
não teria nada que, perdido, não pudesse ser recuperado. Ora, a morte sobrevém
ao homem por alguma perda. Logo, o homem poderia, alimentando-se, defender-se
perpetuamente contra a morte.
5.
Demais. — Se o alimento se convertesse realmente em natureza humana, o homem
poderia recuperar tudo o que perde, pois, o que nele é gerado do alimento pode
perder-se e ser recuperado. Se, pois, vivesse muito tempo, seguir-se-ia que
nada do que nele existia, no princípio da sua geração, permaneceria no fim. E
assim, um homem não seria numericamente idêntico a si mesmo, no decurso total
da sua vida, pois, a identidade numérica exige a identidade da matéria. Ora,
isto é inadmissível. Logo, o alimento não se transforma, realmente, em natureza
humana.
Mas,
em contrário, diz Agostinho: Os alimentos corruptos da carne, i. é, que
perderam a forma, passam a formar os membros. Ora, a formação dos membros
pertence realmente à natureza humana. Logo, os alimentos transformam-se realmente
nessa natureza.
Segundo o Filósofo, cada ser está para a verdade, como esta para a
existência. Ora, à natureza de um ser pertence, realmente, o que lhe pertence à
constituição. Porém a natureza pode ser considerada a dupla luz: em comum,
especificamente e individualmente. Ora, à natureza real de um ser, considerada
em comum, pertencem a forma, e a matéria comum, porém, a essa natureza, considerada
em particular, pertencem a matéria individual designada e a forma individuada
por essa matéria. Assim, a natureza humana, em comum, é, na sua realidade,
constituída pela alma e pelo corpo. mas a natureza humana real de Pedro e
Martinho é uma determinada alma e um determinado corpo.
Ora,
há certos seres cujas formas não podem se conservar senão numa certa matéria designada,
assim, a forma do sol que se não pode conservar senão na matéria que ela actualmente
contém. E deste modo, alguns ensinaram que a forma humana não pode conservar-se
senão numa certa matéria designada, informada por tal forma, desde o princípio,
no primeiro homem, donde, tudo quanto foi acrescentado, além do que os
primeiros pais transmitiram aos pósteros, não pertence realmente à natureza
humana, por não receber, por assim dizer, a forma dessa natureza. Como porém a
matéria do primeiro homem, sujeita à forma humana, multiplica-se, em si mesma,
originou-se, do corpo do primeiro homem, a multidão dos corpos humanos. E
conforme aos desta opinião, o alimento não se converte realmente em natureza
humana, mas o consideram como um certo fomento para que a natureza, resistindo
à acção do calor natural, este não lhe consuma a umidade fundamental. Assim,
mistura-se o chumbo ou o estanho com a prata, para esta não ser consumida pelo
fogo.
Mas
esta opinião é irracional por muitas razões. — Primeiro, porque, pela mesma
razão, uma forma pode ser realizada numa certa matéria e abandonar a matéria
própria, e, portanto, todos os seres susceptíveis de geração são também
susceptíveis de corrupção, é inversamente. Ora, é manifesto que a forma humana
pode separar-se de determinada matéria que lhe está sujeita de contrário, o
corpo humano não seria corruptível. Logo, pode unir-se a outra matéria,
convertendo-se então realmente, em algo de novo em natureza humana. — Segundo,
em todos os seres, nos quais a matéria está compreendida toda num só indivíduo,
este é especificamente uno, como claramente se vê no sol, na lua, e seres
semelhantes. — Terceiro, porque a matéria só pode multiplicar-se
quantitativamente, como nos seres rarefeitos, cuja matéria é susceptível de
maiores dimensões, ou substancialmente. Pois, permanecendo só a mesma substância
material, não se pode dizer que a matéria se multiplica, porque o ser idêntico
a si mesmo não constitui multidão, sendo esta, necessariamente causada pela
divisão. Donde, é necessário que a matéria receba qualquer outra substância,
por criação ou por conversão de outra causa na dita matéria. Donde se conclui
que nenhuma matéria pode multiplica-se, a não ser pela rarefacção, como quando,
da água, resulta o ar, ou pela adição de outra causa, como quando o fogo se
multiplica pela adição de lenha, ou por criação de matéria. Ora, é manifesto,
que a matéria, nos corpos humanos, não se multiplica pela rarefacção, porque
então os corpos dos homens, em idade perfeita, seriam mais imperfeitos que os
das crianças. Nem ainda por criação de matéria nova, porque, segundo Gregório,
todas as causas foram criadas simultaneamente, quanto à substância material,
embora, não, quanto à forma específica. Donde se conclui que a multiplicação do
corpo humano só se dá porque o alimento nele se converte realmente. — Quarto,
porque o homem, não diferindo dos animais e das plantas, pela alma vegetativa,
resultaria que também os corpos destas e daqueles não se multiplicariam pela
conversão do alimento no corpo nutrido, mas por uma certa multiplicação. O que
não pode ser natural, porque a matéria por natureza não é susceptível senão de
uma certa quantidade e nada cresce naturalmente senão pela rarefacção, ou pela
conversão de outra coisa, nessa que cresce. E então, todas as operações
gerativas e nutritivas, que constituem as virtudes naturais, seriam
miraculosas. O que é absolutamente inadmissível.
E
por isso, outros disseram, que a forma humana pode começar a existir em alguma
outra matéria, considerada a natureza humana em comum, não porém considerada
num determinado indivíduo, no qual a forma humana permanece fixa em determinada
matéria, na qual foi primariamente impressa, quando gerado o indivíduo, de modo
que este nunca a abandona até a sua corrupção final. E dizem que essa matéria
faz parte, principal e realmente da natureza humana. Mas, como tal matéria não
tem a quantidade devida, forçoso é que advenha outra, pela conversão do
alimento, que seja suficiente para o crescimento necessário. E dizem que essa
matéria faz parte, secundária e realmente, da natureza humana, porque não é
necessária para o ser primeiro do indivíduo, mas para o seu aumento. E portanto,
tudo o mais, proveniente do alimento, não faz parte, verdadeira e propriamente
falando, da natureza humana.
Mas
esta opinião também é inadmissível. — Primeiro, porque considera a matéria dos
corpos vivos como se fosse dos corpos inanimados, que, embora tenham a virtude
de gerar o especificamente semelhante, não têm, contudo, a de gerar o
individualmente semelhante, virtude que, nos viventes, é a nutritiva. De contrário,
a virtude nutritiva não acrescentaria nada aos corpos vivos e o alimento não se
converteria realmente em a natureza deles. — Segundo, porque, como já se disse,
a virtude activa do sémen é uma impressão derivada da alma geratriz. E portanto,
não pode ter maior virtude de acção, do que a própria alma, da qual deriva. Se,
pois, da virtude do sémen, uma certa matéria adquire verdadeiramente a forma da
natureza humana, com maior razão a alma pode, na nutrição conjunta, imprimir,
pela potência nutritiva, a verdadeira forma da natureza humana. — Terceiro,
porque a nutrição é necessária, não só para o crescimento — de contrário, não
mais seria necessária, terminado este — mas também para a restauração do
perdido pela acção do calor natural. Pois, não haveria restauração se o gerado
do alimento, não substituísse o perdido. Por onde, se o que primitivamente
existia fazia verdadeiramente parte da natureza humana, assim também o faz o
que é gerado do alimento.
Donde,
segundo outros, deve-se dizer, que o alimento converte-se realmente, em a natureza
humana, transformando-se nas espécies da carne, dos ossos e demais partes. E
isto mesmo diz o Filósofo, quando escreve, que o alimento nutre porque é carne
em potência.
DONDE
A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — O Senhor não disse que a totalidade do que
entra pela boca é expulso organicamente, mas, tudo, no sentido em que, em cada
alimento, há algo de impuro, expulso organicamente. — Ou se pode dizer que tudo
o que é gerado do alimento pode também ser eliminado pelo calor natural, e
expulso por certos poros ocultos, como explica Jerónimo.
RESPOSTA
À SEGUNDA. — Alguns, pela carne específica entenderam aquilo que primeiro
recebe a espécie humana e que provém do gerador e dizem que isso permanece
enquanto durar o indivíduo. Ao passo que a carne material, dizem, é gerada do
alimento e não permanece sempre, mas, assim como veio a existir, assim desaparece.
— Esta opinião, porém, vai contra a intenção de Aristóteles, que diz, no lugar
citado: assim como se dá com os seres que têm a espécie material, p. ex., o
vegetal e a pedra, assim também com a carne, uma parte é específica e outra
material. Ora, é manifesto que a referida distinção não tem lugar nos seres
inanimados, não gerados do sémen, e que não se nutrem. E demais, como o gerado,
do alimento, é assimilado por mistura, pelo corpo, que se nutre, — como a
água misturada com o vinho, segundo o
próprio exemplo do Filósofo — não pode a natureza, do que sobrevém, diferir da
do que o recebe, porque já verdadeiramente a mistura operou a unidade. Donde,
nenhuma razão há-de ser a carne material consumida pelo calor natural, e a
específica, permanecer. — E portanto, deve dizer-se, de outro modo, que a
distinção do Filósofo não se refere a carnes diversas, mas à mesma, segundo
diversos pontos de vista. Assim, considerada a carne especificamente, i. é, no
que tem de formal, então permanece sempre, porque sempre lhe permanece a
natureza e a disposição natural. Considerada, porém, materialmente, não
permanece, mas se consome e restaura, lentamente, como se vê no fogo da
fornalha, cuja forma permanece, ao passo que a matéria consumida lentamente, é
substituída por outra.
RESPOSTA
À TERCEIRA. — À unidade fundamental pertence tudo o em que se funda a virtude
específica e perdida, não pode ser readquirida, como se se amputasse a mão, o
pé ou algo semelhante. Mas a umidade nutritiva é a que ainda não chegou a
adquirir perfeitamente a natureza específica, estando em via para esta, como o
sangue e outras semelhantes. Por onde, perdida essa umidade, não desaparece,
mas permanece fundamentalmente, a virtude específica.
RESPOSTA
À QUARTA. — Toda virtude do corpo passível enfraquece pela acção contínua,
porque esses agentes também são pacientes. E por isso, a virtude assimiladora é
tão forte, no princípio que pode assimilar, não só o suficiente para a
restauração das perdas, mas também para o crescimento. Mais tarde, porém, só
pode assimilar o suficiente para restaurar as perdas, e então cessa o
crescimento. Finalmente, nem isso o pode, e então começa o desaperecimento, até
que, faltando a virtude, totalmente o animal morre. Assim como a virtude do
vinho que assimila a água que lhe é misturada, pouco a pouco, pela mistura da
água, se enfraquece, até tornar-se aquoso, como exemplifica o Filósofo.
RESPOSTA
À QUINTA. — Como diz o Filósofo, quando uma certa matéria, em si, se converte,
em fogo, então diz-se que este existe de novo, quando porém ela se converte no
fogo pre-existente, diz-se que este é alimentado. Donde, se uma certa matéria,
simultaneamente perder de todo, a espécie ígnea, e outra se converter em fogo,
este será outro, numericamente. Se porém lentamente queimar-se um lenho, e se
lhe substituir outro, e assim por diante, até que o primeiro fique totalmente
consumido, permanecerá sempre o mesmo fogo, numericamente, porque sempre o que
é acrescentado se transforma no fogo preexistente. E o mesmo, deve entender-se
dos corpos vivos, nos quais, pela nutrição, é recuperado o consumido pelo calor
natural.
Nota:
Revisão da tradução portuguesa por ama.
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