Questão 88: Como a alma humana conhece as coisas que lhe são superiores.
Em seguida deve considerar-se como a alma humana conhece as coisas que lhe são superiores, a saber, as substâncias imateriais. E, sobre este ponto, três artigos se discutem:
Art.
1 — Se a alma humana, no estado da vida presente, pode inteligir as substâncias
imateriais, em si mesmas.
Art.
2 — Se o nosso intelecto pode chegar a inteligir as substâncias imateriais,
pelo conhecimento das coisas materiais.
Art.
3 — Se Deus é o que primariamente é conhecido pela mente humana.
Art. 1 — Se a alma humana,
no estado da vida presente, pode inteligir as substâncias imateriais, em si
mesmas.
(II Cont. Gent., cap. LX ; III,
cap. XLII usque ad XLVI; De Verit., q.10, a.11; q.18, a.5, ad 7 . 8 ; Qu. De
Anima, a.16 ; In Boet. De Trin., q.6, art. 3; II Metaphys., lect. I).
O
primeiro discute-se assim. ― Parece que a alma humana, no estado da vida
presente, pode inteligir as substâncias imateriais em si mesmas.
1.
― Pois diz Agostinho: Assim como a alma colhe, pelos sentidos do corpo, os
conhecimentos das coisas corpóreas, assim, por si mesma, alcança conhecer os
seres incorpóreos. Ora, estes são as substâncias imateriais, Logo, a alma
humana intelige tais substâncias.
2.
Demais. ― O semelhante pelo semelhante se conhece. Ora, a mente humana mais se
assemelha aos seres imateriais que às coisas materiais, pois é imaterial, como
resulta do que já disse antes (q. 76, a. 1). Ora, se a nossa mente
intelige as coisas materiais, com maior razão inteligirá as materiais.
3.
Demais. ― Como a excelência dos sensíveis corrompe o sentido, daí vem que os
sensíveis em si, em máximo grau, não são nesse mesmo grau sentidos por nós.
Ora, a excelência dos inteligíveis não corrompe o intelecto, como já se disse.
Logo, aquilo que é, em si, inteligível em máximo grau, é também inteligível
para nós, no mesmo grau. Como, porém, as coisas materiais não são inteligíveis,
senão porque as tornamos inteligíveis em acto, abstraindo da matéria, é
manifesto que, em si, são mais inteligíveis as substâncias imateriais, por
natureza. Donde, são muito mais inteligíveis por nós, que as coisas materiais.
4.
Demais. ― O comentador diz, que se as substâncias abstratas não pudessem ser
inteligidas por nós, então a natureza teria operado em vão, fazendo com que não
seja inteligido por nenhum intelecto, aquilo que é, em si, naturalmente
inteligido. Ora, nada é inútil ou vão, em a natureza. Logo, as substâncias
imateriais podem ser inteligidas por nós.
5.
Demais. ― O sentido está para os sensíveis, como o intelecto para os
inteligíveis. Ora, a nossa vista pode ver todos os corpos, quer sejam
superiores e incorruptíveis, quer inferiores e corruptíveis. Logo, o nosso
intelecto pode inteligir todas as substâncias inteligíveis, mesmo as superiores
e imateriais.
Mas,
em contrário, diz a Escritura (Sb 9, 16): As coisas que há nos céus,
quem as investigará? Ora, as sobreditas substâncias consideram-se como estando
no céu, segundo a Escritura (Mt 18, 10): Os seus anjos nos céus vêm
incessantemente a face de meu Pai, que está nos céus. Logo, as substâncias
imateriais não podem ser conhecidas pela investigação humana.
Na opinião de Platão, as substâncias imateriais são não só inteligidas por
nós, mas o são primariamente. Pois, Platão ensinava, que as formas imateriais
subsistentes, a que chamava ideias, são os objetos próprios do nosso intelecto,
sendo, assim, inteligidas por nós primariamente e por si. Ora, a alma conhece
as coisas materiais na medida em que a fantasia e o sentido se imiscuem no
intelecto. Donde, quanto mais depurado for este, tanto mais perceberá a verdade
inteligível dos seres imateriais.
Mas,
segundo a doutrina de Aristóteles, mais de acordo com a nossa experiência, o
nosso intelecto, no estado da vida presente, tem relação natural com as
naturezas das coisas materiais; e, por isso, nada intelige senão voltando-se
para os fantasmas, como é claro pelo que já foi dito (q. 84, a. 7).
E, assim, é manifesto que não podemos inteligir as substâncias imateriais, que
não caem primariamente e por si sob a alçada dos sentidos e da imaginação
conforme o modo do conhecimentos que experimentamos.
Averróis,
porém, diz que por fim, nesta vida, o homem pode chegar a inteligir as
substâncias separadas, pela continuação em nós ou pela união connosco de certa
substância separada, a que chama intelecto agente, a qual, como substância
separada que é, intelige, naturalmente, as substâncias separadas. Donde, quando
estiver unida connosco, de modo que, por ela, possamos inteligir perfeitamente,
também inteligiremos as substâncias separadas; como agora, pela nossa união com
o intelecto possível, inteligimos as coisas materiais.
E
essa união do intelecto agente connosco ele compreende-a do modo seguinte.
Quando inteligimos pelo intelecto agente e pelos inteligíveis especulados —
como quando inteligimos as conclusões pelos princípios já inteligidos —
necessário é que o intelecto agente esteja para as coisas especuladas
inteligidas, como o agente principal está para os instrumentos ou como a forma
para a matéria. Pois, é destes dois modos que a acção é atribuída a dois
princípios: ao agente principal e ao instrumento, como, p. ex., a secção,
atribuída ao artífice e à serra; à forma e ao sujeito, como, p. ex., a calefacção,
atribuída ao calor e ao fogo. Ora, de ambos os modos, o intelecto agente há-de
estar para os inteligíveis especulados, como a perfeição, para o perfectível e
ao acto, para a potência. É simultaneamente, porém, que um ser recebe o
perfeito e a perfeição; assim a pupila recebe o visível em acto e a luz. Donde,
o intelecto possível recebe simultaneamente os princípios especulados
inteligidos, e o intelecto agente. E quanto mais recebemos princípios
especulados inteligidos, tanto mais nos aproximaremos do ponto em que o
intelecto agente há de unir-se connosco perfeitamente. De modo que, quando
conhecermos todos os princípios especulados inteligidos, então o intelecto
agente unirá connosco perfeitamente e poderemos, por ele, conhecer todos os
seres, tanto os materiais como os imateriais. E nisto faz consistir a
felicidade última do homem. Nem importa, para a questão, que Averróis admita
por si mesmo que, nesse estado de felicidade, o intelecto possível intelige as
substâncias separadas pelo intelecto agente; ou que deduza essa opinião
mostrando que, se fosse verdadeira a opinião de Alexandre, considerando como
corruptível o intelecto possível, então este nunca poderia inteligir as
substâncias separadas.
Ora,
também a opinião de Averróis, que acaba de ser exposta, não pode subsistir.
Primeiro,
porque, se o intelecto agente é uma substância separada, impossível é que, por
esta, intelijamos formalmente; pois, é pela forma e pelo seu acto que o agente,
formalmente, age, visto, que todo agente age enquanto actual, como já disse
antes (q. 76, a. 1), a respeito do intelecto possível.
Segundo,
porque se o intelecto agente é como acaba de ser dito, uma substância separada,
não se unirá substancialmente, mas só pela sua luz, enquanto está é participada
pelas coisas inteligidas especuladas, e não em relação às outras ações do
intelecto agente; de modo que, quando vemos as cores iluminadas pelo sol, não
se une connosco a substancia do sol, para que possamos fazer as ações deste;
mas somente, a luz do sol, para podermos ver as cores.
Terceiro,
porque se pelo modo sobredito, a substância do intelecto agente se une connosco,
os da opinião de Averróis ensinam que essa união é total, não quanto a um ou
dois inteligíveis, mas quanto a todas as coisas inteligidas. Ora, a virtude do
intelecto agente não é esgotada por todas as coisas especulativas inteligidas;
porque muito mais é inteligir as substâncias separadas, do que, todas as coisas
materiais. Donde é manifesto que, mesmo inteligidas que sejam todas as coisas
materiais, nem assim ficaria o intelecto agente unido conosco, de modo a
podermos, por ele, inteligir as substâncias separadas.
Quarto,
porque, sendo concedido a muito raros, neste mundo, inteligir todos os objetos
materiais, ninguém, ou pouquíssimos, chegariam à felicidade. O que vai contra o
Filósofo, dizendo que a felicidade é um bem comum que podem alcançar todos os
que não são privados da virtude. E é também contra a razão que, de seres
contidos numa espécie, só poucos consigam o fim da espécie.
Quinto,
porque o Filósofo diz expressamente que a felicidade é a operação conforme à
virtude perfeita. E tendo enumerado muitas virtudes, conclui que a felicidade
última, consistente no conhecimento dos máximos inteligíveis, deve ser conforme
à virtude da sapiência, que estabelecera como a capital, dentre as ciências
especulativas. Donde se vê Aristóteles colocou a felicidade última do homem no
conhecimento das substâncias separadas, tais como podem ser alcançadas pelas
ciências especulativas, e não por união com o intelecto agente, imaginada por
alguns.
Sexto,
porque, como já se demonstrou antes (q. 79, a. 4), o intelecto
agente não é uma substância separada, mas uma virtude da alma, estendendo-se,
ativamente, às mesmas coisas às quais, se estende, receptivamente, o intelecto
possível. Pois, como já se disse, o intelecto possível é o princípio pelo qual
a alma pode vir a ser todas as coisas, e o intelecto agente é o princípio de
fazer todas as coisas. Donde, ambos esses intelectos se estendem, no estado da
vida presente, só às coisas materiais que, tornadas inteligíveis em acto, pelo
intelecto agente, são recebidas no intelecto possível.
E
portanto, no estado da vida presente, nem pelo intelecto possível, nem pelo
intelecto agente, podemos inteligir as substâncias separadas imateriais, em si
mesmas.
DONDE
A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― Do passo citado de Agostinho pode-se concluir
que aquilo que a nossa mente conhece, dos seres incorpóreos, pode conhecer por
si mesma. E isto é tão verdadeiro que, mesmo os filósofos podem dizer que a
ciência da alma é um princípio para se conhecerem as substâncias separadas.
Pois, conhecendo-se a si mesma, a nossa alma atinge, na medida em que isso lhe
é possível, um certo conhecimento das substâncias incorpóreas; não as conhece,
porém, em si e perfeitamente, conhecendo-se a si mesma.
RESPOSTA
À SEGUNDA. ― Se a semelhança de natureza fosse razão suficiente do
conhecimento, então seria necessário dizer, com Empédocles, que a alma,
conhecendo tudo, tem a natureza de tudo. Mas o necessário, para conhecer, é que
a semelhança da coisa conhecida esteja no conhecente, como forma deste. Ora, ao
nosso intelecto possível, no estado da vida presente, é natural ser informado
pelas semelhanças das coisas materiais abstratas dos fantasmas; e, por isso,
conhece melhor as coisas materiais do que as substâncias imateriais.
RESPOSTA
À TERCEIRA. ― Entre o objeto e a potência cognoscitiva é necessário haver a
mesma relação que há entre o activo e o passivo, entre a perfeição e o
perfectível. Donde, se os sensíveis mais excelentes não são apreendidos pelos
sentidos, a razão não é só porque eles corrompam os órgãos sensíveis, mas
também porque são desproporcionadas às potências sensitivas. E, deste modo, as
substâncias imateriais são desproporcionadas ao nosso intelecto, no estado da
vida presente, de modo a não poder ser inteligidas por ele.
RESPOSTA
À QUARTA. ― A razão abduzida, do Comentador, é deficiente sob múltiplos
aspectos. ― Primeiro, porque se as substâncias separadas não são inteligidas
por nós, daí não se segue que não sejam inteligidas por nenhum intelecto; pois,
são inteligidas por si mesmas e umas, pelas outras. ― Segundo, porque o fim das
substâncias separadas não é serem inteligidas por nós. Ora, diz-se que é inútil
e vão o que não consegue o fim para qual existe. E assim, não se seguiria que
as substâncias imateriais fossem vãs, mesmo se, de nenhum modo, fossem
inteligidas por nós.
RESPOSTA
À QUINTA. ― Os sentidos conhecem os corpos superiores e os inferiores pelo
mesmo modo, que é a imutação do órgão, pelo sensível. Ora, as substâncias
materiais, que inteligimos por meio da abstração, não são inteligidas por nós
do mesmo modo por que o são as substâncias imateriais; pois estas, não tendo
nenhuns fantasmas, não podem ser inteligidas pelo mesmo meio.
Nota:
Revisão da tradução portuguesa por ama
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