Questão 84: Por meio
do que a alma, unida ao corpo, intelige as coisas corpóreas.
Em seguida deve tratar-se dos actos e dos hábitos da alma, quanto às potências intelectivas e apetitivas; pois, outras potências não pertencem directamente à consideração do teólogo. Como, porém, os actos e os hábitos da parte apetitiva pertencem à consideração da ciência moral, serão, por isso, tratados na segunda parte desta obra, que versará a matéria moral. Agora só se tratará dos actos e dos hábitos da parte intelectiva. E, primeiro, dos actos. Segundo, dos hábitos. Na consideração dos actos procederemos do modo seguinte. Primeiro, há a considerar como é que a alma unida ao corpo intelige. Segundo, como intelige quando separada do corpo. A primeira consideração, por sua vez, será tripartida. Assim, primeiro considerar-se-á como a alma intelige as coisas corpóreas, que lhe são inferiores. Segundo, como se intelige a si mesma, e às coisas que lhe são interiores. Terceiro, como intelige as substâncias imateriais, que lhe são superiores. Ora, sobre o conhecimento das coisas corpóreas, ocorre tríplice consideração. Primeiro, porque meio as conhece. Segundo, como e em que ordem. Terceiro, o que nelas conhece.
Sobre
o primeiro ponto, oito artigos se discutem:
Art.
1 — Se a alma conhece os corpos pelo intelecto.
Art.
2 — Se a alma, pela sua essência, intelige os seres corpóreos.
Art.
3 — Se a alma intelige todas as coisas por meio de espécies que lhe são
naturalmente inatas.
Art.
4 — Se as espécies inteligíveis efluem, para a alma, de algumas formas
separadas.
Art.
5 ― Se a alma intelectiva conhece as coisas materiais nas razões eternas.
Art.
6 — Se o conhecimento intelectivo é derivado das coisas sensíveis.
Art.
7 — Se o intelecto pode inteligir em acto, pelas espécies inteligíveis, que
traz em si mesmo, sem se valer dos fantasmas.
Art.
8 — Se o juízo do intelecto fica impedido, por privacção dos sentidos.
Art. 1 — Se a alma conhece os corpos
pelo intelecto.
(De
Verit., q.10, a. 4).
O
primeiro discute-se assim. ― Parece que a alma não conhece os corpos pelo
intelecto.
1.
― Pois, diz Dionísio que os corpos não podem ser compreendidos pelo intelecto;
porque só os sentidos podem perceber o que é corpóreo. E diz também que a visão
intelectual é só daquelas coisas que estão pela sua essência na alma. Ora,
essas não são corpos. Logo, a alma, não pode conhecer os corpos pelo intelecto.
2.
Demais. ― O sentido está para os inteligíveis, como o intelecto para os
sensíveis. Ora, a alma, pelo sentido, de nenhum modo pode conhecer as coisas
espirituais, que são inteligíveis. Logo, de nenhum modo, pelo intelecto, pode
conhecer os corpos, que são sensíveis.
3.
Demais. ― O intelecto refere-se às coisas necessárias e que existem sempre do
mesmo modo. Ora, todos os corpos são móveis e não existem sempre do mesmo modo.
Logo, pelo intelecto, a alma não pode conhecer o corpo.
Mas,
em contrário, a ciência está no intelecto. Se, pois, este não conhece os
corpos, resulta que não há nenhuma ciência deles. E, então, desaparecerá a
ciência natural, que é a do corpo móvel.
Para evidenciar esta questão, deve dizer-se que os primeiros filósofos que
pesquisaram as naturezas das coisas, pensavam que no mundo só existe corpo. E
como viam que todos os corpos são móveis e julgavam estarem num fluxo contínuo,
concluíram que nós não podemos ter nenhuma certeza da verdade das coisas. Pois,
o que está em fluxo contínuo não pode ser apreendido com certeza porque, antes
de ser discernido pela mente, já desapareceu: e, por isso, Heráclito disse que
não é possível tocar duas vezes a água de um rio que corre, como refere o
Filósofo.
Platão,
porém, que veio depois, para poder salvar o conhecimento certo da verdade
adquirida por nós, por meio do intelecto, introduziu, além desses seres
corpóreos, outro género de entes separado da matéria e do movimento, a que
chamou espécies ou ideias. E, pela participação destas, cada um dos seres
singulares e sensíveis se chama homem, cavalo ou coisa semelhante. Assim, pois,
dizia que as ciências e as definições e tudo o que pertence ao acto do intelecto,
não se refere aos corpos sensíveis que vemos, mas a esses seres imateriais e
separados. De modo que a alma não intelige esses seres corpóreos, mas sim, as
espécies separadas deles.
Ora,
de duplo modo se mostra a falsidade desta opinião. ― Primeiro porque, sendo
essas espécies imateriais e imóveis, seria excluído das ciências o conhecimento
do movimento e da matéria, o que é próprio da ciência natural, bem como a demonstração
pelas causas motoras e materiais. ― Segundo, seria visível que, procurando
conhecer as causas que nos são manifestas, introduzamos outras intermediárias,
que não podem ser as substâncias das primeiras por delas diferirem
essencialmente. De modo que, conhecidas essas substâncias separadas, nem por
isso poderemos julgar das coisas sensíveis.
E
a causa de Platão se ter desviado da verdade está em que, julgando que todo
conhecimento se dá em virtude de certa semelhança, pensava que a forma do
conhecido está necessariamente no conhecente, do modo pelo qual ela está no
conhecido. Assim, considerou que a forma da causa inteligida está no intelecto
universal, imaterial e imovelmente; coisa que ressalta da própria operação do
intelecto, que intelige universalmente e como que por uma certa necessidade;
ora, o modo da acção é dependente do modo da forma agente. E então, concluiu
pela necessidade de as coisas inteligidas subsistirem em si mesmas, imaterial e
imovelmente. Ora, isto não é necessário. Pois, mesmo nos seres sensíveis, vemos
que a forma está, num dos sensíveis, de modo diverso que em outro; p. ex., num
a brancura é mais intensa, noutro, mais remissa; num a brancura vai com a doçura,
noutro, sem ela. Ora, é também assim que a forma sensível está, de um modo, na
coisa exterior à alma e, de outro, no sentido, que recebe as formas sensíveis
sem matéria, p. ex., a cor do ouro sem o ouro. E, semelhantemente, o intelecto
recebe, ao seu modo, imaterial e imovelmente, as espécies móveis e materiais
dos corpos; pois, o recebido está no recipiente ao modo deste. ― Logo, deve
concluir-se que a alma, pelo intelecto, conhece os corpos por um conhecimento
imaterial, universal e necessário.
DONDE
A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― O passo de Agostinho deve entender-se daquelas
coisas pelas quais o intelecto conhece, e não daquelas que ele conhece. Ora,
ele conhece os corpos, inteligindo, mas não por meio de corpos nem de
semelhanças materiais e corpóreas; mas por espécies imateriais e inteligíveis
que, por essência, podem estar na alma.
RESPOSTA
À SEGUNDA. ― Como ensina Agostinho, não se deve dizer que, assim como o sentido
conhece só as coisas corpóreas, assim o intelecto, só as espirituais; porque,
então, resultaria que Deus e os anjos não conheceriam os seres corpóreos. E a
razão desta diversidade é que a virtude inferior não se estende ao domínio da
virtude superior; mas a virtude superior opera, de modo mais excelente, o que
pertence à inferior.
RESPOSTA
À TERCEIRA. ― Todo movimento supõe algo imóvel. Quando, pois, a transmutação é
qualitativa, a substância permanece imóvel; e quando se transmuda a forma
substancial, a matéria permanece imóvel. Ora, os modos de ser das coisas móveis
são imóveis; assim, embora Sócrates nem sempre esteja sentado, contudo é imovelmente
verdade que, quando está sentado, permanece num lugar. Donde, nada impede ter
uma ciência imóvel das coisas móveis.
Nota:
Revisão da tradução para português por ama
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.