Art. 3 – Se os actos nocionais procedem de algo.
(I Sent., dist. V, q. 2; III, dist. XI, art. 1).
O terceiro discute-se assim. – Parece que os actos nocionais não procedem de algo.
1. – Pois, se o Pai gera o Filho de algo, ou é de si mesmo ou de algum outro. Se de algum outro, como o ser de que um outro é gerado está nesse outro, segue-se que há no Filho algo de alheio ao Pai. O que vai contra Hilário quando diz: Nada neles é diverso ou alheio [1]. Ou então o Pai gera de si mesmo o Filho. Ora, aquilo de que alguma coisa é gerada recebe, sendo subsistente, a predicação dessa coisa; assim, dizemos que um homem é branco, porque permanece quando – de não branco se torna branco. Donde se segue, ou que o Pai não subsiste, gerado o Filho; ou que o Pai é o Filho; o que tudo é falso. Logo, o Pai não gera o Filho de algo, mas do nada.
2. Demais. – Aquilo de que alguma coisa é gerada é princípio dessa coisa. Se pois o Pai gera o Filho da Sua essência ou da sua natureza, segue-se que a essência ou a natureza do Pai é o princípio do Filho. Não, porém, princípio material, pois que em Deus não há lugar para a matéria. Logo, é um como princípio activo, como o gerador é princípio do gerado. Donde resulta, que a essência gera; o que antes foi contestado [2].
3. Demais. – Agostinho diz, que as três Pessoas não provêm da mesma essência, por não diferirem a essência e a pessoa [3]. Mas a Pessoa do Filho não é diferente da essência do Pai. Logo, o Filho não provém da essência do Pai.
4. Demais. – Toda criatura vem do nada. Ora, o Filho na Escritura, é chamado criatura; pois, nela se diz pela boca da Sabedoria gerada (Ecle 24, 5): Eu saí da boca do Altíssimo, a primogénito antes de todas as criaturas. E em seguida, pela boca da mesma Sabedoria (Ecle 24, 14): Eu fui criada desde o princípio e antes dos séculos. Logo, o Filho não foi gerado de algo, mas, do nada. E o mesmo se pode dizer, do Espírito Santo, segundo a Escritura (Zc 12, 1): Disse o Senhor que estendeu o céu e que fundou a terra e que formou o espírito do homem dentro nele. E ainda segundo outra letra (Am 4, 13): Eis quem forma os montes e quem cria o vento.
Mas, em contrário, Agostinho [4]: Deus Pai gerou da sua natureza e sem início o Filho, seu igual [5].
O Filho não foi gerado do nada, mas, da substância do Pai. Pois, como demonstramos [6], a paternidade, a filiação e a natividade existem em Deus verdadeira e propriamente. Ora, entre a geração verdadeira, pela qual se procede como filho, e a produção, há a seguinte diferença: o produzir faz alguma coisa, da matéria exterior; assim, o artífice faz um escabelo, da madeira; ao passo que o homem gera um filho, de si mesmo. Mas assim como o artífice criado faz alguma coisa da matéria, assim Deus faz do nada, como a seguir se demonstrará [7]; e não que se transforme o nada na substância da coisa, mas porque por si mesmo produz a substância inteira da coisa, sem pressuposição de nenhum outro ser. Se, pois, o Filho procedesse do Pai, tendo recebido a existência como provindo do nada, estaria para o Pai como o artificiado, para o artífice; e então é manifesto, que não lhe poderíamos atribuir a filiação propriamente dita, mas só segundo certa semelhança. Donde resulta que, se o Filho procedesse do Pai, como existindo do nada, não seria verdadeira e propriamente Filho, contrariamente ao que diz a Escritura (1 Jo 5, 20): Para que estejamos em seu verdadeiro Filho, Jesus Cristo. Logo, o verdadeiro Filho de Deus não procede do nada; nem é feito, mas somente gerado.
E se certos se chamarem filhos de Deus, estes feitos do nada, sê-lo-á só metaforicamente, por alguma assimilação com aquele que verdadeiramente é Filho. Por isso, enquanto só ele é o verdadeiro e natural Filho de Deus, chama-se unigénito, segundo a Escritura (Jo 1, 18): O Filho unigénito, que está no seio do Pai, esse é quem o deu a conhecer. Porém, por semelhança com ele, os outros se chamam filhos adoptivos, sendo ele chamado primogénito, por assim dizer metaforicamente, conforme a Escritura (Rm 8, 29): Os que ele conhece na sua presciência também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, para que ele seja o primogénito entre muitos irmãos.
Donde se conclui, que o Filho é gerado da substância do Pai, porém diferentemente dos filhos dos homens. Pois, parte da substância do gerador passa para a substância do filho. Ao contrário, a divina natureza é indivisível. Por onde, e necessariamente, o Pai, gerando o Filho, não lhe transfunde nada da sua natureza, mas lhe comunica a natureza inteira, permanecendo a distinção só pela origem, como vimos [8].
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Quando dizemos que o filho nasceu do Pai, a preposição de significa o principio gerador consubstancial, não porém o princípio material. Pois, o que é produzido da matéria o é pela transmutação dela em alguma forma. Ora, a divina essência não é transmutável nem susceptível de outra forma.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Quando dizemos que o Filho é gerado da essência do Pai, isso significa, segundo a exposição do Mestre das Sentenças [9], a relação de um como princípio activo. Eis as suas palavras: O Filho é gerado da essência do Pai, i, é, do Pai-essência; por isso, Agostinho ensina: O que afirmo do Pai-essência é como se expressamente o afirmasse da essência do Pai [10]. – Mas isto não basta para explicar o sentido dessa locução. Pois, podemos dizer que a criatura vem de Deus-essência, sem que todavia proceda da essência de Deus. Por onde e de outro modo, podemos dizer que a preposição de sempre denota a consubstancialidade. Por isso, não dizemos que a casa procede do arquitecto, por não ser este causa consubstancial. Podemos, porém, dizer que uma coisa procede de outra, de qualquer modo que esta seja entendida como princípio consubstancial. Seja princípio activo, como quando dizemos que o filho procede do pai; quer seja princípio material, como quando dizemos que o cutelo é de ferro; quer seja princípio formal, somente nos seres em que as próprias formas são subsistentes e não, de proveniência intrínseca, podendo assim dizer, que um anjo é de natureza intelectual. E deste modo dizemos que o Filho é gerado da essência do Pai, enquanto esta, comunicada ao Filho pela geração, neste subsiste.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Quando dizemos que o Filho é gerado da essência do Pai – Fazemos um acréscimo pelo qual se pode conservar a distinção. Mas quando dizemos que as três Pessoas são da essência divina – não fazemos nenhum acréscimo que possa implicar a distinção expressa pela preposição. Logo, não é o mesmo caso.
RESPOSTA À QUARTA. – Quando dizemos – a sabedoria é criada – podemos entendê-la, não da sabedoria que é o Filho de Deus, mas da sabedoria criada, que Deus infundiu nas criaturas. Assim, diz a Escritura (Ecle 1, 9-10): Ele mesmo é o que a criou, i, é, a sabedoria, no Espírito Santo, e a difundiu por todas as suas obras. Nem há inconveniente em referir-se a Escritura, num mesmo texto, à sabedoria gerada e à criada, porque esta é uma certa participação da sabedoria incriada. – Ou essa expressão pode referir-se à natureza criada assumida pelo Filho, sendo o sentido: Fui criada desde o início e antes de todos os séculos, i, é, fui prevista como devendo unir-me à criatura. – Ou, quando fala em sabedoria criada e gerada, insinua-nos o modo da geração divina. Pois na geração, ensina-nos, o gerado recebe a natureza do gerador, o que é uma perfeição; porém na criação, o criador não muda, mas o criado não recebe a natureza do criador. Por isso o Filho é considerado simultaneamente criado e gerado, deduzindo-se da criação a imutabilidade do Pai, e da geração a unidade da natureza no Pai e no Filho. E assim é exposto o sentido dessa passagem da Escritura por Hilário. Quanto às citações aduzidas, elas não falam do Espírito Santo, mas do espírito criado, que, ora é chamado vento, ora ar, ora sopro do homem, ora também alma, ou qualquer substância invisível.
SÃO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica,
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