15/11/2011

Novembro

Navegando pela minha cidade
Em Novembro já estamos plenamente no Outono embora pelas regras do 
movimento dos astros que os homens estudam e sistematizam ele tenha começado já em Setembro. Talvez para dizer aos homens que quem manda são eles (os astros) o mês de Outubro deste ano foi um Verão muito melhor do que em Agosto.

Toda a natureza se vai aos poucos despindo e despedindo num até breve. Convida ao recolhimento e à meditação escatológica porque essa vida abundante, fértil e generosa que a natureza viveu desde a Primavera vai morrendo aos poucos diante de nós num grafismo vegetal de uma plasticidade incontornável.

Não sei, mas talvez seja por isto que a rua que vai direita da Rotunda da Boavista (Praça Mouzinho de Albuquerque) ao portão do cemitério de Agramonte se chame Rua da Meditação.

De facto, quem não meditou sobre a vida e sobre a morte quando teve de entrar por aqueles enormes portões de ferro acompanhando numa imensa dor um familiar ou um amigo que lhe morreu?

Quando assim não acontece. Isto é, quando se vai ao cemitério no dia dos Fiéis Defuntos ou num outro dia qualquer em que a dor não nos cega para tudo que não seja aquele amor ou aquela amizade que perdemos, vêem-se outras coisas que nos foram invisíveis então.

E aí é uma outra espécie de escatologia arquitectónica e literária que se afirma na monumentalidade dos jazigos; na estatuária; nos pensamentos e nas poesias saudosisticas. Tudo de uma maneira geral de fraco gosto estético e sempre assustador. Porque a morte e a eternidade são enormes mistérios. São os grandes mistérios do Homem.

Mas quando fracamente se fala de um grande mistério - ou de um grande amor – súbita e subtilmente ele transforma-se em algo ridículo e motivo de riso. Se não vejamos este tenebroso escrito numa placa de mármore no alto do portão do cemitério da Lapa: “Eis ossos carcomidos cinzas frias / em que parâo da vida os breves dias / Mortal se quanto vês te não abala / Houve a tremenda voz que assim te fala / Lembra-te ó homem que és pó e que destarte / em pó ou cêdo ou tarde hás-de tornar-te”[1]. Por baixo desta frase jazem gravadas em alto-relevo no granito, uma caveira sobre duas tíbias cruzadas e uma ampulheta com asas. É um Tempus fugit[2] na pedra como havia nos mostradores dos relógios antigos.

Ou este pedido gravado de cada lado da porta de um jazigo, num lado em latim e no outro em português: “Lembra-te de mim que fui e já não sou. / Tu que és e não serás”. Parece-se mais com uma ameaça ou uma praga do que com um pedido.

No cemitério de Agramonte, logo à direita de quem entra, uma grande placa de chapa pintada de branco com letras pretas é a demonstração acabada ou o exemplo perfeito da nossa burocracia. Ou seja, avisa o que não seria necessário avisar se os funcionários do cemitério fizessem cumprir o regulamento e a sua proibição desmente-se e desautoriza-se a si própria com a evidência de dezenas e dezenas de gordos e luzidios gatos que ornamentam os jazigos em figuras tão esfíngicas como as de pedra. Ei-la: “NÃO É AUTORIZADO DAR DE COMER AOS GATOS E CÃES VISTO QUE O REGULAMENTO PROÍBE A PRESENÇA DE ANIMAIS DOMÉSTICOS NO CEMITÉRIO”.

Parece – avant la lettre – a expressão: “uma anedota ordinária contada num enterro”.

Mas tudo isto é à superfície, porque o que fica sempre neste Novembro que vai passando e em que de um modo especial lembro o irmão que morreu no dia 28 é a saudade que às vezes se interroga: e se tivesse sido de outra maneira? E a afirmação que lhe responde: tudo é para bem.

Por coincidência no jornal Público do dia 11 do 11 de 11 a citação do Escrito na pedra foi: A recordação da felicidade já não é felicidade; A recordação da dor ainda é dor.”[3]


Afonso Cabral


[1] Sic
[2] O tempo foge
[3] Lord Byron (1788-1824), poeta inglês

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