Há mais de uma hora que não fazia o mais leve movimento. Nem podia… a enorme viga de cimento que lhe esmagava as pernas tinha-o preso como num torno.
Fora tudo tão rápido! Ao ruído da explosão seguira-se o desmoronamento do edifício e não tivera tempo para um “ai”. Não fazia a menor ideia de quanto tempo estivera desacordado depois do choque brutal que o prostrara, mas, decerto, teriam sido uns largos minutos porque a poeira espessa que envolvera tudo à sua volta já se tinha dissipado e agora era como que uma segunda pele que o cobria completamente. Tentara limpar os olhos mas o ardor fora insuportável e desistira. Não lhe restava outra coisa que quedar-se imóvel à espera de algum socorro.
Não sabia o que acontecera, nem e lembrava bem dos momentos antes da violentíssima explosão, de resto, isto não lhe interessava para nada a sua preocupação resumia-se a ser encontrado por alguma equipa de socorro, os bombeiros…
Há pouco parecera-lhe ouvir vozes e quis gritar por socorro mas, da sua garganta não saiu um som sequer.
Sim, haveriam de dar com ele, disso não tinha dúvidas mas, à medida que o tempo passava começou a ”empreender”, como dizia a criada velha dos seus pais, o que é que isso adiantaria. Sim, com as pernas, que não sentia, esmagadas e irremediavelmente perdidas, passaria o resto dos dias a viver como um destroço humano dependente dos outros para as mais pequenas necessidades.
E… isso… seria vida?
Não, decerto que não! Aos quarenta e três anos… que vida seria a sua?
Talvez fosse melhor que não o encontrassem!
Sim… talvez… mas, também, morrer ali de inacção, desidratado, debaixo de um choque traumático tremendo… não era, decididamente, uma solução animadora.
De vez em quando varria-se-lhe o pensamento e ficava como que apático, sem pensar nem sentir nada, numa tontura que o avassalava por completo. A vida passava-lhe como um documentário de notícias rápidas e um pouco desfocadas com pouca ou nenhuma ligação entre umas e outras. Os rostos das pessoas pareciam-lhe como as fotografias dos filhos pequenos das celebridades que as revistas de sociedade publicavam distorcidas com o intuito, dizia-se, de dificultarem a identificação por possíveis sequestradores em busca de resgates chorudos. Os ambientes apareciam todos com cores esfumadas e esbatidas como se tivessem ocorrido há mais de cem anos. Um nevoeiro… isso… era um nevoeiro que tudo cobria de disfarçava.
Por cima de si. Tanto quanto conseguia a perceber-se, estava uma amálgama de tijolos, cimento e pedras fazendo como que uma estranha abóbada sobre o pequeno buraco onde jazia. A viga de cimento parecia ser o esteio de tudo aquilo e, conseguiu pensar, que se os socorristas tentassem movê-la tudo aquilo se despenharia sepultando-o de vez, irremediavelmente.
O que é que se faz numa situação destas?
Não lhe ocorria outra coisa que não fosse: preparar-se para morrer.
Mas como é que isso se faz? Como é que uma pessoa sepultada viva debaixo de uma mole de escombros se prepara para morrer?
Ocorreu-lhe que, talvez fosse bom rezar qualquer coisa. Mas… o quê?
Nunca tinha ligado a “essas coisas” de rezar, Igreja etc. Agora, aflito como estava, é que se lembrava de rezar?
E… Deus… que havia de pensar? Então, tu, que nunca te lembraste de Mim, agora que estás nessa situação é que me invocas! Mas, Eu, não te conheço! Como posso conhecer-te se tu nunca quiseste privar comigo?
Esta “posição” de Deus era, no seu ponto de vista, lógica e absolutamente coerente.
E, depois, rezaria o quê, isto é, como é que se reza?
Pois claro, tinha ido várias vezes à Igreja nos Baptizados dos sobrinhos, no casamento de amigos, nos funerais dos pais… mas isso foram circunstâncias sem nenhum significado especial, faziam parte da “vida social” e como cerimónias habituais e correntes.
Bom… havia o Pai-Nosso… mas não se lembrava como era e parecia-lhe uma oração enorme com imensas palavras difíceis de recordar.
Uma deslocação súbita vez cair sobre ele uma chuva de detritos e pensou que seria o fim, mas não, ficou-se por ali. O que seria? Um simples movimento dos escombros ou alguém que andaria a escavar à sua procura?
Há… pois… ninguém deveria andar à sua procura pelo simples facto de que ninguém sabia que ali estava. Chegara já de noite à velha casa dos pais e, seguramente, ninguém sabia que ele ali estava. Davam-no em França… ou seria na Alemanha… para onde emigrara há mais de vinte anos. Sim, agora lembrava-se de ter aberto a porta de entrada perra de anos sem serventia e ter acendido o isqueiro para ver alguma coisa na escuridão. A explosão fora imediata. Como era possível que, tantos anos abandonada, a casa ainda conservasse no seu interior uma tão grande acumulação de gás da botija completamente enferrujada?
Sim, no lugarejo próximo, uma explosão àquela hora da noite numa vivenda abandonada não faria sair ninguém de casa para ver o que passava. Coisas de marginais, haveriam de pensar…
Neste “dormir acordado” com intervalos de completa inconsciência, tinham-se passado mais de trinta minutos contados pelo relógio que continuava no pulso a trabalhar como se nada se tivesse passado.
Lembrou-se da última vez que visitara a mãe ainda com vida… há tantos anos…
A pobre mulher sem notícias do filho emigrado há tanto tempo, quase sucumbira de alegria e não descansou enquanto não a levou a Fátima a agradecer – dizia ela – tê-lo podido beijar e abraçar de boa saúde.
No seu espírito passaram as imagens impressionantes de centenas de milhares de velas acesas e um imenso coro e vozes a cantar o “Avé”
E, então, subitamente, como se fosse a coisa mais natural, começou a trautear com voz sumida:
“A treze de Maio, na Cova de Iria, apareceu brilhando…”
Mais uns detritos caíram sobre ele e um rosto iluminado por uma lanterna apareceu numa nesga entre os destroços.
Ouviu gritar:
“Pessoal… está aqui… está vivo…”
ama, Carvide 2011.09.11
Comovi-me ... e ainda bem!
ResponderEliminarPor vezes esquecemo-nos que a simplicidade é a "melhor" qualidade da oração.
Obrigado!