31/08/2011

Green leaves

Navegando na minha Cidade

Hoje, por causa e através de uma música, mergulhei na minha juventude. Nessa estranha e misteriosa selva de um tempo passado, em que só muitos anos depois percebi como dei como natural e certo o que afinal era privilégio. 

Algumas músicas preencheram em mim ausências de afectos com uma materialidade absoluta. Como os ossos que me sustentam e formam. Como as vergas de aço por dentro das traves e colunas de cimento de um edifício.

Quão frágil é a juventude que todo um futuro condiciona! E se tudo tivesse sido de outra maneira?

E depois há um sofá verde de veludo cotellê em frente a um fogão alimentado a carvão polaco; um pick up da Blaupunkt; um tapete de Arraiolos; uma gravura entre duas apliques representando o grande incêndio da Ópera de Paris; a série do Bonanza com os magníficos Cartwright e os livros do romeno Virgil Gheorghiou lidos como quem bebe jusqu’à l’ivresse: A chibata; Os imortais de Agapia; A casa de Petrodava; Perahim; Os sacrificados do Danúbio; O homem que viajou sozinho e todos os outros até à Vigésima quinta hora.

Aquele homem que sofreu todas as fúrias, violências e injustiças da segunda guerra mundial era para mim o símbolo vivo e incarnado da vítima inocente. Aprendi mais sobre o bem e o mal com este padre ortodoxo (Virgil Gheorghiou) do que com todos os padres jesuítas do colégio das Caldinhas[1] onde estive internado cinco anos.

A time to be reping
A time to be sowing
The green leaves of summer
A time just for living
A place for to die
A música do conjunto (agora diz-se banda) The Brothers Four ressoando nos headphones fez-me regressar à Praça Pedro Nunes.

Ali, quase como se fosse numa outra vida vivida numa terra estranha, ali no nº 68, ficava a casa dos meus pais, a minha casa. Agora é o Instituto de Genética Médica que tem crescido na proporção inversa do índice da natalidade.

A time to be courting
Courting a girl of your own
Now the green leaves of summer
Are calling me home

Em frente à minha antiga casa, no outro lado do jardim e da rua ficava o Liceu D. Manuel II. Agora chama-se Rodrigues de Freitas. O curioso é que indiferente ao passar dos tempos, das evoluções e das revoluções, uma placa de mármore continua a afirmar que aquele edifício foi acabado durante a Ditadura Nacional; a de Sidónio Pais, o Presidente Rei que também foi assassinado.

De facto aquela música …. era verdade, fazia com que a memória fosse o que devia ser: uma existência forte e consciente, não uma existência morta e antiga[2].

Os troncos das tulipiferas (Liriodendron tulipifera) já com cerca de oitenta anos estão enormes; com quase quatro metros de perímetro à altura do peito de um homem. As que sobreviveram desse tempo. As que não sobreviveram foram substituídas por outras novas e inexperientes, como os soldados mortos em combate o são.

Nessa praça muitas vezes vi como os ciganos sofrem quando algum dos seus filhos está doente. E isto porque atrás da minha casa ficava o Hospital de Crianças Maria Pia.

Então, quando uma das suas crianças lá estava não abandonavam aquela praça, juntos num nó de dor e pranto. Estavam ali de dia e de noite a olhar para o hospital juntinhos como duas mãos apertadas numa prece indizível.

Sofriam, sofrem como vivem, em bando. Todos juntos.

E a mim parece-me que assim se deverá sofrer menos, muito menos do que sofrer sozinho.

Como agora e cada vez mais se sofre.

Afonso Cabral


[1] INA – Instituto Nun’Álvares
[2] Erich Maria Remarque – O Céu não tem favoritos – PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA – 1972 – pág. 175

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.