Navegando na minha Cidade |
Hoje, por causa e através de uma música, mergulhei na minha juventude. Nessa estranha e misteriosa selva de um tempo passado, em que só muitos anos depois percebi como dei como natural e certo o que afinal era privilégio.
Algumas músicas preencheram em mim ausências de afectos com uma materialidade absoluta. Como os ossos que me sustentam e formam. Como as vergas de aço por dentro das traves e colunas de cimento de um edifício.
Quão frágil é a juventude que todo um futuro condiciona! E se tudo tivesse sido de outra maneira?
E depois há um sofá verde de veludo cotellê em frente a um fogão alimentado a carvão polaco; um pick up da Blaupunkt; um tapete de Arraiolos; uma gravura entre duas apliques representando o grande incêndio da Ópera de Paris; a série do Bonanza com os magníficos Cartwright e os livros do romeno Virgil Gheorghiou lidos como quem bebe jusqu’à l’ivresse: A chibata; Os imortais de Agapia; A casa de Petrodava; Perahim; Os sacrificados do Danúbio; O homem que viajou sozinho e todos os outros até à Vigésima quinta hora.
Aquele homem que sofreu todas as fúrias, violências e injustiças da segunda guerra mundial era para mim o símbolo vivo e incarnado da vítima inocente. Aprendi mais sobre o bem e o mal com este padre ortodoxo (Virgil Gheorghiou) do que com todos os padres jesuítas do colégio das Caldinhas[1] onde estive internado cinco anos.
A time to be reping
A time to be sowing
The green leaves of summer
…
A time just for living
A place for to die
A música do conjunto (agora diz-se banda) The Brothers Four ressoando nos headphones fez-me regressar à Praça Pedro Nunes.
Ali, quase como se fosse numa outra vida vivida numa terra estranha, ali no nº 68, ficava a casa dos meus pais, a minha casa. Agora é o Instituto de Genética Médica que tem crescido na proporção inversa do índice da natalidade.
A time to be courting
Courting a girl of your own
…
Now the green leaves of summer
Are calling me home
Em frente à minha antiga casa, no outro lado do jardim e da rua ficava o Liceu D. Manuel II. Agora chama-se Rodrigues de Freitas. O curioso é que indiferente ao passar dos tempos, das evoluções e das revoluções, uma placa de mármore continua a afirmar que aquele edifício foi acabado durante a Ditadura Nacional; a de Sidónio Pais, o Presidente Rei que também foi assassinado.
De facto aquela música …. era verdade, fazia com que a memória fosse o que devia ser: uma existência forte e consciente, não uma existência morta e antiga[2].
Os troncos das tulipiferas (Liriodendron tulipifera) já com cerca de oitenta anos estão enormes; com quase quatro metros de perímetro à altura do peito de um homem. As que sobreviveram desse tempo. As que não sobreviveram foram substituídas por outras novas e inexperientes, como os soldados mortos em combate o são.
Nessa praça muitas vezes vi como os ciganos sofrem quando algum dos seus filhos está doente. E isto porque atrás da minha casa ficava o Hospital de Crianças Maria Pia.
Então, quando uma das suas crianças lá estava não abandonavam aquela praça, juntos num nó de dor e pranto. Estavam ali de dia e de noite a olhar para o hospital juntinhos como duas mãos apertadas numa prece indizível.
Sofriam, sofrem como vivem, em bando. Todos juntos.
E a mim parece-me que assim se deverá sofrer menos, muito menos do que sofrer sozinho.
Como agora e cada vez mais se sofre.
Afonso Cabral
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