29/06/2011

Homilia, Igreja da Trindade no Porto em 27 de Junho de 2011

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Igreja da Trindade

A felicidade original e a queda

            A primeira leitura que acabámos de ouvir proclamar recorda-nos como, através de uns poéticos veículos culturais, a Revelação ensinou ao homem algo fundamental: a situação criacional humana aperfeiçoa-se por meio do jardim do Éden, que tem todas as características aneladas pelo homem: materiais (árvores, rios, sombra, etc.), e espirituais (sobretudo a sabedoria). Numa palavra, a felicidade. Este é o sentido profundo do relato paradisíaco: a felicidade originária naquele estado de amizade a que Deus elevou o homem depois de o criar.
S. Josemaria Escrivá, Sacerdote, Fundador do Opus Dei cuja Festa estamos a celebrar sublinhou a este respeito duas coisas que fazem parte da mensagem que Deus lhe inspirou: o mundo foi criado por Deus com sabedoria e amor, e o homem foi criado por Deus com uma missão de uma grande dignidade nesse mundo.
E não só o homem em geral o “Adam”, mas também cada um de nós tem uma missão a cumprir no meio das circunstâncias nas quais foi colocado por Deus. Todos fomos colocados na terra para a cultivar e guardar mediante o trabalho e o cumprimento dos deveres quotidianos.
Mas não podemos esquecer que o relato da criação termina com a narração da queda dos nossos primeiros pais. Usando palavras de S. Josemaria: «Adão não quis ser um bom filho de Deus, e revoltou-se»
         Os nossos primeiros pais quiseram ser «como Deus» e desbarataram esse tesouro que era a sua amizade com Deus e pensaram que podiam ter tudo, desfrutar de tudo, egoisticamente, sem pensar nas consequências. O resultado foi a bancarrota material e espiritual.
         Mas, ao contrário de outros contextos, o Resgate da dívida soberana não veio de uma Troika que exige o pagamento até ao último Euro, custe o que custar. A Salvação veio de uma Trindade que enviou o próprio Filho para pagar por nós as consequências da nossa insensatez.
         Continuando com o texto de S. Josemaria «Deus Pai, chegada a plenitude dos tempos, enviou ao mundo o seu Filho Unigénito, para que restabelecesse a paz; para que, redimido o homem do pecado, adoptionem filiorum reciperemus, para que recebêssemos a adopção de filhos (Gal 4, 5), fôssemos constituídos filhos de Deus, libertos do pecado, e capazes de participar na vida íntima da divina Trindade» (Cristo que Passa 65).
         S. Josemaria viveu e ensinou a viver, como fundamento da vida cristã, um confiado sentido da Filiação divina, a chamar a Deus pelo termo terno e confiado de “paizinho”, o “abbá, Pai” que lemos na 2ª Leitura, tirada da Epistola de S. Paulo aos Romanos.
            Mas se assim se gera este homem novo, se cria este novo enxerto dos filhos de Deus (cf. Rom 6, 45), se liberta a criação inteira da desordem, e restaura todas as coisas em Cristo (cf. Ef 1, 5), que nos reconciliou com Deus (cf. Col 1, 20), as consequências do pecado original deixaram as suas marcas no homem e no mundo, e os homens continuam a sentir-se tentados a acreditarem que são deuses.
Precisamente o evangelho proclamado põe-nos diante de uma dessas consequências: o trabalho pode ser infrutífero e fonte de frustrações e crises várias, a começar pelo próprio desemprego. E não só a nível pessoal, mas até a nível mundial como de certo modo estamos a assistir e a sentir especialmente na nossa sociedade. Uma noite infrutífera, as redes rotas e vazias e até um certo medo perante o futuro.

As crises mundiais são crises de santos

            S. Josemaria, convencido de que “as crises mundiais são crises de santos” (Caminho 301) foi precursor daquilo que o Concílio Vaticano II proclamou como o chamamento universal à santidade, recordando algo que, com o andar dos séculos, estava esquecido na vida da Igreja.
Como explicava o então Cardeal Ratzinger num texto sobre o Fundador do Opus Dei: «A palavra santo recebeu, com o passar do tempo, uma perigosa redução, que ainda permanece nos nossos dias. Pensamos nos santos representados nos altares, com os seus milagres e virtudes heróicas, e imaginamos que se trata de algo reservado a uns poucos eleitos, entre os que não nos podemos incluir. Tendemos a deixar a santidade para uns poucos, desconhecidos, e a contentarmo-nos em ser como somos.
«Josemaria Escrivá veio despertarmo-nos dessa apatia espiritual. Não! A santidade não é o extraordinário, mas o ordinário, o normal para cada baptizado. Não consiste em gestas de um indefinido e inalcançável heroísmo, mas tem mil formas; pode levar-se a cabo em cada estado e condição. É o corrente. Consiste em viver a vida de cada dia cara a Deus, impregnando-a com o espírito de fé» (Homilia da Missa de acção de Graças pela Beatificação, 1992).
         Assim, na resposta de Pedro ao Duc in altum de Cristo que lemos no Evangelho de hoje «Andamos na faina toda a noite e não apanhámos nada mas... sob a tua Palavra lançarei as redes», pode ser vista como o compromisso de contar com Deus nos nossos afazeres quotidianos, unir a oração, o trabalho e o apostolado numa unidade de vida coerente e forte.
E dizia também o Card. Ratzinger: «Ser santo não significa ser superior aos outros; antes, o santo pode ser muito débil, pode ter cometido tantos erros na sua vida (Aquele «Senhor, afasta-te de mim, que sou um homem pecador» ao mesmo tempo que segurava os pés de Jesus). A santidade é este contacto profundo com Deus, fazer-se amigo de Deus: é deixar agir o Outro, o Único que realmente pode fazer com que o mundo seja bom e feliz.
«Por conseguinte, se São Josemaria Escrivá fala da chamada de todos a ser santos, parece-me que, em última análise, está a aurir desta sua experiência pessoal de não ter feito sozinho coisas incríveis, mas de ter deixado agir Deus. E por isso nasceu uma renovação, uma força de bem no mundo, mesmo que todas as debilidades humanas permaneçam sempre presentes.
«Deveras todos somos capazes (Duc in altum!), todos somos chamados a abrir-nos a esta amizade com Deus, a não abandonar as mãos de Deus, a não deixar de voltar sempre de novo ao Senhor, falando com Ele como se fala com um amigo, sabendo bem que o Senhor realmente é o verdadeiro amigo de todos, mesmo de quantos não podem fazer grandes coisas sozinhos» (Artigo no L’Osservatore Romano no dia da Canonização, 2002).


A aventura de ser cristão no mundo

            Se não podemos fazer grandes coisas sozinhos, com Deus sim que podemos, mesmo que a missão dos cristãos no mundo apareça tantas vezes uma tarefa desproporcionada, uma loucura, mas... sob a tua Palavra!
«Para cumprir esta missão, Josemaria Escrivá viajou incansavelmente pelo mundo, com o desejo de infundir a todos os homens a ousadia da santidade; quer dizer, a aventura de ser cristão ali onde a vida nos colocou.
«Desta maneira Josemaria Escrivá chegou a ser um grande homem de acção, que vivia da Vontade de Deus e que chamava os homens a amar a Vontade de Deus, mas sem cair em rigorismos. Sabia que não podemos salvar-nos sozinhos, e assim como o amor pressupõe o ser amado, também a santidade necessita de outro fundamento: que Deus aceite amar-nos.
«Aventurou-se a ser “um D. Quixote de Deus”; pois então não é quixotesco ensinar no mundo de hoje a humildade, a obediência, a castidade, o desprendimento dos bens materiais, a magnanimidade? A Vontade de Deus representava para S. Josemaria a verdadeira razão das coisas, e assim esteve em condições de descobrir o razoável daquilo que aparentemente era irracional» (1992). Como Pedro perante o desafio do mestre.
«Com tudo isto compreendi melhor a fisionomia do Opus Dei, esta ligação surpreendente entre uma absoluta fidelidade à grande tradição da Igreja, à sua fé, com desarmante simplicidade, e a abertura incondicionada a todos os desafios deste mundo, quer no âmbito académico, quer no do trabalho, da economia, etc.
«Quem tem este vínculo com Deus, quem mantém este diálogo ininterrupto pode ousar responder a estes desafios, e deixa de ter medo; porque quem está nas mãos de Deus cai sempre nas mãos de Deus. É assim que desaparece o medo e nasce, ao contrário, a coragem de responder ao mundo de hoje» (2002). Duc in altum!

Peçamos a Nossa Senhora que nos ajude a saber dizer como Ela e como Pedro: faça-se segundo a Tua Palavra e que, tal como ela se lançou solícita aos caminhos da montanha para ajudar a sua prima Isabel, e Pedro se aventurou ao largo para pescar, também nós, com a intercessão de S. Josemaria, saibamos dar-nos ao serviço dos outros nos caminhos divinos da terra, omnes cum Petro, ad Iesum per Mariam!

Pe. Jorge Margarido Correia






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