Navegando pela minha cidade
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Ribeira Negra
O Cais da Ribeira e todas as ruazinhas que trepam pela imensa escarpa acima são, hoje em dia, o ex-líbris do Porto. E está certo por muitas razões, mas a principal é porque foi exactamente aí que nasceu a cidade; nesse porto. Ali ainda se encontram casas medievais e ainda se encontra o povo que arrancou ao rio e ao mar a sua existência. Pescadores, marinheiros e estivadores que encheram naus e caravelas e porões de riquezas, são eles a genuína alma portuense.
Alma moída e calcada até à obscenidade pelos ricos e poderosos que viviam mais acima, aonde as cheias mortíferas desse rio de ouro nunca chegavam. Onde se morria na cama em vez de no rio ou no mar. Povo que ainda se lembra da fome. Da fome que era negra. Da fome de pão e de justiça e talvez seja por isso que Júlio Resende tenha intitulado o seu belíssimo painel de azulejos com quarenta metros de largura de Ribeira Negra.
O Barredo é bonito. Com suas ruas tortuosas; seus cachorros de granito e varandas de ferro batido, seus largos, seus nichos e “alminhas” o Barredo é bonito. Se dentro das casas houvesse pão, a escarpa do Barredo poderia ser mostrada. Assim, tem de ser escondida!...poderia ser mostrada, sim. Mas outro Barredo, com casas e armazéns de negócio ribeirinho, fontes, mirantes, jardins, gente limpa e bem-disposta. Um outro Barredo onde se possa narrar com verdade de como foi e quanto o Porto não rejubilou com a renovação total daquela grande desgraça; daquela nossa desgraça.[1]
É este novo Barredo sonhado pelo Padre Américo há mais de sessenta anos que é hoje o ex-líbris da minha cidade. Para onde correm todos os turistas - de dentro e de fora - como se fossem muitos outros rios afluentes a desaguarem no Douro.
Mas o Padre Américo não se limitou a sonhar. O Padre Américo resgatou da fome e da morte centenas de crianças e levou-as para a Casa do Gaiato onde lhes deu pão, dignidade e um futuro. Chamavam-lhe Pai Américo.
Muitos anos se passaram e vários planos de recuperação mudaram substancialmente aquela realidade. Agora há pescadores de recuerdos e souvenires; marinheiros dos mares da cerveja e estivadores de ansiedades.
Numa das “alminhas” referidas pelo Padre Américo pode ler-se – aos pés de um Cristo crucificado – a seguinte legenda: Sinhor dus Afelitos (com todos os esses escritos ao contrário) e noutro nicho, atrás de uma grade só está o vazio, a ausência; o Senhor da Boa Fortuna não está lá; levaram-no ou também foi pelo rio abaixo no desastre da Ponte das Barcas em 1809. Ou então, sepultaram-no noutro tipo de aflição.
Sempre que lá vou – ao ADN do Porto – gosto de recordar a letra da canção Porto Sentido do Rui Veloso que termina assim: E é sempre a primeira vez; em cada regresso a casa; rever-te nessa altivez; de milhafre ferido na asa.
Afonso Cabral
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