Navegando pela minha cidade
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DEF’s
Entrei na sala e o meu filho Martim deu um salto e correu pesadamente para me abraçar e depois de um abraço forte como o de um urso, voltou-se para os colegas radiante e cheio de orgulho e disse: meu pai, o meu pai!
Levantam-se quase todos; um deles, enorme – quase gigante – avança para mim gaguejando roncos, abre uma manápula no fim de um braço como um tronco de árvore e pousa-a delicadamente no meu ombro – como um pássaro a pousar - e diz carinhosamente por entre a espuma de cuspo que lhe sai da boca e dos dentes tortos: pai do Martim.
Outro, mirrado, pequenino, de olhos estrábicos e lacrimejantes, arrastando uma perna, avança também para mim dando um guincho esganiçado de alegria incontida e grita enquanto me agarra a mão: pai do Martim, pai do Martim.
Uma rapariga, agarrada com uma correia à cadeira de rodas, estica-se enclavinhando os dedos e torcendo os braços espasmodicamente, como que à beira de um ataque epiléptico, e dá gritos espaçados, com a alegria soltando-se livre dos seus olhos azuis.
Outro, quase cego de tanto arranhar os olhos com as unhas, tenta perceber o que se passa através da névoa que o encobre e a revolta que nem por instinto compreende.
Entretanto, a mão carinhosa do meu filho repousa no meu pescoço com a suavidade, a ternura e o orgulho da asa de um anjo da guarda.
Em toda a sala reina a alegria pura; genuína; simples e azul como as violetas silvestres. Brotando como água cristalina da rocha viva.
As funcionárias da APPACDM[1] olham felizes, atentas e de uma solicitude tão natural que se confunde e mistura com a dos meninos e meninas.
É na Travessa da Costibela – na freguesia de Aldoar – que fica a sede da APPACDM do PORTO que, gerindo mais oito centros e residências espalhadas pela cidade, vivem numa felicidade insuspeitada, cerca de trezentos deficientes mentais.
As nossas meninas e os nossos meninos - como lhes chamamos - mesmo que alguns tenham mais de cinquenta anos.
E a dor. A dor permanente, abafada e profunda. Como um grito num poço sem fundo. Tão permanente e tão profunda como o mar de quem quase toda a gente só vê a superfície azul ou verde e, às vezes, antes das tempestades, da cor do chumbo; plúmbea.
Porque o fundo do mar é só para os afogados. E isso é privilégio dos náufragos. Apenas.
Porque os que vivem à superfície não querem saber e não querem ver, porque têm medo do azul profundo. Porque, para eles, o mar é só para navegar num cruzeiro turístico, fazendo escalas nos portos da futilidade, do egoísmo e da indiferença.
Tecla 3! Tecla 3! Tecla 3!
Deficiente! Deficiente! Deficiente![2]
E a dor. A dor permanente, abafada e profunda. Como um gemido numa gruta; como uma escara em carne viva no coração; como uma pústula na alma; como uma lepra por dentro da pele, invisível.
E a dor. A dor permanente, abafada e profunda. Como uma agonia num deserto. A dor que quase me matou e por não me ter matado, tornou-me – não mais forte – mas melhor.
Mergulho nos olhos orientais e verde-mar do meu filho e o brilho da inocência, mais forte do que o da estrela da manhã, derrete-me a dor como o sol derrete a neve.
Beijo-o e abraço-o e murmuro-lhe no ouvido: meu filho.
Afonso Cabral
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