28/02/2011

Medicina e Apostolado - Mulher…porque choras?

Medicina e Apostolado
Naquela noite estava de serviço de urgência num grande Hospital Central.
O meu trabalho decorria no 4º piso.
Numa altura em que o movimento de pacientes o permitiu, desci, com alguns colegas, para tomar um café.
O nosso destino era uma espelunca, que dava pelo nome de Bar, frequentada por todo o tipo de pessoas que possamos imaginar e que acorrem, pelos mais diversos motivos, ao Serviço de Urgência de um hospital.
Também o pessoal hospitalar mais corajoso lá ia, enfrentar as salmonelas…
Esse “bar “, para bem da saúde nacional, regressou ao nada (de onde nunca deveria ter sido arrancado) em virtude das obras de remodelação entretanto efectuadas, já que funcionava paredes meias com a Urgência Geral.

Isto tudo vem com o propósito de justificar a necessidade que tínhamos, os meus colegas e eu, de atravessar a “Urgência” e, assim, termos acesso ao famigerado “bar “.

Nessa travessia, entre macas com doentes, médicos, enfermeiros, pessoal auxiliar, familiares dos utentes e curiosos… olhei casualmente para um canto discreto e…lá estava ela!
Uma mulher jovem, aparentando estar na casa dos 30 anos, só, em pé, encostada à parede fria, semblante triste e banhada em lágrimas…! A imagem viva da desolação (e, vim a saber depois, de uma profunda angústia).
Levado por um irreprimível sentimento de compaixão, fui ter com ela e perguntei-lhe qual o motivo das suas lágrimas.
Nesse momento pensei que, com uma palavra a um colega ou a um enfermeiro, pudesse resolver qualquer atraso na assistência ao seu caso e desfazer, talvez, uma sensação de abandono (justificada ou não).
O motivo da sua presença ali já se perdeu na minha memória, aliás não era relevante para a nossa história…

A causa das suas lágrimas, essa sim, era relevante e passo a contar:

Encontrava-se grávida, com cerca de duas ou três semanas de gestação, e as análises de rotina já realizadas tinham revelado rubéola em fase activa (?)
No laboratório, ao entregarem-lhe os resultados, alarmaram-na para o facto de aquele bebé correr o risco de nascer com graves alterações morfológicas e, sendo assim, o melhor a fazer seria recorrer ao aborto…!
Em casa, marido e familiares (um dos quais profissional de saúde) liam pela mesma cartilha.
O seu instinto de mãe dizia-lhe exactamente o contrário e a mera hipótese de provocar o aborto horrorizava-a!

De tudo o que lhe disse, durante a nossa conversa (já lá vão tantos anos…), só me lembro de lhe exprimir a minha solidariedade, afirmando-lhe que estava do seu lado, e que as hipóteses de malformações eram de 50%. Teríamos que nos agarrar aos outros 50% e esperar, com optimismo, que as coisas corressem bem.
Além disso as estatísticas valem o que valem e, na fase da gestação em que se encontrava – não havia certezas quanto ao tempo – aquele feto já poderia ter ultrapassado a fase crítica.
Assegurei-lhe que, a partir daquele momento, se assim o desejasse, teria todo aquele grande hospital ao seu dispor. Poderia tratar da parte burocrática e eu próprio me encarregaria da assistência pré-natal. Aceitou sem grandes hesitações.

Toda a gestação decorreu com normalidade, sem sinais directos ou indirectos de anomalias fetais.

Um belo dia, de manhã cedo, ao chegar ao meu local de trabalho, a enfermeira de serviço veio dizer-me que uma determinada puérpera queria muito falar comigo.
Intrigado, lá fui: era ela, com o seu bebé ao lado! Uma menina, perfeitíssima, linda como os amores!

Não posso exprimir o que significou o cruzamento dos nossos olhares e a paz que senti ao ver que tinha valido a pena. Tenho a certeza absoluta que ela sentiu o mesmo.
Entre muitas das coisas que me disse lembro-me de uma pergunta:
“E se eu fosse mostrar a minha filha ao laboratório de análises que me falou em aborto?”…
Engoli em seco. Não devemos ser “mausinhos”. Mas acabei por lhe dizer que achava boa ideia, pelo menos como atitude pedagógica…

Passados alguns anos, à saída da Missa de uma das grandes Igrejas do Porto, veio ter comigo.

“Lembra-se de mim?“

Claro que me lembrava; nunca mais a esqueço.
A filha estava já a entrar na puberdade, fresca e linda!
Aquela mãe bem merece aquela filha (pela qual lutou heroicamente) e aquela filha bem merece aquela mãe!

DEO GRATIAS!

A. S. 

1 comentário:

  1. Tenho esperança que o autor - meu grande amigo e compadre - médico com larguíssima experiência hospitalar dê a NUNC COEPI a honra e o gosto de poder publicar mais textos seus.
    A. S. tem uma visão muito concreta do Médico-Apóstolo e do extraordinário bem que esta realidade pode trazer ao meio hospitalar e a todos os que, no sofrimento, na dor e, por vezes angústia trazem aos que precisam de uma orientação firme, clara e positiva da dignidade do homem que sofre e da esperança e confiança no Médico Divino.

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