Navegando pela minha cidade |
Numa destas manhãs brancas de sol de Inverno fui até à Afurada. A melhor maneira de lá chegar é pelo rio. Vai-se até ao Cais do Ouro e espera-se pelo Flor do Gás. O Flor do Gás é um pequeno barco a motor que ganha a vida a fazer de ponte entre as margens do rio. Por dois euros (ida e volta) faz-se uma viagem de barco: lá está o apito a anunciar a partida no meio dos gritos angustiados das gaivotas; lá estão os cabos grossos que se desamarram das poitas; lá está o chape-chape das águas entre a amurada e o cais flutuante; lá estão as despedidas dos apaixonados; enfim, lá está tudo que levou Fernando Pessoa a escrever que todo o cais é uma saudade de pedra. E depois é a travessia entre marés e caíques e que é sempre uma grande viagem.
A Afurada já não é o que era. Agora já não tem pescadores que passem seis meses por ano nos mares gélidos da Terra Nova na frota bacalhoeira; já não tem muitas traineiras nem respectivas companhas para a pesca da sardinha; já não tem tuberculosos nem crianças com fome. Agora já tem um excelente cais e uma marina para iates e veleiros de luxo. Mas o povo e o mar são os mesmos de sempre: bravos e orgulhosos.
Nessa manhã de leste gélido, entre várias embarcações houve uma que me atraiu muito em especial: era uma grande traineira que se chamava MAR ETERNO. As duas letras do seu nome destacavam-se bem em branco sobre azul forte na frente da sua cabina: MAR ETERNO. E fiquei para ali parado e a pensar que em si mesmo, aquele era um nome dialéctico. Porque sendo o mar finito como podia ser infinito? Mas ao mesmo tempo não me parecia que houvesse contradição e achava-o perfeito. Quem assim o baptizara tinha de já ter visto muita tempestade e engolido muito sal; tinha de ser grande; tinha de ter vida interior. Foi Kierkegaard que disse: «quando falta a interioridade, o espírito cai na finitude. Por isso a interioridade é a eternidade ou a determinação do eterno no homem» e «o eterno é como as montanhas azuladas, a fronteira do temporal, mas o homem que vive com todas as forças no temporal nunca logra alcançar os seus confins»[1]. E foi a pensar na grandeza interior de quem assim baptizara uma traineira e a pintara de azul para que a estética revestisse a ética do MAR ETERNO que me voltei e vi um pequeno caíque assente em dois cavaletes no cais de betão virado de quilha para cima e que se chamava ADEUS ILUSÕES.
Estava certo: com este nome só podia ser um pequeno barco de quilha para o ar, encalhado no betão e que nunca iria ao mar alto nem pescaria nada.
Apesar de também ser pintado de azul.
Afonso Cabral
Magnifico!
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