OBSERVANDO |
Entrei na taberna e mandei vir um copo de tinto.
Reparei que a um canto da mesa estava um baralho de cartas.
Estas, ao que parece, estavam por naipes e em animada conversa.
Apurei o meu ouvido integral, liguei o gravador portátil e fui registando o debate.
O ás de ouros disse:
- Eu e a minha equipa somos a riqueza, a beleza e a segurança do mundo. Sim, porque, sem nós, nada. Nem os altares das catedrais têm dignidade, nem os governos têm caução para emitir e fazer circular moeda, nem os palácios têm nobreza e fidalguia, nem o dinheiro tem valor.
Convençam-se disto: sem nós nada!
O ás de espadas, revoltado, disse:
- Tu e os teus meteis-me nojo; é tudo arrogância e delírio do ter e do parecer. Eu e a minha equipa é que mandamos no mundo e desde o princípio.
Quando vós, os do ouro, ultrapassais os limites da justiça, nós, aí, fazemos a revolução.
"Às armas”, "Às armas”: bradamos; e tudo tem medo!
E não esqueçam que agora o nosso potencial dissuasor é quase ilimitado. Quem nos faz frente?...
Aí entrou o ás de copas com a voz entaramelada e com um sorrisinho trocista:
- Vós não sabeis nada do que é o ser humano ao qual, afinal, todos prestamos vassalagem.
O que ele quer é alegria, mesmo balofa, passageira. E somos nós os "copas" que lha damos.
Uma mesa sem nós não é nada, uma casa sem nós também não.
Faz-se porventura um casamento, uns anos, um banquete de formatura, sem nós.
Somos nós que damos o espírito, a animação e a reinação ao mundo.
Aí tive sede e bebi mais um copo de tinto.
O ás de paus já há muito que queria entrar.
Fez sinal, fez-se silêncio e ele disse:
- Agora sempre me convenci que caminhamos todos para a loucura colectiva. Pois vós não vedes que o pau, a árvore é o que há de mais necessário no mundo?
Será preciso comprová-lo?
Cortem as árvores e digam-nos depois o que fica. Homens sem oxigénio, asfixiados, mortos.
Nós somos o berço, a respiração e o caixão.
Por mais que os custe a ouvir, o certo é que a vida está nas nossas mãos.
É preciso acrescentar mais alguma coisa? Fez-se silêncio total. Terminara o debate. Aí pensei: de certo há hoje eleições no baralho!
Isto é propaganda eleitoral...
Desliguei o ouvido integral e o gravador portátil, paguei o tinto, e, como um rafeiro contente com a sua presa, corri para casa a saborear tão deliciosa e estranha conversa.
Para os devidos efeitos aqui a transcrevo e gostosamente ofereço aos meus prezados leitores e eleitores.
(P. adriano de brito duarte dos santos, Não tenhais medo!, Editorial Missões, Abril de 1994, pg 30-32)
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