DENTRO DO EVANGELHO
(Re Jo
XV)
‘Tu! Vem e segue-me!’
Olho
em volta para ter a certeza de que é mesmo a minha pessoa que Ele interpela.
Não me restam dúvidas, é mesmo comigo! Pergunto-me porquê, que tenho eu de
“especial” para querer que O siga?
Tenho
as minhas pequenas virtudes e enormes defeitos, a minha inteligência e a minha
ignorância, a minha vontade e a minha preguiça, o meu ânimo e a minha letargia.
Sou, assim, como que duas, ou mesmo várias, pessoas numa só, e, não obstante,
Ele repete aquele chamamento doce e imperioso ao mesmo tempo, simultaneamente
expectante e autoritário. Fico-me mais um pouco examinando o que se passa, o
que tenho de fazer agora, as coisas que tenho “entre as mãos”, aquilo a que
meti ombros, os entusiasmos que me excitam a imaginação, as prioridades que
estabeleci – se é que o fiz, de facto – e pergunto-me: Vou? Não vou? Agora?
Mais logo?
Percebo
que não posso deter-me muito mais porque Ele, depois de me chamar, seguiu o Seu
caminho e afasta-se de mim. Não Se volta para trás a ver se O sigo, se atendi
ou não o apelo que me fez; de certo modo parece confiante que entendi e atendi
o que me disse. Sem grandes pressas, confesso, começo a andar na Sua peugada,
deitando contas à vida, arrumando mentalmente as coisas de enormíssima
importância que vão ficar por fazer, o conforto que vou desdenhar, talvez as
críticas que irei ouvir. Mas, aos poucos, começo a dar-me conta de uma
realidade: o peso insignificante de todo esse amontoado de coisas e, até, o
pouco interesse que têm. Apercebo-me, com alguma surpresa, confesso, que a
minha decisão de O seguir não causou transtornos a ninguém, que a vida não
parou, que tudo continua paulatinamente a “funcionar” como se eu não fosse
imprescindível, absolutamente necessário. (Parece-me que, de facto, estava
convencido do contrário). Sim… estive parado muitas vezes na vera do caminho
sem saber para onde ir ou, talvez, na esperança de não de ir a lado nenhum, de
poder ficar quieto sem me preocupar com coisa nenhuma. Não sinto grande
dificuldade em acompanhá-lo, a Sua passada é firme, mas certa, sem hesitações.
Vejo,
sinto, que conhece muito bem o caminho e, mais, sabe perfeitamente para onde
vai. Sinto-me possuído como que de uma estranha segurança não obstante a
incógnita do destino final. Ele, sinto-O, não Se engana, não pode enganar
ninguém.
O
interessante é que sendo um caminho a subir, cada vez para mais alto, não sinto
o esforço que normalmente se sente quando se sobe.
Talvez
se deva ao facto de a carga que me pôs nos ombros ser leve, muito leve… mesmo
para a imensidão que representa. Também não me sinto preso não obstante o jugo
com que me cingiu o pescoço, sinal que me considera propriedade sua; porque é
tão suave que não prende como um jugo autêntico, antes parece um elo de uma
cadeia de amor e, por conseguinte, muito suave a e agradável. Sinto-me bem.
Agi
correctamente, tenho a certeza, em acolher o Seu chamamento, o Seu convite: Tu!
Vem e segue-me!
Não
sei porque me disse isto, porque me escolheu, há tantos como eu que esperam,
alguns até sem o saberem, por um chamamento igual, por isso sinto-me
privilegiado pela escolha.
Ainda
não Lhe disse muitas coisas, acho que não é preciso, Ele sabe o quero
dizer-lhe, mas, nas confidências de viajante, contei-Lhe das minhas
expectativas, esperanças, ousadias, desejos por satisfazer. Sem querer, acho,
fui abrindo o coração e em frases breves e curtas, deixei sair o que há tanto
tempo estava como que travado dentro de mim.
Não
tenho vergonha ou receio que me ache tonto, com pouco critério, talvez
inconsequente. Quis sempre tantas coisas e ao mesmo tempo!
Ouve-me
sem me olhar, não pergunta nada, não faz um gesto de admiração ou surpresa.
Parece que tudo quanto Lhe possa dizer já o conhece, mas, estranhamente, parece
gostar que, não obstante, lho diga, Lhe conte as minhas privacidades, patenteie
as ilusões e as quimeras do meu espírito sonhador.
E, a caminhada,
prossegue.
Estamos
agora tão alto que posso, olhando à minha volta, ver o que deixei, considerar o
que fiz e, com grande pena, aperceber-me do que nunca cheguei a fazer. Como um
filme, sem protagonista, nem guião, nem enredo; um filme simples, de uma
história breve, comum e um pouco anónima. Não me parece “grande coisa”. Não
trouxe nenhum equipamento especial para esta caminhada, vim tal qual estava,
tenho a certeza que não irei precisar de nada.
Aliás
Ele disse-me: nem cajado, nem duas
túnicas, nem alforge…
Acompanha-nos
uma multidão enorme, a perder de vista e que vai engrossando constantemente
como uma onda do mar, mas, embora eu tenha consciência dela, parece-me, ao
mesmo tempo, que só existo eu, que só eu Lhe interesso, que só a mim dedica a
Sua atenção.
Compreendo
que também cada um, cada uma, dessa enorme multidão, ouviu as mesmas palavras: Tu! Vem e segue-me!
Uns
nota-se bem, estão há muito na Sua companhia andando o Seu caminho, outros, como
eu, chegaram mais recentemente e ainda olham, de vez em quando, para trás.
Alguns, acabam por desistir, sentam-se à beira do caminho e vão-se deixando
ficar. Parecem tristes, abatidos, talvez recordem com apego o que terão deixado
e que, julgam, lhes faz falta.
O
que estranho é que sendo eu tão decidido, tão senhor das minhas acções, tão
categórico nas escolhas que faço, não me tenha ocorrido perguntar-lhe para onde
vamos, onde me leva. Poderia pensar, por momentos, que estou a agir como um
“zombie” sem vontade ou sem querer tê-la, ou, então, que não consegui resistir
à Sua voz, senti que não teria alternativa. Mas não! Sinto-me bem vivo e cheio
de força, algo estranho, assim como que um ímpeto que se foi transformando numa
certeza.
A
certa altura pensei dizer-Lhe: ‘não sei se sou capaz de Te acompanhar por muito
mais tempo’! Mas percebi, quase imediatamente, que Ele conhece esse meu temor,
esta minha fragilidade e que, não obstante, me quer tal como no primeiro
momento quando me disse: ‘Tu! Vem e segue-me!’
Estou
convicto que, sabendo Ele o que sou e como sou, me compeliu a segui-Lo é porque
me quer junto de Si, mais perto, como companheiro íntimo e incondicional e,
portanto, eu não poderia ter feito outra coisa que segui-Lo. Por isso, do mais
fundo do meu coração Lhe digo: ‘Eu, Senhor, sigo-Te mas, peço-Te: não me
largues da Tua mão porque me perco no caminho e, depois, não saberia para onde
ir. Quero ser, tal como aqueles três discípulos, confidente de Jesus. Desejo
sinceramente ter com Ele uma atitude próxima, íntima de respeito e confiança,
de uma abertura e transparência tais que não exista nada, absolutamente, que
não Lhe diga ou revele. As “minhas coisas” todas, aquilo que penso, e repudio,
o que me agrada e o que me desgosta, tudo a que me sinto agarrado e o desejo de
me “soltar” dessas prisões, desses laços pequenos e grandes que me têm prendido
nas esquinas da vida diária. Pedir-Lhe sempre que me ajude a ver o que é
realmente importante, o que interessa e, sobretudo, a ter total confiança n’Ele
e que tudo, quanto me sucede ou possa suceder, é para meu bem.
Chego
a esta conclusão simples e claríssima: ‘Pois se Ele me conhece de que me vale
não Lhe contar tudo? Se Ele sabe como sou e, mesmo assim, me quer, me ama, Se
preocupa comigo, porque me aflijo tanto com as minhas falhas, as minhas
deficiências e defeitos?’
‘Desprendido de tudo: O que tenho e o que não tenho.
Desprendido dos "desejos de ter", mesmo daqueles que parecem
legítimos. Desprendido das coisas grandes e das pequenas que quase não têm importância.
Desprendido das "minhas coisas", das "minhas vontades",
daquilo que é "meu". Coração grande, aberto a todos e, sobretudo,
aberto a Deus para que o encha o amor a Si e aos outros, não deixando lugar a
mais nada.
Se eu pudesse, melhor, se realmente quiser ser íntimo
de Jesus, nada mais tenho a fazer que deixá-Lo tomar posse de mim, entregar-me,
gostosamente nas Suas mãos amorosas com plena confiança e a certeza que não
poderia estar melhor.
Nem as considerações do pouco que sou, dos meus
defeitos, das minhas faltas de coerência e tantas… tantas pequenas coisas que
arrasto como um lastro que me mantém sujeito a uma quase servidão de manias,
tiques, falsas depressões, a minha dignidade ofendida por tantos e tantas vezes,
o não reconhecimento de como sou bom, especial… nada disto e muito mais, é
desconhecido de Jesus Cristo.
E, mesmo assim, Ele quer, procura a minha intimidade.
Lembro-me do publicano que nem coragem tinha de levantar os olhos ao alto.
Mantinha-os baixos e batia no peito dizendo: «Senhor, tem piedade de mim que sou um
pecador» e encho-me de coragem já que, tenho a certeza, (…) devemos
sentir-nos fortes com tais jaculatórias, feitas com actos de dor amorosa e com
desejos de divina reconciliação a fim de que, por meio delas, exprimindo diante
do Salvador as nossas angústias, confiemos a alma ao Seu Coração misericordioso
que a receberá com piedade».
Como é possível? Como a misericórdia infinita de Deus
não se esgota neste constante “ir e vir”, das “flutuações” do meu carácter?
Como pode o Senhor olhar para mim que estou tão longe
da postura humilde do publicano? Eu,
sempre em “bicos dos pés” tentando sobressair, fazer-me notado, cheio de mim
mesmo e da “excelência” dos meus talentos, das minhas capacidades?
«Senhor: quase que não vejo a necessidade de Te pedir
humildade. Ser humilde é, para mim, um objectivo que persigo desde sempre.
Sempre longe, parece, cada vez mais distante porque, pobre de mim, sou formado
por este barro duro e seco que é o meu carácter, que resiste a ser moldado
pelas Tuas divinas mãos.
Mas não Te importes, Senhor, não Te importes com este
barro que não vale nada. Parte-o, esfrangalha-o nas Tuas mãos amorosas e, estou
certo, daí sairá algo que se possa - que Tu possas - aproveitar. Não dês
importância à minha prosápia, à minha vaidade, ao meu desejo incontido de
protagonismo e evidência. A verdade que Te confesso é esta: Não sei nada, não
posso nada, não tenho nada, não valho nada, não sou absolutamente nada».
E, o “oleiro divino” uma e outra vez refaz a mesma
peça de que sou feito. Retoma o Seu ”trabalho” da minha santificação como se
nada se tivesse passado, como se eu não estivesse feito nos pedaços que as
minhas frequentes quedas originam. E, no entanto, é assim que é!
Às
vezes – quantas vezes! – parece que estamos sozinhos no mundo.
Rodeados
de pessoas, no afã da vida diária, no corre-corre de todos os dias, mesmo
assim, estamos sozinhos.
Sentimo-nos
“individuais” como se, no mundo, não existisse mais ninguém senão nós.
Rezamos
e, a oração sai insípida, árida.
Sentimo-nos
desconfortáveis, achamos que “não vale a pena” e… deixamo-nos ir.
Logo
entra o desânimo, o descoroçoamento e, a tempo, a tristeza.
«Clamei
bem alto e não me ouvias! No denso nevoeiro da doença, mergulhado num mar
povoado de estranhos seres, sem saber se estava acordado ou adormecido, sem ter
a noção onde começava e acabava o meu corpo: a cabeça... os pés... as mãos...;
“aparafusado” numa cama que fazia parte de mim... os calcanhares...? (como é possível
doerem tanto, os calcanhares?!...), clamei por Ti e não me ouvias! E, eu,
mergulhava outra vez naquele oceano de perdição e voltava à superfície e de
novo me perdia. Havia uma espécie de estratificação dos pensamentos, tinha tudo
ordenado, muito bem organizado na minha cabeça: azuis, encarnados, verdes...
dois azuis, três verdes... não... agora é um verde e depois... três ou quatro
doutra cor qualquer. (decidi que as cores não eram importantes). Nada fazia
sentido, estava vivo...?; morto...?; moribundo...? calado...?; aos gritos...? e
o ar? Sim o ar: era solene, composto, digno ou, pelo contrário tinha a boca
retorcida num esgar, os olhos vítreos esbugalhados, o gesto descontrolado? ‘Ne
timeas!’’ Ouvi-te, finalmente! Percebi, então, só então, que estava tão
preocupado com a minha doença, o meu sofrimento, que ficara incapacitado para
Te ouvir...
Tranquilo,
fui repetindo até adormecer: Ofereço..., ofereço..., ofereço!
Faça-se,
cumpra-se a Tua Justíssima e Amabilíssima Vontade sobre todas as coisas. Ámen.
Ámen.» (Memórias do Hospital, Synestesia)
Como
somos pequenos… e fracos… e débeis… Tantas coisas que nos afectam o espírito e
condicionam a vontade! Por vezes há como que um alheamento da realidade,
pretendemos conseguir resolver as dificuldades ignorando-as, na esperança,
fútil, que elas se resolvam por si mesmas. Outras vezes dizemos para nós mesmos
que já rezámos pelo assunto – até fizemos uma novena – e, portanto, tudo se
resolverá.
Que
tentação! ‘Já rezaste… deixa lá…’
O maligno sabe muito bem por onde
pegar, e, embora não possa conhecer o nosso íntimo, pelos sinais exteriores
apercebe-se da nossa fragilidade, talvez momentânea, e não perde ocasião de a
aproveitar.
«Os espíritos imundos não podem
conhecer a natureza dos nossos pensamentos. Unicamente lhes é dado adivinhá-los
mercê de indícios sensíveis, ou examinando as nossas disposições, as nossas
palavras ou as coisas que indicam uma propensão da nossa parte. Ao invés o que
não exteriorizamos e permanece oculto nas nossas almas, é-lhes totalmente
inacessível. Inclusive os próprios pensamentos que eles nos sugerem, o
acolhimento que lhes damos, a reacção que nos causam, tudo isto não o conhecem
pela própria essência da alma (...) mas, em todo o caso, pelos movimentos e
manifestações externas.
Temos
sempre de pôr todos os meios na procura do que necessitamos. O Senhor não
espera de nós nada que vá além das nossas forças e das nossas capacidades. Mas
espera que as utilizemos, todas, com critério e sem desfalecimentos.
Jesus
não é uma espécie de milagreiro a quem recorremos nas aflições, nas
dificuldades, resolvendo as coisas, ou concedendo sem demora aquilo que
pedimos. É verdade que Deus é infinitamente bondoso, mas também é infinitamente
justo.
A
Sua justiça pede, portanto, um empenhamento pessoal, dedicado e completo.
Atrever-me-ia
a dizer que, muitas vezes, o Senhor concede a graça que pedimos, não pela graça
em si, pelo bem em que ela consiste, mas movido pelo esforço, empenho e
persistência que pusemos da nossa parte em conquistá-la.
O
contrário será, talvez, uma espécie de tentação a Deus, apresentar-nos assim,
miserandos, aflitos e até chorosos, ante o Senhor, pedindo-lhe que nos conceda
isto ou aquilo. Com Deus não se fazem chantagens ou exercem pressões, ou se
fazem negócios do género: ‘se me concederes isto eu, faço aquilo’.
No
nosso mar “particular”, que é a nossa vida, não estamos nunca sozinhos. Na
margem, Jesus espera uma oportunidade de subir para a nossa barca para nos
indicar o melhor rumo a seguir. Quer que vamos mar adentro «duc in altum», mas sabe muito bem que
somos incapazes, por nós mesmos, de o fazer. E, então, dispõe-se a dar-nos as
instruções precisas, fundamentais que, só um timoneiro divino pode dar.
Remar
sem descanso, com um ritmo certo e vigoroso, levantar as velas quando houver
vento favorável, recolhê-las, cautelosamente, quando a tempestade se aproxima,
corrigir o rumo quando as correntes nos desviam da rota e, finalmente, lançar a
rede onde só Ele sabe que há peixe para recolher. É um trabalho de uma vida,
sem descanso nem distracções, somos pescadores não do “nosso mar” mas do oceano
divino e, o mandato que recebemos é bem preciso: Pescadores de homens!
‘Quais
homens?’ pergunto-me às vezes. E a resposta é sempre a mesma: ‘Todos os homens, todos são Meus filhos, por
todos dei a Minha Vida’.
Há
para aí alguns – muitos, infelizmente – que andam perdidos, embrulhados nas
redes das paixões deste mundo, confundidos com as correntes das opiniões dos
outros, desnorteados com os rumos que lhe sugerem. ‘Tu – diz-me Ele a mim – és
importante, imprescindível para os trazeres de volta à praia. Aqueles que
esperam por ti, se não os encontrares e salvares, perder-se-ão porque não há
substitutos para a tua missão.’
«Por
cima do meu mar revolto levantou-se um nevoeiro espesso que me envolvia como
num manto ou, talvez, como uma mortalha bem à minha medida já que não conseguia
mexer-me minimamente. Queria muito tocar o nevoeiro, a sua textura, perceber de
que era feito. Parecia-me como que uma espuma das ondas do mar bravio, mas, ao
mesmo tempo, também se apresentava como uma nuvem etérea de uma tarde de
Inverno, mas as minhas mãos não me
obedeciam. Estavam onde deviam estar, nas extremidades dos braços,
aparentemente prontas e disponíveis para o que fosse preciso, mas... não…, não
conseguia movê-las, ou melhor, moviam-se como se tivessem vontade própria, para
coçar uma comichão no nariz, a mão direita ia “viajar” até à nuca, depois ao
pescoço e, quando lhe parecia, lá tocava, então, no nariz. Entretanto, a
esquerda, para carregar no botão do telemóvel para atender uma chamada,
encarava o serviço como algo tão difícil e custoso que, normalmente, quem me
chamava, desistia.
‘Nevoeiro
e mar... Que mais, Senhor, que mais mandas? Olha que eu... não posso, sou
fraco, débil, tenho medo!’
‘Ne timeas! ‘
Ouvi-Te e... deixei-me “ir” murmurando
como podia: 'Gratias tibi, Gratias tibi'.»
O
medo! O medo paralisa.
O
medo revela, sempre, uma atitude de cobardia pessoal. Assumir as consequências
das nossas atitudes, dos actos que praticamos é, muitas vezes difícil, nomeadamente quando, por um motivo ou
outro, temos a percepção que merecemos crítica ou reparo.
Faz
parte da vida de todos os dias, a vida corrente de cada um, ter de assumir
responsabilidades, grandes ou pequenas, dar respostas, tomar decisões. Fugir ou
pretender ignorar, ou, muitas vezes, adiar para uma ocasião que consideremos
mais oportuna ou favorável, não resolve nada, bem pelo contrário, talvez agrave
e complique, desnecessariamente, a questão.
Quantas
vezes nos sentimos ufanos de comentários favoráveis a nosso respeito e nos
deixamos invadir por uma confortável sensação de bonomia quando,
complacentemente, ouvimos um elogio? Não pensamos que, o elogio que nos é feito
vem de alguém que não nos conhece verdadeiramente, isto é, não imagina sequer os
muitos defeitos do nosso carácter?
Então,
surge o medo que se venha a saber, que de alguma forma descubram esses
defeitos, essas deficiências que conhecemos bem.
Medo
da vida… sim… medo da vida, do futuro, do dia de amanhã. O dia de hoje, este
dia concreto em que estamos, é que é importante e tem de ser vivido com
plenitude, não descurando nenhuma oportunidade que se nos apresente de fazer
algo bom, de emendar algo errado que fizemos ontem, de concretizar aquele plano
que tínhamos guardado.
Hoje
é o tempo oportuno, a ocasião favorável.
Medo
do comprometimento em algo que exija de nós desprendimento, serviço, doação.
Daquilo que pode alterar a tranquilidade do nosso viver, o ritmo a que estamos
habituados do esquema de vida que fomos construindo ao longo dos anos e onde
nos sentimos confortáveis.
Medo
de corrigir o que está mal nos outros de, com caridade,
mas com desassombro, apontar o erro, o engano.
Medo
de “ficar mal” se nos mantivermos firmes nas nossas convicções bem informadas e
não transigirmos com o erro – propositado ou fruto da ignorância – que outros
divulgam à nossa volta.
Medo
de procurar conselho, ajuda quando pensamos que esse conselho, essa ajuda, vem
exigir de nós novas atitudes de correcção interior.
Medo,
finalmente, de não sermos ouvidos nas nossas preces quando consideramos a nossa
total falta de merecimento.
Não
revelam, todos estes “medos” falta de coragem, ou seja, cobardia?
Jesus
Cristo deu-nos numerosos exemplos do que é não ter medo.
Por
exemplo, quando pegou num azorrague expulsou os vendilhões do templo, não teve
medo de ser mal interpretado, nem então nem nos séculos futuros, e poder ser
considerado um arruaceiro intransigente e fanático.
Fez
o que achou que deveria ser feito, exactamente para nos ensinar o que, em
situações semelhantes de adulteração e profanação do sagrado – e tantas há nos
nossos dias – devemos fazer.
As
Suas atitudes eram tão desassombradas que Lhe perguntavam: «Com que autoridade fazes estas coisas»
E, Jesus, não ficou “mal”, bem pelo contrário.
A
Sua resposta é a adequada às pessoas preconceituosas que o interrogam: «Também Eu vos
farei uma pergunta; respondei-me e dir-vos-ei, então, com que autoridade faço
estas coisas: O baptismo de João era do Céu, ou dos homens? Respondei-me.»
Estão bem gravadas no nosso espírito duas cenas que o
Evangelho nos relata e que ilustram bem o medo-cobarde que se apodera de nós em
situações de extrema tensão.
Quando Pilatos pergunta a Jesus o que é a verdade, o
Evangelho diz que, sem esperar pela resposta, voltando as costas se retirou.
Na história da humanidade, ficará para sempre
registada esta atitude do Pretor romano. Não quer ouvir a resposta de Jesus.
Intimamente sabe que, se a ouvisse, completa e esclarecedora, como não podia
deixar de ser, vinda do Salvador, ela transformaria por completo a sua atitude
perante o que se estava a passar no seu tribunal e, efectivamente, o que
desejava era acabar rapidamente com um processo que, intrigando-o sobremaneira,
não sabia como resolver.
Em suma, não quis saber com clareza os fundamentos da
justiça que lhe competia administrar.
Quando a servente do Sumo-Sacerdote interpela Pedro
sobre Jesus, ele responde como sabemos. E invadido por um autêntico pavor de ser
conotado, de alguma forma, com o Mestre que, ainda poucas horas antes, afirmara
querer defender com a espada, se fosse preciso.
Nestas duas atitudes, o medo é, claramente, cobardia
e, ambas têm consequências graves.
Se Pilatos tivesse ouvido a resposta de Jesus,
provavelmente a sua decisão ter-se-ia alterado e o desfecho da tragédia da
Paixão do Senhor poderia ter sido outro.
Se Pedro assumisse que conhecia Cristo e que pertencia
ao círculo restrito dos Doze escolhidos, talvez sofresse alguns dissabores,
embora os que acusavam Jesus, obcecados como estavam nos seus propósitos de O
levarem à morte, talvez nem prestassem atenção a tal.
As
duas atitudes são semelhantes, mas não se equivalem. Pilatos é um homem
esclarecido, culto, entendido em leis, habituado a mandar, a tomar decisões;
Pedro é um simples pescador, sem grandes letras e atordoado com os últimos
acontecimentos.
A
intervenção de Pilatos na história da salvação humana acaba aqui, com esta
imagem negativa e contrária a toda a ética; a de Pedro, não, arrepende-se
amargamente, obtém o perdão de Jesus, é confirmado por Ele como Seu sucessor herdeiro
directo à frente da Sua Igreja e, mais tarde, numa atitude de suprema humildade
e arrependimento, quer que Marcos deixe lavrado com pormenores, este triste
episódio.
O
primeiro, segundo consta, morre em desgraça, o segundo, merece o supremo prémio
do martírio.
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