Sou
servo de um membro do Sinédrio chamado Nicodemos e tenho-me dado conta que
alguns dos meus colegas trocam conciliábulos entre si a propósito de um judeu
que ultimamente tem provocado controvérsia um pouco por todo o lado.
O
nome desse homem, natural de Belém na Judeia é Jesus.
De
tal forma essa controvérsia foi crescendo que o Sinédrio tomou uma posição
"oficial" sobre o assunto que, em suma, era: esse Jesus não era
pessoa credível, desrespeitava a Lei, nomeadamente o Sábado, ensinava sem que
tivesse autoridade para tal.
Juntamente
havia notícias de actos extraordinários como curas de doentes que não passariam
de "passes de magia" e muitas outras coisas condenáveis tal como
dar-se com pecadores conhecidos e meretrizes.
Por
isso mesmo o Sinédrio declarou esse Jesus como réprobo inaceitável.
Como
Nicodemos me tratava muito bem e bastantes vezes conversava comigo, atrevi-me a
falar-lhe sobre o assunto.
Depois
de me ouvir disse-me que de facto se lhe levantavam numerosas dúvidas a
respeito e por isso agendara um encontro com esse Jesus, encontro que desejava
discreto e em segredo.
Convidou-me
para o acompanhar.
No
seguimento do convite feito acompanhei Nicodemos no seu encontro com Jesus; era
de noite, de alguma forma o meu Amo queria que nada constasse.
Recomendou-me
que visse o que visse ouvisse o que ouvisse mantivesse silêncio. (Como se
preciso fora tal recomendação).
Na
dobra de um caminho Jesus, sozinho,estava sentado num tronco caído à nossa
espera.
Sem
detença perguntou a Nicodemos o que queria.
O
meu amo falou durante algum tempo sobretudo fazendo perguntas.
Quando
acabou Jesus disse-lhe algo surpreendente "És Mestre em Israel e não sabes
essas coisas"?
Nicodemos
era um homem sério e correcto e por isso respondeu que se tinha inteirado dos
ensinamentos que Jesus espalhava por toda a parte, que lhe pareciam justos e
conforme a Lei, mas que havia algumas coisas que não entendia, principalmente «para
entrar no Reino dos Céu é preciso nascer de novo», como é possível, dizia «a
um homem sendo velho nascer de novo? Acaso pode reentrar no ventre da sua mãe?!»
Jesus,
então explicou-lhe que é não é na carne mas no espírito que o homem que deseja
alcançar o Reino do Céu tem de renascer. Voltar atrás, emendar o comportamento,
perdoar as ofensas, amar a todos, mesmo os inimigos, considerar todos como seus
iguais, como seus irmãos.
Passado
mais algum tempo, perguntas e respostas, afastamo-nos.
No
regresso o meu amo confessou-me com um suspiro do fundo do coração: 'Este
caminho para o Reino dos Céus não é fácil de seguir mas, eu, estou disposto a
tentar e a tudo fazer para que outros me sigam. Vejo claramente que só assim é
possível alcançar a Felicidade Eterna’.
Reflectindo
A cama 28 da
enfermaria do hospital onde passei a última semana estava ocupada por um homem
de idade indefinida, mas, talvez, rondando os setenta anos. Um sujeito com
aspecto rude, fechado num mutismo feroz, que comia com sofreguidão as refeições
que lhe serviam até à última migalha.
No terceiro dia
depois da minha cirurgia, ao fim tarde, um enfermeiro abeirou-se da sua cama e
comunicou-lhe:
‘Amanhã, você, vai-se
embora. Teve alta. Percebeu?’
O homem teve uma
reacção extraordinária: disse apenas:
Estou fodido!
Fiquei a pensar naquilo
até porque, pela noite fora o homem ia repetindo sem cessar:
Estou fodido?
Esta expressão era
proferida com tal convicção que percebi que realmente vinha do fundo do seu
íntimo mais recôndito como se o facto de ter “alta” no dia seguinte fosse uma catástrofe,
algo terrível e sem remédio.
Na manhã seguinte,
depois deter saído sem dar palavra a nenhum dos companheiros de enfermaria,
chamei um enfermeiro e perguntei o que se passava.
Contou-me que o
sujeito estava ali já há vinte dias tendo chegado num estado lastimoso e grave,
tendo sido sujeito a uma cirurgia urgente à próstata e que se encontrava bem.
Há muito que deveria ter tido “alta” mas tinham conseguido mantê-lo ali por
mais umas semanas porque se tratava de um pobre homem, sem recursos, morando
sozinho num casebre sem um mínimo de condições e que tinha sido trazido para o
hospital por um amigo – miserável como ele – num triciclo destes com uma caixa
aberta.
A Segurança Social
tinha sido alertada e, só agora, parece, iriam acompanhar a situação.
Fiquei envergonhado,
senti-me rasteiro e tão “pouca coisa”!
Transportado na caixa
de um triciclo!
Lembrei-me daquele
outro que os companheiros desceram por um buraco aberto no telhado e colocaram
aos pés de Jesus;
Da minha casa
confortável onde nada me falta;
Das minhas Filhas, os
meus Netos, os meus amigos que me telefonam, fazem companhia, se interessam por
mim;
Do meu automóvel que
me leva onde eu quero com conforto e segurança; E senti-me ainda mais rasteiro
e “tão pouca coisa”, porque aquele homem era – é – um filho de Deus como eu só
que mais genuíno, sincero, sem sonhos nem ambições e estava dramaticamente
fodido, porque iam acabar a cama confortável do hospital, a assistência da
enfermagem, as refeições quentes.
Para ele, aquele
“grito da alma”: ‘estou fodido’, significava o fim de um sonho, de um intervalo
de um mês na sua vida miserável, um grito que significava: acabou-se!
Esta história –
verdadeira, repito – termina com a chegada, umas horas mais tarde, do tal amigo
que o vinha buscar ao hospital no triciclo e que quando lhe disseram que o
outro já se tinha ido embora saiu a correr para tentar encontra-lo. O triciclo
estava à porta do hospital para os levar de volta para a vida real, concreta,
que ambos conheciam bem.
O amigo não falhara,
não faltara ao seu amigo!
Aquela palavra – que
talvez nos choque porque somos bem-educados, correctos, impecáveis – tem um
peso de toneladas de miséria e uma dimensão de hectares de cicatrizes, marcas e
sinais de uma vida difícil, sempre no limite da sobrevivência.
Não… nós não a
utilizamos porque preferimos lamentar-nos porque nos falta qualquer coisa, ou
não recebemos aquele telefonema, ou pura e simplesmente estamos fartos,
cansados, impacientes com a “maçada” da cirurgia, do hospital, da recuperação
que deveria ser instantânea, imediata, sem dores nem incómodos.
Passado algum tempo,
senti-me melhor porque me atrevi a pensar que, pelo menos uma vez na sua vida,
aquele homem da cama 28, tivera alguém que rezou por ele e deu graças por lhe
ter dado a oportunidade de reconhecer o OUTRO, o IRMÂO, o PRÓXIMO.
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