(Cfr. Lc 8, 49-56)
Detendo-nos nas
palavras de Cristo, «a paz esteja
convosco», compreenderemos que «são ao mesmo tempo, palavras de juízo e de
graça, de morte e de vida: e isto, que vale, em primeiro lugar, para as pessoas,
vale também para os diversos bens deste mundo que estão marcados tanto pelo
pecado do homem como pela bênção de Deus.
Por si mesmo e
pelas suas próprias forças não há ninguém que se liberte do pecado e se eleve
acima de si próprio, ninguém absolutamente que se liberte a si mesmo da doença,
da sua solidão ou da sua escravidão, mas todos precisam de Cristo como modelo,
mestre, libertador, salvador, vivificador.
De facto, na
história humana, mesmo sob o ponto de vista temporal, o Evangelho foi um fermento
de liberdade e de progresso e apresenta-se sempre como fermento de
fraternidade, de unidade e de paz». [1]
Porque, em última
análise, «não bastam (...) as análises sociológicas para trazer a justiça e a
paz.
A raiz do mal está
no interior do homem», [2] e porque «a paz
autêntica e a efectiva segurança não se obtêm somente impedindo guerras e
conflitos, mas também promovendo o desenvolvimento e criando condições que
garantam plenamente os direitos humanos fundamentais». [3]
Em concreto, a
verdade está em que não se conseguirá vitória alguma, por mais capazes que
sejam as forças e aguerridas as tropas sem a «paz com Deus, efeito da
justificação e afastamento do pecado; a paz com o próximo, fruto da caridade
difundida pelo Espírito Santo; e a paz connosco mesmos, a paz da consciência,
proveniente da vitória sobre as paixões e sobre o mal». [4]
No fundo e ao cabo
‘ninguém pode dar o que não tem!’.
Levanta-se muitas
vezes, aos cristãos, a dúvida sobre o cumprimento, ou não, das leis do Estado,
emanadas da autoridade legítima.
Estas dúvidas têm
razão de ser já que, muitas vezes, o legislador não só não tem em devida conta
os sagrados princípios da dignidade humana como até, muitas vezes, vai contra a
própria estrutura da sociedade organizada, nomeadamente, na sua célula
principal e fundamental, que é a família.
Por isso é
necessário ter a mente esclarecida e bem claros esses princípios fundamentais
contra os quais, o cristão não pode transigir em caso algum.[i]
Parece, hoje em
dia, mais aceso um verdadeiro combate à família humana, tal como a entendemos:
Um casal, um homem e uma mulher, unidos numa vida comum, partilhando com
generosidade o que é próprio de cada um, embora mantendo a individualidade,
respeitando a maneira de ser do outro; os filhos, fruto do amor do casal
livremente expresso na colaboração com Deus na perpetuação e continuidade da
raça humana.
Nalguns países
assiste-se a uma não disfarçada tentativa de fazer desmoronar de forma
irreversível esses valores.
Com a pretensão de
agradar às minorias – sê-lo-ão sempre – promulgam-se leis que pretendem
estabelecer princípios de liberdade que na verdade, mais não fazem que atentar
contra a liberdade de outros.
De facto, ao
consentir, ao legislar, sobre os “casamentos” entre pessoas do mesmo sexo com a
possibilidade de adopção de crianças, atenta-se, em primeiro lugar, contra a
própria sociedade que é composta por seres masculinos e femininos, com
morfologias e características diferentes e com diferentes finalidades, e, em
segundo lugar, contra as próprias crianças que têm direito a ter um pai e uma
mãe – como a enormíssima maioria das crianças – e a serem criados e receberem
uma educação semelhantes a essa mesma maioria.
O preço deste desvario está à vista:
A angustiante baixa de natalidade nesses países em que tais leis foram
publicadas, a perda acentuada das características da própria sociedade
nacional, a inversão dos valores fundamentais da convivência humana.
Que contas terão de prestar não só
os autores ou promotores dessas leis, mas também todos aqueles que as
consentiram ou, mesmo, nalguns casos sabidos, aprovaram ao arrepio da vontade
ou convicção próprias, refugiando-se numa suposta "obrigação legal"
que o cargo que, temporariamente desempenham, dizem obrigar, ou, aqueles que,
com o seu voto, deram poder a essas pessoas para o fazer.
(AMA, reflexões).
[1] Concílio Vaticano II, Decreto Ad Gentes Divinitus, nr. 8.
[2] são joão Paulo II, Discurso à UNIV, Roma, 1104.1979.
[3] são joão Paulo II, Discurso na XXVIII Conferência Geral da FAO, 23.10.1995.
[i] a lei, as leis e a dignidade da consciência.
1.
Os textos da Escritura proclamados nesta celebração dizem-nos que, na visão
bíblica do homem, da sua identidade profunda, faz parte a lei moral, gravada no
seu coração, prévia a qualquer lei positiva, religiosa ou civil. O homem,
porque inteligente e livre, é o único ser da criação interpelado e conduzido
por uma lei moral, a partir da qual será julgado. Se alguma vez o homem se
afirmasse como um ser sem lei, negaria a sua própria identidade. Paulo, na
Carta aos Romanos, aborda este tema, pondo em confronto os judeus, dotados de
uma lei religiosa muito elaborada ao longo de séculos e todos os outros, os
pagãos, não atingidos por essa lei mosaica, mas que nem por isso são sem lei,
pois trazem em si mesmos a sua própria lei, e relaciona essa lei universal, gravada
no coração de cada homem, com a dignidade da própria consciência: "eles
mostram o realismo dessa lei gravada no seu coração, comprovada no testemunho
da sua consciência" (Rom. 2,15). O Concílio Vaticano II
explicita, para o nosso tempo, este ensinamento do Apóstolo Paulo: "No
fundo da sua consciência, o homem descobre a presença de uma lei que ele não se
deu a si mesmo, mas à qual é chamado a obedecer. Esta voz, que continuamente o
impele ao amor e a realizar o bem e a evitar o mal, no momento oportuno ecoa no
íntimo do seu coração: faz isto, evita aquilo. É uma lei inscrita por Deus no
coração do homem; a sua dignidade está em obedecer-lhe e é ela que o julgará. A
consciência é o centro mais secreto do homem, o santuário onde se encontra a
sós com Deus, onde a Sua voz se faz ouvir" (G.S. nº 16). A esta lei interior, prévia a qualquer lei positiva,
costuma chamar-se a "lei natural". A expressão nunca aparece na Sagrada
Escritura, mas passou a ser usada, a partir de um certo momento, no Magistério
da Igreja. Ela contrapõe-se à lei positiva e não exclusivamente à lei
religiosa, até porque esta é a explicitação dessa lei primeira, gravada por
Deus no coração do homem. Se reconhecermos esta lei primordial, afirmada no
santuário da consciência, põe-se-nos o problema da relação de toda a lei
positiva, religiosa ou não, com essa lei fundamental, base para a explicitação
de todo o enquadramento legal como caminho para a busca do bem, no exercício da
liberdade.
2.
A relação entre esta lei primordial e a lei positiva vê-se, claramente, na lei
religiosa de Israel e depois na lei cristã. Ambas têm origem em Deus Criador,
indicam o caminho indicado por Deus para a realização do homem, em busca de uma
plenitude de liberdade e de vida. Ajuda-nos a perceber essa unidade a
explicitação dos conteúdos dessa lei natural: antes de mais, a dignidade da
consciência, onde está gravado o sentido do que é bem e do que é mal. O bem
explicita-se, antes de mais, no reconhecimento de Deus, na obediência ao caminho
por ele indicado, que toma a forma do amor e da adoração. O respeito pela
dignidade dos outros, que ganha forma no amor do próximo, expresso logo de
início no amor do homem e da mulher e no respeito pela vida, expressa na
denúncia do crime de Caim (Gen. 4,7ss). O Concílio concretiza estes
conteúdos da consciência original: "É de uma maneira admirável que se
revela à consciência esta lei que se realiza no amor de Deus e do próximo"
(G.S. nº16). Por outro lado afirma-se que a lei divina e a lei
natural são o fundamento sólido de uma comunidade fraterna entre os homens (Cfr.
G.S. nº89). Os conteúdos desta lei natural imprimiram-se em tradições
religiosas e culturais, que deram origem à lei religiosa de Israel. A Lei Mosaica,
chamada Thora, sobretudo o decálogo, é o assumir dos conteúdos dessa lei
primordial impressa no coração do homem, na lei religiosa. Amarás o Senhor teu
Deus e só a Ele prestarás culto; honrarás pai e mãe; não matarás; não cometerás
adultério; não roubarás; não julgarás falso; não desejarás a mulher e os bens
do teu próximo (Cfr. Ex. 20,1-17). Para que esta lei positiva seja
humana e dinamize a existência do homem em dignidade, ela não pode, nem
desconhecer, nem contradizer, essa lei fundamental gravada no coração do homem.
Aliás, o respeito pela dignidade da consciência
será sempre um desafio a toda a lei positiva. Jesus, no Sermão da Montanha, dá
uma expressão definitiva aos dinamismos que Deus pôs no coração humano. Podemos
considerar, como o faz Bento XVI no seu livro "Jesus de Nazaré", o
discurso das bem-aventuranças como o enunciar da nova thora, a Lei do Messias.
Essa lei primordial, Cristo, enquanto Homem, tem-na bem viva no Seu coração de
Filho. Podemos dizer que no Seu coração está bem presente o desígnio de Deus, o
caminho sugerido aos homens, o Seu amor pelos homens. Nele, a lei primordial
torna-se, verdadeiramente, a Sua Lei, a Lei de Cristo. Nele o homem recupera a
liberdade em relação aos imensos preceitos em que se foi concretizando a lei
positiva, como escreve Paulo aos Gálatas: "Cristo libertou-nos para que
ficássemos livres. Permanecei firmes (em Cristo), para não vos sujeitardes ao
jugo da escravidão" (Gal. 5,1ss). Cristo, Verbo eterno feito
homem, por Quem todas as coisas foram feitas, significa a plenitude da criação.
Essa lei primordial está tão perfeitamente impressa no Seu coração, que Ele é a
plenitude da Lei, isto é, de todo o plano e vontade de Deus acerca dos homens.
Para os cristãos, Cristo é a Lei, porque é o caminho, a verdade e a vida.
3.
Uma questão se põe à cultura e à organização das sociedades: em que medida é
que todas as leis devem ser aplicação dessa lei primordial, para poderem ser
caminho para o homem, caminho de justiça e de harmonia. Este é um problema
cultural, na medida em que essa lei natural, comum a todos os homens, constitui
um património comum universal, presente em todos os povos e culturas e
subjacente a todas as religiões. Em cada cultura esse património universal
ganha forma na ordem de valores que constituem a identidade própria de uma
comunidade. No nosso tempo, marcado pela convivência, cada vez mais intensa,
entre povos e culturas, a identificação deste "universal humano" pode
ser decisivo para a construção da justiça e da paz. Hoje os responsáveis pelas
Nações, além do dever de fazerem leis justas e humanamente correctas, estão
preocupados, e com razão, com a destruição do sentido da lei como base da
convivência. Mas é ainda mais grave quando se destrói esse património
primordial gravado no coração do homem: conjunto de valores, inerentes ao
sentido de responsabilidade, constitutivos da dignidade da consciência. A
anomia tem sempre como antecedente, por vezes longínquo, a destruição desse
património original da dignidade da consciência. Esta é uma batalha que se
trava no campo da educação e da cultura, mas também na lucidez e na clareza
humanista dos princípios com que se rege a Cidade. Os cristãos têm de estar na
primeira linha dessa batalha, onde se ganha ou se perde a humanização da
sociedade. Estamos aqui, neste dia da Abertura Solene do Ano Judicial, para
implorar a luz e a protecção de Deus para todos aqueles e aquelas que estão
empenhados na construção da justiça. Que Deus abençoe a todos. (D. José Policarpo, Homilia de na Missa de Abertura do Ano Judicial, 29 de Janeiro de
2008).
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