Amigos
de Deus
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Não sei se vos terão contado, na vossa
infância, a fábula daquele camponês a quem ofereceram um faisão dourado.
Após
o primeiro momento de alegria e de surpresa por tal oferta, o novo dono começou
a pensar onde poderia guardá-lo.
Ao
fim de várias horas, depois de muitas dúvidas e diversos planos, decidiu
metê-lo no galinheiro.
As
galinhas, admiradas com a beleza do recém-chegado, giravam à sua volta com o
assombro de quem descobre um semi-deus.
No
meio de tanto alvoroço, chegou a hora da comida e, mal o dono lançou os
primeiros punhados de farelo, o faisão, esfomeado pela espera, lançou-se com
avidez a tirar a barriga de misérias.
Ante
um espectáculo tão vulgar - aquele prodígio de formosura comia com o mesmo
apetite que o animal mais corrente - as desencantadas companheiras de capoeira
lançaram-se às bicadas contra o ídolo caído, até lhe arrancarem toda a plumagem.
É
assim triste a derrocada do ególatra; tanto mais desastrosa, quanto mais ele se
elevou sobre as suas próprias forças, presunçosamente confiado na sua
capacidade pessoal.
Tirai consequências práticas para a vossa
vida diária, sentindo-vos depositários de alguns talentos - sobrenaturais e
humanos - que deveis aproveitar rectamente.
Afastai o ridículo engano de que algo vos
pertence, como se fosse fruto só do vosso esforço. Lembrai-vos de que há uma
parcela - Deus - de que ninguém pode prescindir.
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Com esta perspectiva, convencei-vos de que,
se desejamos deveras seguir o Senhor de perto e prestar um serviço autêntico a
Deus e a toda a humanidade, temos de estar seriamente desprendidos de nós
próprios: dos dons da inteligência, da saúde, da honra, das ambições nobres,
dos triunfos, dos êxitos.
Refiro-me também - porque até aí deve
chegar a tua decisão - a esses afãs limpos com que procuramos exclusivamente
dar toda a glória a Deus e louvá-lo, ajustando a nossa vontade a esta norma clara
e precisa: Senhor, quero isto ou aquilo só se te agrada a Ti, porque se não, a
mim, que me interessa?
Assestamos
assim um golpe mortal no egoísmo e na vaidade que serpenteiam em todas as
consciências.
E
conseguimos também a verdadeira paz para as nossas almas com um desprendimento
que nos leva a possuir Deus, de forma cada vez mais íntima e mais intensa.
Para imitar Jesus, o coração tem de estar
inteiramente livre de apegos.
Se alguém quer vir após
mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser salvar a sua
vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por amor de mim, encontrá-la-á.
Pois, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se depois perde a sua alma?
E
comenta S. Gregório: não nos bastaria
viver desprendidos das coisas, se não renunciássemos também a nós próprios.
Mas... onde iremos fora de
nós?
Quem é o que renuncia, se
a si mesmo se deixa?
Sabei que é diferente a nossa situação
enquanto caídos pelo pecado e enquanto formados por Deus.
Fomos
criados de uma forma e encontramo-nos noutra diferente por causa de nós mesmos.
Renunciemos
a nós próprios, naquilo em que nos convertemos pelo pecado e mantenhamo-nos
como fomos constituídos pela graça.
Assim, se o que foi soberbo, convertendo-se
a Cristo, se torna humilde, já renunciou a si mesmo; se um luxurioso se
converte a uma vida continente, também renunciou a si próprio naquilo que era
antes; se um avarento deixa de o ser e, em vez de se apoderar do alheio, começa
a ser generoso com o que lhe pertence, certamente se negou a si próprio.
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Senhorio
do cristão
Corações generosos, com desprendimento
verdadeiro, pede o Senhor.
Consegui-lo-emos,
se soltarmos com valentia as amarras ou os fios subtis que nos prendem ao nosso
eu.
Não
vos escondo que esta determinação exige uma luta constante, uma sobreposição ao
entendimento e à vontade própria, em poucas palavras, uma renúncia mais árdua
que o abandono dos bens materiais mais desejados.
Esse desprendimento que o Mestre pregou e
que espera de todos os cristãos implica também necessariamente manifestações externas.
Jesus Cristo coepit facere et docere:
antes de anunciar a sua doutrina com a palavra, anunciou-a com as obras.
Vemo-lo
nascer num estábulo, na carência mais absoluta, e dormir os seus primeiros
sonos na terra deitado sobre as palhas de uma manjedoura.
Depois,
durante os anos das suas andanças apostólicas, entre muitos outros exemplos,
recordamos a sua clara advertência a um dos que se ofereceram para o acompanhar
como discípulo: as raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho
do homem não tem onde reclinar a cabeça.
E
não deixemos de contemplar aquela cena que o Evangelho recolhe, em que os
apóstolos, para matar a fome, num sábado, arrancam pelo caminho umas espigas de
trigo.
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Pode-se dizer que Nosso Senhor, perante a
missão recebida do Pai, vive o dia-a-dia, tal como aconselhava num dos
ensinamentos mais sugestivos que saíram da sua boca divina: não vos preocupeis, quanto à vossa vida, com
o que haveis de comer nem, quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir,
pois a vida é mais que o alimento e o corpo mais que o vestuário.
Reparai nos corvos: não
semeiam nem colhem, não têm despensa nem celeiro, e Deus sustenta-os.
Quanto mais valeis vós do
que as aves!...
Reparai nos lírios, como
crescem!
Não trabalham nem fiam.
Pois eu digo-vos: nem
Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como um deles.
Se Deus veste assim a erva
que hoje está no campo e amanhã é lançada no fogo, quanto mais a vós, homens de
pouca fé?
Se vivêssemos mais confiados na Providência
divina, seguros - com fé firme - desta protecção diária que nunca nos falta,
quantas preocupações ou inquietações pouparíamos a nós próprios.
Desapareceriam
muitos desassossegos que, segundo palavras de Jesus, são próprios dos pagãos,
dos homens do mundo, das pessoas que carecem de sentido sobrenatural.
Quereria,
em confidência de amigo, de sacerdote, de pai, trazer-vos à memória em cada
circunstância, que nós, pela misericórdia de Deus, somos filhos desse Pai Nosso,
todo-poderoso, que está nos Céus e, ao mesmo tempo, na intimidade dos nossos
corações.
Quereria
gravar a fogo nas vossas mentes que temos todos os motivos para caminhar com
optimismo nesta terra, com a alma bem desprendida dessas coisas que parecem imprescindíveis,
pois bem sabe o vosso Pai que tendes necessidade delas.
E
Ele providenciará.
Crede
que só assim nos portaremos como senhores da Criação e evitaremos a triste
escravidão em que tantos caem, porque esquecem a sua condição de filhos de Deus,
preocupados com um amanhã ou um depois que talvez nem sequer cheguem a ver.
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Permiti que, mais uma vez, vos manifeste
uma pequena parte da minha experiência pessoal.
Abro-vos
a minha alma na presença de Deus, com a certeza mais absoluta de que não sou
modelo de nada, de que sou um farrapo, um pobre instrumento - surdo e inapto -
que o Senhor utilizou para que se comprove, com mais evidência, que Ele escreve
perfeitamente com a perna de uma mesa.
Portanto,
ao falar-vos de mim, não me passa pela cabeça, nem de longe, o pensamento de
que na minha actuação haja algum mérito meu; e muito menos pretendo impor-vos o
caminho por onde o Senhor me levou, até porque pode suceder muito bem que o
Mestre não vos peça o que tanto me ajudou a trabalhar sem impedimento nesta
Obra de Deus a que dediquei toda a minha existência.
Asseguro-vos - toquei-o com as minhas mãos,
contemplei-o com os meus olhos - que, se confiardes na divina Providência, se
vos abandonardes nos seus braços omnipotentes, nunca vos faltarão os meios para
servir a Deus, à Santa Igreja, às almas, sem descuidar nenhum dos vossos
deveres.
E,
além disso, gozareis de uma alegria e de uma paz que mundus dare non potest, que a posse de todos os bens da terra não
pode dar.
Desde os começos do Opus Dei, em 1928, além
de que não contava com nenhum recurso humano, nunca utilizei pessoalmente um
cêntimo sequer.
Tão-pouco
intervim directamente nos assuntos económicos que logicamente surgem ao
realizar qualquer tarefa em que participam criaturas - homens de carne e osso,
e não anjos - que precisam de instrumentos materiais para desenvolver
eficazmente o seu trabalho apostólico.
O Opus Dei precisou e penso que precisará
sempre, até ao fim dos tempos, da colaboração generosa de muitos para sustentar
as obras apostólicas: por um lado, porque essas actividades nunca são
rentáveis; por outro, porque ainda que aumentem o número dos que cooperam e o
trabalho dos meus filhos, se há amor de Deus, o apostolado desenvolve-se e as
necessidades multiplicam-se.
Por
isso, em mais de uma ocasião, fiz rir os meus filhos, pois enquanto os
impulsionava com fortaleza a corresponderem fielmente à graça de Deus,
animava-os a dirigirem-se descaradamente ao Senhor, pedindo-lhe mais graça e o
dinheiro, de contado, que nos faltava.
Nos primeiros anos, faltava-nos até o mais
indispensável.
Atraídos
pelo fogo de Deus, vinham ter comigo operários, mecânicos, universitários...
que ignoravam o aperto e a indigência em que nos encontrávamos, porque no Opus
Dei, com o auxílio do Céu, sempre procurámos trabalhar de maneira que o
sacrifício e a oração fossem abundantes e escondidos.
Ao
rememorar agora aquela época, brota do coração uma acção de graças rendida.
Que
segurança havia nas nossas almas!
Sabíamos
que, procurando o reino de Deus e a sua justiça, o resto ser-nos-ia concedido
por acréscimo.
E
posso garantir-vos que não deixou de realizar-se nenhuma iniciativa apostólica
por falta de recursos materiais.
No momento preciso, de uma forma ou doutra,
o nosso Pai Deus com a sua Providência ordinária facilitava-nos o que era necessário,
para que víssemos que Ele é sempre bom pagador.
(cont)
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