Capítulo IX
A chamada do Amigo
287.
Para discernir a própria vocação, é preciso reconhecer que a mesma é a chamada
dum amigo: Jesus. Aos amigos, quando se dá um presente, oferece-se o melhor;
isto não significa que seja necessariamente o presente mais caro ou difícil de
conseguir, mas o que - sabemos - dará alegria ao outro. Um amigo tem uma
percepção tão clara disto mesmo que consegue visualizar, na sua imaginação, o
sorriso do amigo ao abrir o seu presente. Este discernimento de amizade é o que
proponho aos jovens como modelo se quiserem compreender qual é a vontade de
Deus para a sua vida.
288.
Quero que saibais que o Senhor, quando pensa em alguém, no que gostaria de lhe
dar de presente, vê-o como seu amigo pessoal. E se decidiu presentear-te com
uma graça, um carisma que te fará viver plenamente a tua vida transformando-te
numa pessoa útil aos outros, em alguém que deixa uma marca na história, será
certamente algo que te deixará feliz no mais íntimo de ti mesmo e te
entusiasmará mais do que qualquer outra coisa neste mundo. Não, porque o dom
concedido seja um carisma extraordinário ou raro, mas porque é precisamente à
tua medida, à medida de toda a tua vida.
289.
O dom da vocação será, sem dúvida, um dom exigente. Os dons de Deus são interactivos
e, para desfrutá-los, é preciso pôr-me em caminho, arriscar. Não será a
exigência dum dever imposto por outro de fora, mas algo que te estimulará a
crescer e a optar por que esse presente amadureça e se transforme em dom para
os outros. Quando o Senhor suscita uma vocação, não pensa apenas no que és, mas
em tudo o que poderás, juntamente com Ele e os outros, chegar a ser.
290.
A energia da vida e a força da própria personalidade alimentam-se mutuamente,
no interior de cada jovem, e impelem-no a ultrapassar todos os limites. A
inexperiência permite que isto aconteça, embora bem depressa se transforme em
experiência muitas vezes dolorosa. É importante pôr em contacto este desejo do
«infinito de quando ainda não se tentou começar»
[1]
com a amizade incondicional que Jesus nos oferece.
Antes
de toda a lei e dever, aquilo que Jesus nos propõe escolher é um seguimento
como o de amigos que se frequentam, procuram e encontram por pura amizade. Tudo
o mais vem depois; e até os fracassos da vida poderão ser uma experiência
inestimável de tal amizade que não se rompe jamais.
Escuta e
acompanhamento
291.
Há sacerdotes, religiosos, religiosas, leigos, profissionais e até jovens
qualificados, que podem acompanhar os jovens no seu discernimento vocacional.
Quando
nos toca ajudar o outro a discernir o caminho da sua vida, a primeira coisa a
fazer é ouvir.
Esta
escuta pressupõe três sensibilidades ou atenções diferentes e complementares:
292.
A primeira sensibilidade ou atenção é à pessoa.
Trata-se
de escutar o outro, que se nos dá com as suas palavras.
O
sinal desta escuta é o tempo que dedico ao outro.
Não
é questão de quantidade, mas de que o outro sinta que o meu tempo é dele: todo
o tempo que precisar para me manifestar o que quer.
Deve
sentir que o escuto incondicionalmente, sem me ofender, escandalizar, aborrecer
nem cansar.
Tal
é a escuta que o Senhor realiza quando Se põe a caminho com os discípulos de
Emaús e os acompanha durante longo tempo por uma estrada cuja direcção seguida
era oposta à correcta (cf. Lc 24, 13-35).
Quando
Jesus faz menção de continuar em frente, porque os dois discípulos tinham
chegado a casa, estes compreendem que Ele lhes oferecera o seu tempo e, então,
dão-Lhe o deles, oferecendo-Lhe hospedagem.
Esta
escuta atenta e desinteressada mostra o valor que tem para nós a outra pessoa,
independentemente das suas ideias e opções de vida.
293.
A segunda sensibilidade ou atenção é no discernir.
Trata-se
de individuar o ponto certo onde se discerne o que é a graça e o que é
tentação. Com efeito, às vezes as coisas que cruzam a nossa imaginação não
passam de tentações que nos afastam do nosso verdadeiro caminho.
Aqui
preciso de me interrogar:
O
que é que, exactamente, esta pessoa me está dizendo?
O
que me quer dizer?
O
que deseja que eu compreenda do que lhe acontece?
São
perguntas que ajudam a entender onde se ligam os argumentos que movem o outro,
e a sentir o peso e o ritmo dos seus afectos influenciados por esta lógica.
Esta
escuta tem em vista discernir as palavras salvíficas do Espírito bom, que nos
propõe a verdade do Senhor, mas também as armadilhas do espírito mau, os seus
enganos e as suas seduções.
É
preciso ter a coragem, o afecto e a delicadeza necessários para ajudar o outro
a reconhecer a verdade e os enganos ou as desculpas.
294.
A terceira sensibilidade ou atenção consiste em escutar os impulsos «para
diante» que o outro experimenta.
É
a escuta profunda do ponto «para onde o outro quer verdadeiramente ir». Além do
que sente e pensa no presente e do que fez no passado, a atenção orienta-se
para o que quereria ser.
Às
vezes, isto requer que a pessoa não olhe tanto para o que gosta, os seus
desejos superficiais, mas para o que mais agrada ao Senhor, o seu projecto para
a própria vida que se expressa numa inclinação do coração, além da casca dos
gostos e sentimentos.
Esta
escuta é atenção à intenção última, que é aquela que, em última análise, decide
a vida, porque há Alguém como Jesus que entende e valoriza esta intenção última
do coração.
Por
isso, Ele está sempre disposto a ajudar cada um a reconhecê-la e, para isso,
basta que alguém Lhe diga:
«Senhor,
salvai-me! Tende misericórdia de mim!»
295.
Então, o discernimento torna-se um instrumento de compromisso forte para seguir
melhor o Senhor[2].
Assim,
o desejo de reconhecer a própria vocação adquire uma intensidade suprema, uma
qualidade diferente e um nível superior, que responde muito melhor à dignidade
da vida.
Porque,
em última análise, um bom discernimento é um caminho de liberdade que faz
aflorar a realidade única de cada pessoa, aquela realidade que é tão sua, tão
pessoal que só Deus a conhece.
Os
outros não podem entender plenamente nem prever de fora como se desenvolverá.
296.
Por conseguinte, quando alguém escuta o outro desta maneira, a dado momento
deve desaparecer para o deixar seguir o caminho que ele descobriu.
Desaparecer
como desaparece o Senhor da vista dos seus discípulos, deixando-os sozinhos com
o ardor do coração que se transforma num impulso irresistível de se porem a
caminho (cf.
Lc 24, 31-33).
De
regresso à comunidade, os discípulos de Emaús receberão a confirmação de que o
Senhor verdadeiramente ressuscitou (cf. Lc 24, 34).
297.
Uma vez que «o tempo é superior ao espaço»[3],
devemos suscitar
e acompanhar processos, não impor percursos.
Trata-se
de processos de pessoas, que sempre são únicas e livres.
Por
isso é difícil elaborar receituários, mesmo quando todos os sinais forem
positivos, porque «tem-se de submeter os próprios factores positivos a um
atento discernimento, para que não se isolem uns dos outros, nem entrem em oposição
entre si, absolutizando-se e combatendo-se mutuamente.
O
mesmo se diga dos factores negativos: não são de rejeitar em bloco e sem
distinções, porque em cada um deles pode ocultar-se algum valor que espera ser
libertado e reconduzido à sua verdade plena»[4].
298.
Mas, para acompanhar os outros neste caminho, primeiro precisas de ter o hábito
de o percorreres tu próprio.
Maria
fê-lo, enfrentando as suas questões e as suas próprias dificuldades, quando era
ainda muito jovem.
Que
Ela renove a tua juventude com a força da sua oração e te acompanhe sempre com
a sua presença de Mãe.
*
* *
E para concluir...
um desejo
299.
Queridos jovens, ficarei feliz vendo-vos correr mais rápido do que os lentos e
medrosos.
Correi
«atraídos por aquele Rosto tão amado, que adoramos na sagrada Eucaristia e
reconhecemos na carne do irmão que sofre.
O
Espírito Santo vos impulsione nesta corrida para a frente.
A
Igreja precisa do vosso ímpeto, das vossas intuições, da vossa fé. Nós temos
necessidade disto!
E
quando chegardes aonde nós ainda não chegámos, tende a paciência de esperar por
nós»[5].
Loreto,
no Santuário da Santa Casa, a 25 de Março – Solenidade da Anunciação do Senhor
– do ano 2019, sétimo do pontificado.
Franciscus
Revisão da versão
portuguesa por AMA
Notas
[1] Romano
Guardini, As idades da vida: Opera omnia, IV (Brescia
2015), 209.
[2] Cf. Francisco,
Exort. ap. Gaudete et exsultate (19 de Março
de 2018), 169.
[3] Francisco, Exort.
ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro
de 2013), 222: AAS 105 (2013), 1111.
[4] São João Paulo II,
Exort. ap. pós-sinodal Pastores dabo vobis (25
de Março de 1992), 10: AAS 84 (1992), 672.
[5] Francisco, Encontro
e oração com jovens italianos, no Circo Máximo de Roma (11 de Agosto de
2018): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 23/VIII/2018),
2.
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